Leonardo
Sakamoto
O brasileiro
Marco Archer Cardoso Moreira foi fuzilado, na manhã de domingo,
na Indonésia, 15h30 deste sábado (17), no Brasil, por ter sido condenado
por tráfico de drogas. Ele tentou entrar no país, em 2003, com 13,4 kg de
cocaína em tubos de uma asa-delta.
Muita
gente nas redes sociais está louvando a atitude do governo indonésio, tuitando
e postando que o traficante brasileiro teve o que mereceu e pedindo para
que a lei mude no Brasil a fim de que a pena de morte passe a valer
para casos penais comuns (ela persiste apenas em tempos de guerra) e
salvar as “pessoas de bem'' do caos.
Há
ainda os que exigem que a polícia daqui faça o mesmo: chega de julgamentos
longos e com chances dos canalhas se safarem ou de “alimentar bandido'' em
casas de detenção. Execute-os com um tiro, de preferência na nuca para não
gastar muita bala, e resolve-se tudo por ali mesmo. Limpem a urbe.
E
vamos indo da barbárie para a decadência sem passar pela civilização.
“Ah,
lá vem o japa idiota defender bandido''. Não, não estou. Mas, para muita gente,
isso não importa. Já formaram um conceito em sua cabeça e, a partir daqui, tudo
o que eu escreva para fomentar um debate será desconsiderado em nome da saída
mais fácil.
Primeiro,
mais cedo ou mais tarde, e gostem vocês ou não, haverá uma paulatina
descriminalização e regulamentação do comércio e do uso de psicoativos, com, é
claro, a necessária e prévia introdução de um sistema de informação e
conscientização sobre o seu uso. Por uma razão simples: o negócio formal também
dá dinheiro. E muito. Nos Estados do Colorado e na capital Washington DC, por
exemplo, os Estados Unidos já regularizaram a maconha – tal como nosso vizinho
Uruguai. Outros países discutem o mesmo, incluindo substâncias mais fortes, em
uma discussão de longo prazo. Sabem que a Guerra às Drogas falhou, servindo
apenas para controle geopolítico e para fortalecer grupos de poder locais e o
tráfico de armas. E, a propósito, se vocês soubessem como historicamente foi definido
o que é droga e o que não é, não levariam isso muito a sério.
Mas
este não é o tema. Marco desrespeitou a legislação de outro país e, por conta
disso, é natural que fosse punido. Mas pagar com a própria vida foi um
custo demasiadamente alto.
“Ah,
japonês, mas e as vidas que ele tirar com essas drogas?'' Nesse sentido,
acidentes com automóvel mataram mais que as drogas no último século. Que tal
punir as montadoras? “Ah, mas aí depende do uso que se faz automóvel e de como
aprendemos a usa-lo''. Essa relação exagerada que fiz serve para mostrar que o
debate não é tão simples como te vendem na TV.
Para
muita gente aqui, execuções sumárias são lindas, sejam as feitas legalmente e
“informalmente'' pela mão do próprio do próprio Estado (ao caçar traficantes em
morros cariocas ou na periferia da capital paulista), sejam as feitas pelas
mãos da população (ao linchar suspeitos de crimes por turbas enfurecidas e
idiotizadas).
Se
com o devido processo legal, inocentes amargam anos de cadeia devido a erros,
imagine sem ele? Já trouxe aqui uma miríade de casos de pessoas que foram
espancadas pela irracionalidade coletiva, acusadas de serem responsáveis por
crimes que, posteriormente, provaram-se não terem relação. Não tiveram direito
à defesa ou à recurso, que são fundamentais, uma vez que a decisão tomada
através do processo legal – por mais que seja falha – ainda é o melhor que
temos.
Ao
mesmo tempo que pessoas nas redes sociais estão tendo orgasmos múltiplos com a
execução pública do brasileiro na Indonésia, alguns comentaristas na imprensa
(e não estou falando dos programas sensacionalistas espreme-que-sai-sangue)
parecem vibrar a cada pessoa abatida na periferia, independentemente quem quer
que seja.
Jornalistas,
cuja opinião respeito, optaram pela saída fácil do “isso é guerra contra as
drogas e, na guerra, abre-se exceções aos direitos humanos”, tudo em defesa de
uma breve e discutível sensação de segurança.
Vale
lembrar que as verdadeiras batalhas do tráfico sempre aconteceram longe dos
olhos da mídia, uma vez que a imensa maioria dos corpos contabilizados sempre é
de jovens, pardos, negros, pobres, que se matam na conquista de territórios
para venda de drogas ou pelas leis do tráfico. No Brasil e fora dele.
Os
mais ricos sentem a violência, mas o que chega neles não é nem de perto o que
os mais pobres são obrigados a viver no dia a dia. Mesmo no pau que está
comendo, sabemos que a maioria dos mortos não é de rico da Lagoa, da Barra ou
do Cosme Velho. Ou do Morumbi, do Jardim Europa e de Perdizes.
Considerando
que muitos policiais, comunidades e traficantes são de uma mesma origem social,
é uma batalha interna. Então, que morram, como disseram alguns leitores
esquisitos que, de vez em quando, surgem neste blog feito encosto.
Como
já disse aqui várias vezes, de tempos em tempos, a violência causada pelo
crime organizado retorna com força ao noticiário, normalmente no momento em que
ela desce o morro ou foge da periferia e no, decorrente, contra-ataque. Neste
momento, alguns aproveitam a deixa para pedir a implantação de processos de
“limpeza social” e de execuções de bandido.
Muitas
das postagens que estão correndo nas redes sociais sobre a pena de morte para o
brasileiro na Indonésia não estão refletindo sobre a gravidade de seu
delito (ele não atentou contra a vida de ninguém) para concordar com as leis
indonésias, mas projetando o seu sentimento pessoal sobre o tráfico de drogas
no Brasil e o seu desejo de vingança contra aquilo que, diariamente, parte
da mídia escolhe mostrar.
Desejo
tardio. Porque, como todos nós sabemos, a pena de morte já existe em São Paulo, no Rio de
Janeiro e em tantas outras grandes cidades, apesar de não institucionalizada,
como instrumento policial. Há também milícias que se especializaram nisso,
inclusive, ao avocar para si o monopólio da violência que, por regra, deveria
ser do Estado.
Gostaria
que fossem tornados públicos os exames dos legistas. Afinal de contas, acertar
um tiro na nuca de um suspeito no meio de um confronto armado demanda muita
precisão do policial – e depois registrar o ocorrido como auto de resistência
demanda criatividade.
Para
contrapor os bandidos estamos optando pelo terrorismo de Estado ao invés de
buscar mudanças estruturais (como garantir real qualidade de vida à população
para além de força policial dia e noite) e punir de forma exemplar crimes, como
prevê a lei, contra a vida.
Ninguém
está defendendo o crime, muito menos bandidos e traficantes – defendo a
descriminalização das drogas como parte do processo de enfraquecimento dos
traficantes e pelas liberdades individuais, mas isso é outra história.
O
que está em jogo aqui é que tipo de Estado e de sociedade que estamos nos
tornando ao defendermos pena de morte ou Justiça com as próprias mãos. Do que
estamos abrindo mão com isso?
Enfim,
como já leram várias vezes por aqui, de vez em quando não sei de quem tenho
mais medo: dos bandidos, dos “mocinhos'' ou de nós mesmos.
Atualizado
às 17h do dia 17/01/2015 para incluir a informação sobre a morte do brasileiro.
*
Leonardo Sakamoto é jornalista e doutor em Ciência Política. Cobriu
conflitos armados e o desrespeito aos direitos humanos em Timor Leste, Angola e
no Paquistão. Professor de Jornalismo na PUC-SP, é coordenador da ONG Repórter
Brasil e conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de
Escravidão.