La
Repubblica, Roma – Presseurop – imagem Beppe Giacobbe
Potência
hegemónica, mas temerosa da ideia de dominar, consciente da sua história.
Voluntariosa, mas contemporizadora até à neurastenia. Estas contradições
explicam a quantidade de lugares-comuns sobre um país que vota a 22 de
setembro.
São tentativas de
traçar a análise psicológica de um poder óbvio, agressivo, cuidadosamente
dissimulado por Berlim e que as capitais da União não sabem como travar. A
Europa inteira alimenta-se desses estereótipos desde que foi assaltada pela
crise e espera, fascinada, inerte, pelo resultado da eleição. A renovação do
Parlamento alemão, no dia 22 de setembro, antecede apenas uns meses as eleições
europeias de final de maio. Dentro da União, essa votação é considerada o
primeiro ato de um drama que implica o continente e que tem por protagonista
uma democracia europeia doente.
Graças aos
lugares-comuns, o drama transforma-se em conto de fadas, que os próprios
alemães cultivam, por um lado, para descobrir para onde vão, por outro para se
justificar. O conto fala de uma Alemanha – ainda e sempre “pálida mãe”, como na
poesia de Brecht – ansiosa por deixar de ser “entre as nações, achincalhada ou
temida”. Lúcida nos seus juízos e devotada à Europa, mas entravada pelo
nacionalismo dos países vizinhos, com a França à cabeça. Nas páginas do Guardian, o ministro das
Finanças, Wolfgang Schäuble, corroborou essa narrativa ficcional: “Não queremos
uma Europa alemã. Não pedimos aos outros que sejam como nós”.
Ora os alemães são
muito determinados, bastante mais do que dizem. E mostram-no com o ímpeto de
quem defende não apenas doutrinas económicas, mas visões morais solenes (a
dívida como culpa). Wolfgang Schäuble convida os parceiros a não usarem
estereótipos nacionais; mas o seu raciocínio, minimizador, está também a
tornar-se um estereótipo, que a realidade desmente todos os dias. A expectativa
passiva do voto alemão sela um poder hegemónico considerado imutável, sem
alternativa: tal como as políticas de austeridade impostas por Berlim, falando
em nome de todos os povos da União Europeia.
Soberania ilusória
dos Estados
As mentes mais
lúcidas são intelectuais de língua alemã – os filósofos Jürgen
Habermas e Ulrich
Beck, o escritor Robert
Menasse, o ex-ministro dos Negócios Estrangeiros Joschka Fischer. Desde o
início da crise, têm denunciado a grave regressão nacionalista do seu país. Dos
partidos políticos, apenas os Verdes fazem um diagnóstico independente. Joschka
Fischer, que é um dos seus dirigentes, acusa o Governo de ter despertado, ao
fim de mais de 60 anos, a velha preocupação pela “questão alemã”. Angela Merkel
é suspeita de querer voltar a uma Europa de Estados soberanos: a mesma Europa
baseada no equilíbrio entre poderes concorrentes que se defrontaram nas guerras
dos séculos passados e contra os quais foi erguido, na década de 1950, o
baluarte da Comunidade Europeia.
Não são suspeitas
infundadas. Lentamente, a chefe do Governo abandonou o europeísmo que
professava em fevereiro de 2012 e, para já, fechou as portas que tinha
entreaberto. Sentiu crescer em torno de si os neo-nacionalistas (o novo partido
Alternativa
para a Alemanha (AFD) tanto recolhe votos à esquerda como à direita) e
adaptou-se rapidamente à situação. Os seus discursos, como os seus atos, “são
desprovidos de qualquer núcleo normativo”, lamenta
Jürgen Habermas. Daí ter-se aliado ao Reino Unido, quando [o
primeiro-ministro britânico] David Cameron vetou qualquer aumento no orçamento
da Comunidade: conjuntamente, negaram políticas europeias de combate à
austeridade sobre os países.
No dia 13 de
agosto, na televisão alemã, a chanceler como que se livrou de um fardo: “A
Europa deve coordenar-se melhor, mas considero que nem tudo deve ser feito em
Bruxelas. Deve ser encarada a hipótese de devolver algumas atribuições aos
Estados. Discutiremos isso a seguir às eleições”.
Para o escritor
austríaco Robert Menasse, as raízes do mal que assola o euro são mais
políticas e democráticas do que económicas: residem no poder que os Estados
estão a recuperar – uma reconquista que não é de hoje, mas que vem desde a
adoção do Tratado de Lisboa, em 2007, em vez de uma constituição federal. Foi a
partir dessa data que os Estados – conselhos de ministros, cimeiras de chefes
de Estado e de Governo – começaram a recuperar o controlo, alegando uma
soberania ilusória, mas não menos altiva, que vai corroendo o poder das
instituições supranacionais.
Falhas de
arquitetura do euro
As falhas de
arquitetura do euro são bem conhecidas: decorrem da falta de união política e
económica. Ora, estamos a responder a esses problemas aumentando-os, em vez de
os reduzirmos.
Numa Europa em que
os Estados são novamente senhores, é inevitável que seja a maior potência
económica a assumir o comando. Papel a que a Alemanha se entrega não sem
malícia, ao ponto de Ulrich Beck recordar o modelo de Maquiavel, quando
descreve o império acidentalmente instituído por Berlim: “Tal como Maquiavel,
Angela Merkel aproveitou a oportunidade que se lhe apresentou – a crise – e
alterou a relação de forças na Europa”. A União deixa de ser comunidade quando
os países “devedores-pecadores” [em alemão, “dívida” e “pecado” são a mesma
palavra] são humilhados, envolvidos pela designação “periferia Sul da Europa”.
Aí reside a explicação para o desaparecimento de qualquer “núcleo normativo” e
para a volatilidade das posições alemãs: sobre os poderes a restituir às
capitais, sobre uma federação europeia ou sobre a união bancária, inicialmente
desejada e depois rejeitada para melhor proteger os interesses dos bancos
alemães. Deixemos de novo a palavra a Ulrich Beck: “O príncipe, disse
Maquiavel, só se deve ater ao discurso político da véspera, se, hoje, ele lhe
trouxer vantagens”.
As veleidades
isolacionistas do AFD aceleram esta regressão. Se o partido entrar para o
Parlamento, o país vai mudar de cara, mas sem se colocar à margem da Europa,
como fez o Reino Unido: a Constituição prescreve-lhe a Europa (artigo 23,
revisto em 1992); mas a Europa desejada não é federal.
O último
lugar-comum tem a ver com a memória. Na Alemanha, a política da memória tem
lacunas singulares. Lembramo-nos da inflação em Weimar, mas não da deflação e
austeridade adotadas nos anos 1930-1932, pelo chanceler Brüning, que assegurou
o sucesso eleitoral de Adolfo Hitler. Lembramo-nos do nacional-socialismo, mas
não do que aconteceu em seguida: a redução da dívida alemã, generosamente concedida
em 1953 por 65 Estados (entre os quais a Grécia). Mesmo o mito da Alemanha que
aprende com a História fica parcialmente prejudicado se não se quiser dividir a
Europa entre centro e “favelas”: entre santos e pecadores que ainda por cima
“se coordenam”, esquecendo-se pelo caminho da solidariedade da “comunidade”,
que em tempos lhe foi dada e que com demasiada displicência abandonou.
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