Dani
Costa – O País (ao) - Entrevista
Investigador
dos assuntos relacionados com Cabinda, Miguel Bembe, 39 anos, lança hoje, em
Lisboa, o livro “Mecanismos de Partilha do Poder e Acomodação das Elites”,
tendo como base o processo no enclave, onde nasceu em 1975. Nesta obra, que
surge depois de ‘A questão de Cabinda- Uma visão estratégica’, o autor
apresenta alguns subsídios para o aprofundamento da paz nesta parcela do
território angolano, à luz do Memorando de Entendimento assinado entre o Estado
angolano e as forças políticas de Cabinda. Para o autor, a autonomia da região
é uma questão de tempo.
P
- Vai lançar o livro ‘Mecanismos de partilha de poder e acomodação das elites’,
tendo como modelo o processo do enclave de Cabinda. O que é que pretende
oferecer?
MB
- Muito obrigado. É sempre um prazer recebê-los. Sabe que o jornal O PAÍS tem
sido um veículo muito importante e sempre actualizado para procurar informar em
primeira mão a actualidade do país e do mundo, principalmente na vertente
científica. Primeiro, devo dizer que esta obra resulta da tese de doutoramento em Ciências Sociais ,
na especialidade de Ciência Política que defendemos no Instituto Superior de
Ciências Sociais e Políticas, da Universidade de Lisboa, em 13 de Maio de 2014.
No fundo, o que tentamos fazer é apresentar algum modelo de partilha do poder
que pudesse contribuir para conferir maior sustentação teórica e rigor
metodológico ao processo instituído pelo Estatuto Especial de Cabinda.
Procuramos primeiro entender e identificar os principais motivos que estão na
base do conflito em
Cabinda. Reunimos três grupos principais destes factores,
identificamos os factores históricos, geográficos e culturais, sobretudo as
ambições político-territoriais e também sócio-económicas. Verificamos que estes
factores têm estado na base do conflito em Cabinda, mas principalmente a falta
de participação dos cabindas no planeamento e na gestão da própria província.
P
- Ainda existe conflito em Cabinda?
MB
- Refiro-me aos problemas sociais, económicos, porque depois da assinatura do
Memorando de Entendimento para a Paz e Reconciliação na província de Cabinda,
de facto, foi resolvido o conflito do ponto de vista militar. Porque nunca mais
ouvimos querela do ponto de vista militar em Cabinda, mas no estatuto especial
que o Governo e o Fórum Cabindês para o Diálogo concluíram como uma espécie de
resposta à vertente política do conflito verificamos algumas fragilidades no
ponto de vista da sua operacionalização. Sabe que um dos objectivos fundamentais
do Estatuto Especial é desenvolver a província de Cabinda, mas até agora,
embora alguns passos tenham sido marcados neste âmbito, continuam a existir
problemas estruturais do ponto de vista do desenvolvimento. Há, de facto,
questões de sub-desenvolvimento em Cabinda e isto retira aquilo que o Estatuto
Especial criou como expectativas nas populações e se calhar nos próprios
autores. Mas neste livro, quando estamos a falar no contributo que queremos
dar, na tentativa sempre incompleta de dar uma sustentação teórica e rigor
metodológico ao processo instituído, é porque na análise da estrutura do
Estatuto Especial verificamos algumas insuficiências e deficiências.
P
- A nível do Estatuto Especial?
MB
- A nível do Estatuto Especial de Cabinda verificamos algumas insuficiências
que dificultam a sua operacionalização. Destas verificamos, por exemplo, a
forte dependência política institucional do Governo Provincial de Cabinda face
ao Executivo central. Esta situação revela profundas fragilidades aos
mecanismos políticos estruturais e operacionais. Mas também nós podemos aliar a
este problema a tendência para a gestão centralizada da questão de Cabinda.
Isso também tem tornado frágeis as decisões que são tomadas e as acções
produzidas para atenuar os problemas no enclave. Nós verificamos que estas
decisões que são tomadas não têm beneficiado nenhum processo efectivo e
harmonioso de preparação teoricamente bem sustentada. E com maior rigor
metodológico. Daí o fio condutor da nossa pesquisa que resulta neste livro que
vamos lançar no dia 31 deste mês no Instituto Superior de Ciências Sociais e
Políticas.
P
- Quais são as causas das falhas existentes no Estatuto Especial de
Cabinda?Acha que há falta de vontade política das partes?
MB
- Com a assinatura do Acordo de Paz sobre Cabinda, o Governo e o Fórum Cabindês
para o Diálogo, uniram-se em defesa do conjunto, submeteram-se aos interesses
superiores do Estado e deram uma contribuição de inestimável valor para todos
aqueles que, a nível interno do país e no estrangeiro, continuam a acreditar no
futuro da soberania de Angola.
Todavia,
apesar do seu valor político-jurídico e histórico, o Estatuto Especial não
impulsionou alguma mudança essencial no sistema político-ideológico do Estado e
na estrutura do poder vigente em Cabinda.
Deste
modo, a convivência menos saudável entre Cabinda e Luanda persiste devido às
deficiências político-conceptuais e processuais do modelo estabelecido pelo
Decreto- Lei n.º /07 de Conselho de Ministros.
A
adequabilidade do modelo tem sido questionada, por falta de consensos internos
alargados sobre o paradigma adoptado em Cabinda. Verifica-se ,
que as áreas em que o Governo da Província de Cabinda deteria
<<competências especiais>>, nos termos do acordo, continuam na
esfera de decisão exclusiva do Executivo central.
Depois
disso não foram desenvolvidos esforços complementares para construir o consenso
entre os requisitos decisórios e o instrumento formal instituído para a
satisfação dessas exigências centrais.
Face
à este problema, a investigação da qual resultou este livro procurou estudar a
estrutura, as deficiências e as possibilidades de aperfeiçoamento do modelo de
resolução do conflito adoptado em Cabinda, face ao modelo associado de partilha
do poder.
Assim,
e face aos três modelos de partilha do poder apresentados, com destaque para o
consociativismo, o regionalismo e o federalismo, foi adoptado e concebido um
modelo de partilha de poder que melhor se adequa à Cabinda, tendo em conta a
sua aplicabilidade no contexto do Estado unitário angolano. Trata-se do Modelo
integrado associado a uma autonomia política, sem perder de vista a sua
necessária contextualização à realidade angolana. Fica, então claro de que não
se trata de um exercício laboratorial para tirar a província enclave de Cabinda
da sua contextualização natural angolana.
Como
poderá verificar, existem de facto, alguns passos que poderiam ser dados no
contexto da abertura política para com o enclave de Cabinda.
P
- Que tipo de passos?
MB
- A autonomia que é necessária e uma das soluções apresentadas e recorridas por
vários estados que têm este tipo de problemas de zonas periféricas. Com a
autonomia interna em Cabinda, no quadro angolano, penso que haveria mais
autonomia na estrutura do Governo Provincial de Cabinda, para poder decidir que
tipo de políticas poderiam ser desenvolvidas, na tentativa sempre incompleta de
responder aos reais problemas que assolam aquela população.
P
- Não se trata apenas de uma questão que passa pela descentralização?
MB
- Eu falaria de uma dupla descentralização. Falaria da descentralização político
administrativa. A perspectiva política é muito importante porque trataria
daquilo que se diz no Direito Administrativo: do ponto de vista administrativo
era muito importante conferir à província de Cabinda uma considerável autonomia
de decisão e competência específica de uma organização particular, bem como um
poder legislativo próprio. Ali estaríamos a falar numa perspectiva política.
Mas, também, entre os outros vectores apresentamos, a necessidade de definir
competências nos domínios administrativos, tal como pude sublinhar, mas também
num domínio financeiro e técnico, tanto da autoridade do Estado como do poder
regional em Cabinda.
Como poderá calcular, a regionalização de Cabinda nesta obra
é considerada como uma questão essencialmente técnica, ou seja, uma mera
criação de áreas administrativas. Mas quando estamos a falar da
descentralização estamos a nos referir a um problema fundamentalmente político
e jurídico. Se não se realizarem as questões, particularmente de autonomia
jurídica, financeira e técnica, a descentralização não terá um verdadeiro
conteúdo. Mas também apresentamos um outro vector, que é o terceiro em que
pensamos que seria necessário definir um sistema regional de ensino em Cabinda,
com mais direito a um lógico reconhecimento. Como sabe, nenhuma autonomia
política tem sustentabilidade sem um investimento prioritário na educação. A
educação e a valorização da pessoa humana são a base fundamental para qualquer
sucesso na política de desenvolvimento integral. Mas apresentamos também um
quarto vector, que é fundamentalmente no quadro da criação de uma zona de
eco-desenvolvimento. Nesta perspectiva, estamos a propor no modelo integrado
associado a autonomia para Cabinda, a necessidade de envolver e empenhar as
populações no processo de desenvolvimento da região e melhoria das suas
condições de vida, principalmente as elites. Estamos a verificar que existe, de
facto, em Cabinda, um problema de participação, mas não perdemos, na criação do
modelo que propormos para a Cabinda, a sua necessária contextualização, à luz
da realidade angolana. Por isso, entendemos que se a descentralização ou a
desconcentração se afiguram fundamentais, é também necessário garantir um
Estado forte, capaz de promover e assegurar a coesão nacional e definir as grandes
prioridades de desenvolvimento do país.
No
modelo para Cabinda será necessário definir os objectivos a atingir e a
avaliação dos interesses a satisfazer, para que possamos promover uma
colaboração sempre estreita entre o poder central e o poder regional cabindês.
Portanto, penso que não podemos nos limitar num modelo cooptativo. Mas neste
modelo estamos também a defender a necessidade de continuar com a cooptação das
elites de Cabinda no aparelho do Estado e no partido no poder.
P
- Não foi isso que aconteceu com a assinatura do Memorando, que prevê a
integração de alguns cabindas para o Governo e nas Forças Armadas?
MB
- Penso que a perspectiva mais elencada, o elemento mais forte no Memorando de
Entendimento, e que foi privilegiado, é o elemento vector cooptação das elites.
E isto, não há dúvida de que foi um sucesso. Como poderá ver, não é estranho
observar que mesmo aqueles que ficaram de fora estão a recorrer ao Memorando de
Entendimento. Portanto, este elemento é sempre importante, a cooptação das
elites, porque é muito importante que os cabindas estejam representados nas
estruturas do Estado, na perspectiva de defenderem os interesses não só da
província de Cabinda, mas de toda a Angola enquanto um povo.
P
- Além dos políticos, quais são as outras elites que deviam estar
representadas?
MB
- Não falo das elites que deveriam estar representadas, porque todas estão.
Quando estamos a falar das elites de Cabinda referimo-nos não somente das
políticas, mas também das elites militares, da sociedade civil, entre outras as
igrejas e organizações cívicas que também participam. Se o meu amigo continuar
a fazer a sua investigação de excelência, como sempre fez, constatará
rapidamente que a sociedade civil de Cabinda está de facto integrada em várias
acções de Angola em geral. E
sempre naquela perspectiva de parceira do Estado. Portanto, são todas estas
elites que estou a falar. Mas, recapitulando um pouco, em síntese, aquilo que é
o contributo fundamental neste trabalho é apresentar uma componente que poderá
servir como modelo para melhorar o Estatuto Especial assinado em Cabinda. Não estou
preocupado com a vertente da cooptação das elites políticas, da
desconcentração, mas gostaria que esta última fosse reforçada em Cabinda, na
perspectiva de criar mais serviços do Estado e a aproximação destes serviços às
populações. Talvez, aquilo que é o contributo fundamental desta obra é o modelo
que se poderia seguir na tentativa de se efectivar a descentralização política
e administrativa na província de Cabinda, no contexto do Estado unitário de
Angola. Como poderá verificar, há vários modelos que são apresentados.
(continua)
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