Alexandre Homem
Cristo – jornal i, opinião
Se os
"Honórios" da função pública pudessem ser despedidos,não era preciso
cortar no salário dos que realmente trabalham
1. O Honório tem 45
anos e trabalha num instituto público, em Lisboa. É funcionário público com
contrato a tempo indeterminado há cerca de 15 anos. Sempre trabalhou para o
Estado mas, como sempre se sentiu mal aproveitado, nos dias de maior frustração
ameaçava que se ia embora. Nunca aconteceu. Foi, portanto, ficando e, com o
passar do tempo, foi também perdendo o entusiasmo de outros tempos no seu
trabalho. A sua chefe, sofrendo do mesmo mal, também não lhe exigia muito e,
por isso, não fazia diferença nenhuma se ele trabalhava mais ou menos.
Um dia, a sua chefe
saiu. Para o seu lugar veio uma pessoa de fora, mais nova do que ele, e
decidida a tornar esse instituto público num exemplo de excelência no quadro da
administração pública. Subitamente, os projectos tornaram-se mais ambiciosos,
mais trabalhosos e com prazos mais curtos. O Honório, ainda no primeiro mês,
tentou cumprir com o que lhe era pedido. Só que rapidamente se apercebeu que
isso lhe exigiria um esforço muito superior ao que ele aplicara no seu emprego,
durante a última década, e que não via qualquer razão que o incentivasse a
mudar. Aliás, muito pelo contrário: com as sucessivas reduções que o governo
aplicara nas remunerações dos funcionários públicos, ele achava que devia
trabalhar menos.
Assim fez. Começou
por arrastar os prazos, com sucessivos atrasos na entrega dos relatórios que
lhe eram pedidos. Nos relatórios que tinham de ser redigidos a várias mãos,
deixou de participar - os colegas que fizessem. E nunca participou em reuniões
que considerasse estarem fora do seu horário de trabalho normal. A chefe
percebeu que o Honório personificava uma espécie de arquivo-morto: todo o
trabalho que chegasse às mãos dele morria ali. E, porque queria as coisas
feitas, deixou de contar com ele.
Tudo isto durou um
ano e não teve consequências. Mas a chefe sabia que, com uma pessoa a menos,
seria particularmente difícil atingir os níveis de desempenho necessários para
alcançar os objectivos do instituto. Tentou falar com ele, explicar-lhe a
situação, procurar que ele mudasse a sua atitude. O Honório não cedeu. Então, a
chefe pensou em transferi-lo, mas contra a sua vontade não iria ser possível.
Em desespero, a chefe analisou as possibilidades de o despedir. Cedo se viu
obrigada a reconhecer que essa opção também não seria eficaz. Por fim, desistiu
e aceitou o facto de ter de manter o Honório na sua equipa. Apesar da sua
inutilidade.
2. Esta história é
verdadeira e muitas outras semelhantes existem na administração pública. É,
claro, um erro fazer desta história uma caricatura do funcionalismo público,
que tem na sua larga maioria pessoas capazes e dedicadas. Mas, da mesma forma,
é um erro achar que, no contexto do funcionalismo público, o Honório é apenas
um caso isolado. Não é. Ele faz parte de uma minoria de funcionários públicos,
talvez à volta dos 10% (ou até menos), que é paga para fazer um trabalho que
não faz mas que mesmo assim não pode ser despedida - porque a legislação é
excessivamente protectora, porque o Tribunal Constitucional impõe uma
interpretação rígida dessa legislação e porque sempre vigorou em Portugal uma
cultura do deixa-andar. Mas que fique claro: se os Honórios da função pública
pudessem ser despedidos, não era preciso cortar no salário dos que realmente
trabalham. É essa a consequência real da decisão do Tribunal Constitucional que
tantos aplaudiram. Os funcionários públicos que pensem nisto quando, em
Janeiro, receberem o seu recibo de vencimento.
Investigador - Escreve à
segunda-feira
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