José Martins* –
Revista Rubra
Não é fácil falar
do capital quando ele está em forte expansão. Seu triunfante movimento material
abafa penosamente as possibilidades do pensamento crítico. Há quase cinco anos
as principais economias dominantes – EUA, Alemanha e Japão – ampliam velozmente
a produção e a acumulação. Os lucros batem recordes nas suas cadeias produtivas
globais de valor e de mais-valia. Entretanto, o mesmo não se pode dizer das
principais economias dominadas, conhecidas como “emergentes” pela propaganda
liberal. Aqui, ao contrário, o que se passa é a desaceleração da acumulação.
No embalo do
desenvolvimento desigual e combinado, os festejados Brics, até algum tempo
atrás os queridinhos de nove entre cada dez economistas, transformam-se agora
nos patinhos feios da retomada global. Brasil, Rússia, Índia, China e África do
Sul lutam contra turbulências financeiras e cambiais. Essa é a beleza do
sistema capitalista: imensa capacidade de destruir e amaldiçoar suas imundícies
com a mesma rapidez com que elas foram construídas e glorificadas.
Acrescente-se aos
Brics outras importantes economias, como Argentina, Turquia, Indonésia,
Venezuela, etc., e temos à nossa frente esse quadro paradoxal de travamento da
totalidade das economias dominadas (mais-valia absoluta) no mesmo momento em que
as economias dominantes (mais-valia relativa) aceleram suas máquinas. Essa
liquidação do crescimento na periferia em plena fase de expansão da economia
global é uma particularidade muito importante do atual ciclo econômico,
iniciado no segundo trimestre de 2009.
Essa
particularidade deve definir em grande medida a forma e profundidade da próxima
explosão global. Funde-se a outras particularidades deste ciclo – notável
enfraquecimento das finanças públicas das economias dominantes e de intervenção
dos seus bancos centrais; crescente ingovernabilidade imperialista em amplos
espaços geopolíticos; esfacelamento do Estado social no centro do sistema, etc.
Depois das ações
nos mercados emergentes terem caído para os níveis mais baixos em cinco meses,
e suas moedas sofrerem fortes desvalorizações, calcula-se que mais de US$ 2
trilhões foram queimados nos mercados de capitais globais neste ano. Não é uma
quantia desprezível. Colapso dos preços no conjunto das economias emergentes.
Porém, no meio destes abalos, as vicissitudes cambiais e elevação dos preços na
Argentina são noticiadas como um caso isolado ou, pelo menos, como o caso mais
grave desta síndrome de liquidação de valor do capital. Vale a pena verificar
mais de perto o que se passa na terceira maior economia da América Latina.
POPULISMO DO
CAPITAL – O terrorismo da mídia econômica imperialista – The Economist,
Financial Times, Bloomberg, The Wall Street Journal, etc. – retrata as atuais
turbulências cambiais argentinas como resultadas de uma economia estagnada, que
nos últimos dez anos (era Kirchner) acumulou erros de política econômica,
populismo, protecionismo, nacionalismo etc. Por isso, resultados econômicos
ruins que agora se manifestam como repetição da grande crise vivida entre 2000
e 2002. Errado: uma verificação dos dados reais das economias emergentes mostra
muita gente graúda com os fundamentos econômicos bem mais deteriorados que a
Argentina – e se alguém imagina que a Argentina teve uma participação destacada
naquela queima de capital global citada acima, veja a recente evolução de
algumas importantes bolsas de valores.
Surpreendentemente,
o que se verifica é uma supervalorização do capital financeiro na economia
argentina, que se mantém neste ano (+ 9,10 % até 06/02/2014). Quer dizer, o
processo de pulverização do capital financeiro nos “emergentes” ocorreu
efetivamente nas demais grandes economias – Turquia, Índia, China, Brasil, etc.
Essa paradoxal valorização do capital na Argentina (e a desgraça da sua
população) fundamenta-se na particular articulação das suas classes dominantes
com o imperialismo e no claro favorecimento da política econômica dos Kirchner
aos seus interesses privados, nos últimos dez anos. Por isso, por trás daquela
estrondosa valorização das ações, neste período, encontra- se uma expansão não
menos estrondosa do seu Produto Bruto Interno (PIB).
No quarto trimestre
de 2011, o PIB do país havia subido a um patamar seis vezes maior que oito anos
antes – terceiro trimestre de 2003. No mesmo período, pelo mesmo critério de
medição, os PIBs de Brasil e México subiram a um patamar apenas duas vezes e
meia maior, com taxas mais baixas de acumulação.
Se for verdade que
predominou alguma política populista do governo argentino nos últimos dez anos,
pecado denunciado em todas avaliações liberais imperialistas sobre a situação
atual, o que se verifica pelos seus resultados é que que essa forma de governo
da era Kirchner foi excepcionalmente conveniente à acumulação do capital e, por
supuesto, aos lucros das classes dominantes. É uma tradição do peronismo. A
política de Peron, contam argentinos inteligentes, se assemelhava a de um
motorista que ao se aproximar de uma encruzilhada dava sinal de pisca à
esquerda e… entrava à direita.
Mas o neoperonismo
da era Kirchner parece bem menos espetacular que o primitivo do generalíssimo:
“O kirchnerismo reconstruiu o Estado imaginando um capitalismo regulado,
subsidiando a burguesia e esperando um funcionamento eficiente. Forjou um
regime com pilares para-institucionais e as semelhanças com o peronismo
primitivo não se estendem à relação com os trabalhadores. O kirchnerismo
procura desembaraçar-se da marca que mantinha tradicionalmente o movimento
operário dentro do peronismo. Procura congraçar- se com os capitalistas para
estabilizar um regime desligado das demandas sociais. É verdade que favoreceu
no início a reconstituição dos sindicatos, mas com o proposito de debilitar os
piqueteiros. Quando os grêmios recuperaram seu peso, o oficialismo embarcou em
uma política de fratura das centrais sindicais”[1].
Continuaremos a
seguir com o segundo ato da tragédia.
*José Martins,
economista, editor do boletim Crítica Semanal da Economia do Núcleo de Educação
Popular de São Paulo, professor na UFSC
CRÍTICA SEMANAL DA
ECONOMIA
EDIÇÃO Nº 1178/1179 – Ano 28; 2ª/3ª Semanas Fevereiro 2014.
Núcleo de Educação Popular 13 de Maio – São Paulo, SP.
[1] Claudio
Katz, Anatomia del Kirchnerismo, in La Pagina de Claudio Katz, 11/1/2013,
katz.lahaine.org
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