José Manuel Pureza –
Diário de Notícias, opinião
Passos Coelho
alertou o País para o grave risco de a Constituição ser aplicada a sério. Risco
de monta porque impediria a entrada em vigor do próximo pacote de diplomas
legais do Governo sobre a desvalorização económica e social do trabalho,
incluindo o aumento da jornada de trabalho e a autorização dos despedimentos em
massa na função pública sob o disfarce semântico de "requalificação".
Sem surpresa, a teoria do "risco constitucional" é o sucedâneo atual
da tese das "forças de bloqueio", criada, com espírito idêntico, pelo
atual Presidente da República quando chefiava o Governo. Ambos - e as
respetivas teses - evidenciam ter da democracia uma visão enfadada quando ela
impõe limites a uma governação em estilo mãos livres.
Em primeira linha,
o alerta de Passos Coelho para o "risco constitucional" foi uma
expressão de pressão óbvia sobre os juízes do Tribunal Constitucional, para
memória futura. Mas, mais do que isso, a teoria do "risco
constitucional" de Passos Coelho dá voz ao que a direita pensa sobre a
Constituição - ela é um perigo. Acima de tudo porque, não podendo ser ignorada,
a invocação da Constituição exige, a cada momento, uma resposta clara a uma
pergunta decisiva: o regime político em que vivemos é ainda o da democracia
criada no bojo do processo de transformação social, política e económica que
teve no 25 de Abril de 1974 o seu momento fundador ou é outra coisa? Por outras
palavras, ao qualificar a Constituição como um risco para as suas iniciativas
(des)reguladoras, a direita explicita como seu propósito último o de situar
Portugal num tempo pós-constitucional. E por ser pós-constitucional este regime
insinuado pela direita na sua teoria do risco é matricialmente pós-democrático,
no sentido em que a democracia deixa de ser um modo de organização social e
económica e passa a ser exclusivamente uma técnica de legitimação formal da
relação de forças momentânea na sociedade. Em boa verdade, portanto, a teoria
do risco constitucional é uma teoria do risco democrático porque é esse
horizonte de democracia densa e não apenas litúrgica que a direita repudia como
o diabo repudia a cruz.
Não é outro o
sentido da retórica estafada do minimalismo constitucional que a direita sempre
usa nestas ocasiões. Os argumentos do sobredimensionamento da Constituição e da
sua sobrecarga ideológica são uma espécie de espelho: a direita quer
alegadamente uma constituição pequena e sem ideologia. Com um senão: não existe
vazio ideológico. A aspiração a uma constituição que nada diga de concreto
sobre os contornos e a intensidade do regime democrático nas condições
específicas de uma sociedade como a nossa, a aspiração a uma constituição que
se limite a estabelecer basicamente o mesmo que estabelecia a Constituição de
1822, eis a forma que a direita tem de dizer que quer uma constituição que se
limite a pôr um carimbo na sua superioridade eleitoral momentânea.
O risco, para a
direita, não é a referência preambular ao "caminho para o
socialismo". O seu problema é o "risco" que representa a
existência de um meta-programa constitucional superior aos programas
momentâneos das maiorias momentâneas, que lhes dê um sentido de regime e que
haja juízes que ousam escrutinar o cumprimento desse programa. Ao velho sonho
da direita - uma maioria, um governo, um presidente - junta-se agora mais um
elemento: juízes carimbadores no Palácio Ratton. Porque a teoria do risco
constitucional é afinal uma confissão do primeiro-ministro: a de que, mais do
que o risco de não cumprir a Constituição, ele tem a certeza de que o Governo
não a cumpre.
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