…fazem um crime contra
o Estado de direito?
Isabel Patrício –
Jornal i, opinião
É tempo de
averiguar se um governo que teima em enviar diplomas inconstituiconaisnão
preencherá o tipo de crime (continuado) contra o Estado de direito
Há dias, a notícia
de que o Tribunal Constitucional decidira chumbar a proposta aprovada na
Assembleia da República para a realização de um referendo à co-adopção de
crianças por pessoas do mesmo sexo despertou-me a curiosidade e fui investigar
a jurisprudência produzida por este órgão de soberania no que se refere à
apreciação da conformidade com as normas da Constituição da legislação, em
sentido amplo, incluindo propostas de diplomas, produzidos e aprovados por este
governo e/ou pela maioria parlamentar que o apoia.
Contei àquela data dez declarações de inconstitucionalidade – ou chumbos, como
por hábito se afirma na comunicação social –, número que depois tive
oportunidade de confirmar em várias notícias, na certa saídas do computador de
alguém que se dera ao mesmo trabalho de contagem.
Hoje aquelas declarações são já 11.
Em número de meses,
este governo leva trinta e dois. Ora 11 chumbos em 32 meses é situação a que
ninguém que se tenha por democrata pode ficar indiferente. Sobretudo quando
vários desses mesmos chumbos se registaram com recorrência em leis de valor
reforçado, como é o caso das que aprovam os Orçamentos do Estado, e quando a
desconformidade com a Constituição se localiza ao nível de direitos
fundamentais, como sejam os que emanam dos princípios da igualdade, da proporcionalidade
e da confiança.
É reconhecível pelas declarações de alguns membros do governo e de deputados da
coligação serem desconhecedores das normas constitucionais, pelo que o seu voto
se terá ficado a dever a obediência às orientações (não queremos ser duros ao
ponto de usar a palavra “ordens”) saídas das direcções parlamentares dos
respectivos partidos. Aliás, e para fazer jus à verdade, há que dizer que esta
é, infelizmente, uma realidade que não se verifica unicamente nesta maioria
parlamentar, nem apenas nos anos que vamos vivendo, embora haja ainda que
reconhecer, com igual rigor de verdade, que a situação tem vindo a ser alvo de
acelerada degradação.
Esta ponderação da
actividade legisferante reiteradamente rejeitada pelo Tribunal Constitucional
foi depois acicatada pelas declarações proferidas no início da 11.a avaliação
realizada por aquela entidade a que chamam troika, que se nos impôs sem que nos
haja sido dado a conhecer quais as normas de natureza supranacionais que a
sustentam. Segundo as aludidas declarações, a troika quer agora que o governo
português faça o que já se temia: que as medidas de diminuição da despesa de
natureza temporária que se traduziram em cortes de salários e de pensões, sejam
convertidas em definitivas. E, como também já se adivinhava, perante uma
imposição destas, o governo estará já a procurar o modo de lhe dar cumprimento,
preparando-se, pois, para tentar tornar permanentes os cortes que os
portugueses entendiam como excepcionais e transitórios. A este propósito convém
recordar que as normas sobre salários e pensões que o governo conseguiu
transmitir pelo crivo do Tribunal Constitucional só foram aceites por este, em
virtude, precisamente, do reconhecimento da sua natureza transitória.
E a minha reflexão
orientou-se então para um diploma vigente (ainda) no nosso ordenamento jurídico
a que, como diria o povo, é dado muito pouco uso (ou quase nenhum,
acrescentamos nós). Referimo-nos à lei que trata da responsabilidade penal dos titulares
de cargos políticos, contida na Lei n.o 34/87, de 16 de Julho, sucessivamente
alterada até 2013.
Desta lei releva, para dar resposta à questão que escolhi para intitular esta
breve reflexão, o artigo 9.o, cujo teor, pela importância que assume, se
reproduz: “O titular de cargo político que, com flagrante desvio ou abuso das
suas funções ou com grave violação dos inerentes deveres, ainda que por meio
não violento nem de ameaça de violência, tentar destruir, alterar ou subverter
o Estado de direito constitucionalmente estabelecido, nomeadamente os direitos,
liberdades e garantias estabelecidos na Constituição da República, na
Declaração Universal dos Direitos do Homem e na Convenção Europeia dos Direitos
do Homem, será punido com prisão de dois a oito anos, ou de um a quatro anos,
se o efeito se não tiver conseguido.”
Ultrapassada que
foi a dezena dos acórdãos do Tribunal Constitucional que rejeitaram documentos
legislativos do governo e/ou da maioria da Assembleia da República que o
sustenta, é tempo de averiguar se esta conduta dos nossos governantes não
preencherá o tipo de crime (continuado) contra o Estado de direito que acima
ficou expresso.
Os portugueses preparam-se para dentro de menos de dois meses celebrar quatro
décadas de vivência em Estado de direito, que foi alcançado à custa de
orgulhosa luta contra a ditadura. Tenho para mim que, se não forem tomadas
medidas atempadas para defesa do que nos resta desse Estado de direito, em 2015
boa parte dele terá sido eliminada quando celebrarmos o quadragésimo primeiro
25 de Abril.
Advogada
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