José Goulão – Mundo Cão
O
presidente da Turquia, Recep Payyp Erdogan, afirma que a tentativa de golpe
militar de sexta-feira foi um “presente de Deus”: vai permitir-lhe “limpar” as
forças armadas.
Quem
fala verdade não merece castigo, pelo que todos os deuses evitarão punir o autocrata
turco, embora sabendo que muitos são os seus pecados.
E
“limpezas” são a especialidade deste padrinho e protector de uma miríade de
grupos de mercenários e terroristas entre os quais se destacam, para os que não
estão lembrados ou o ignoram, o Daesh ou Estado e Islâmico e a Al-Qaida nos
seus muitos e variados heterónimos.
Limpou
o país da oposição, acusando os principais adversários de servirem os direitos
nacionais curdos e ameaçando privá-los da nacionalidade turca. Para que não
surgissem obstáculos à sua ascensão ao topo presidencial do poder fez manipular
actos eleitorais através da propaganda, da censura e do medo, de tal modo que
nem os observadores do Conselho a Europa e da OSCE, embora reconhecendo as
irregularidades em privado, ousaram torná-las públicas e definitivas.
Limpou
o aparelho judiciário e militar saneando centenas de juízes e os procuradores
que denunciaram a corrupção governamental e da família Erdogan, designadamente
a sua familiaridade pessoal e financeira com o banqueiro saudita Yassim
al-Qadi, próximo de Bin Laden e conhecido internacionalmente como “o tesoureiro
da Al-Qaida”. Por essa razão, está sob a mira da ONU, o que não o impede de
deslocar-se a Ancara em avião privado para conviver e gratificar generosamente
a família presidencial.
Vem
limpando paulatinamente as forças armadas, mas este “presente de Deus”, como
admitiu o próprio Erdogan, proporciona-lhe uma oportunidade de ouro para
acelerar o processo. A partir de agora ruirá o maior obstáculo secular à
confessionalização de um regime turco formatado em estrutura ditatorial e em
teor fundamentalista islâmico.
Erdogan
fala claro, disso não tenhamos dúvidas. Há 20 anos, em plena ascensão na
carreira política, iniciada entre os fascistas e supremacistas “lobos
cinzentos”, definiu a democracia como “um eléctrico que abandonamos quando
chegamos à nossa paragem”. Recentemente falhou a consulta para impor uma
Constituição “inspirada em Hitler” – as palavras são suas – de modo a
consolidar um poder presidencial absoluto.
A
seguir a esse intuito por ora fracassado, Erdogan começou então a receber
“presentes de Deus”.
O
atentado contra o aeroporto de Istambul parece ter sido um deles. Apear da
autoria não ter sido reivindicada, Erdogan atribuiu-o ao Daesh, por
conveniência da sua própria imagem internacional; mas por que razão os
protegidos iriam atacar no coração do protector? Provavelmente por convergência
de interesses – uma mão lava a outra, não é o que se diz? Um atentado é, sem
dúvida, oportunidade de ouro para reforçar poderes de excepção e perseguir inimigos
internos vários, mesmo que nada tenham a ver com a violência.
Quando
ainda decorre o rescaldo do acto terrorista surge o golpe militar, com
inegáveis debilidades de amadorismo num exército dos mais poderosos da NATO,
precisamente com Erdogan ausente, “de férias”, circunstância excelente para um
regresso triunfal, afirmativo, justificando limpezas. Deus não poderia ter sido
mais generoso, em boa verdade.
Enfim,
é a este ditador turco que a União Europeia paga anualmente três mil milhões de
euros confiscados aos nossos impostos para impedir que cheguem à Europa os
refugiados das guerras que os donos da Europa provocam. Para que conste, não há
um vínculo formal entre o conselho Europeu e Erdogan sobre esta verba; foi
estipulada apenas em comunicado de imprensa dos chefes de Estado e de governo
da União Europeia.
Foi
com este presidente turco que o governo francês negociou a garantia de não
haver atentados do Daesh durante o Euro 2016, em troca do apoio à criação de um
Estado curdo no Norte da Síria. Constatámos, da maneira mais trágica, que ao
Daesh bastaram apenas quatro dias para se libertar do período de nojo, fazendo
gato-sapato do securitarismo fanático e inconsequente de Hollande e Valls.
É
a este presidente turco que a União Europeia ainda reconhece credenciais de
democrata, apesar de o próprio rei Abdallah da Jordânia ter revelado o seu
apoio ao Daesh, à Al-Qaida, ao contrabando de petróleo que serve de
financiamento ao Estado Islâmico e de enriquecimento à mafia familiar de
Erdogan.
Foi
comovente – e patético – o apoio de grande parte da comunidade mediática a
Erdogan durante as vicissitudes da tentativa de golpe e ao uso dos seus
apoiantes como escudos humanos e carne para canhão nas ruas, praças e pontes
das principais cidades da Turquia.
Entre
a componente militar e a mafia governamental de Erdogan estavam em luta,
durante a tentativa de golpe, dois conceitos de regime autoritário: um secular,
outro fundamentalista islâmico. A democracia e os interesses populares não
tinham nada a ver com aquela guerra entre elites interesseiras e pouco ou nada
preocupadas com as pessoas.
O
terrorismo islâmico, a guerra e a anarquia no Médio Oriente, porém, têm muito a
ganhar com a absolutização do poder de Erdogan em Ancara. Ou seja, é impossível
estar simultaneamente contra o terrorismo islâmico e temer pelo futuro político
de Erdogan. A democracia não passa por aí, mas também já pouco se sabe dela
nesta União Europeia.
Porém,
quando a vida das pessoas está à mercê destes “presentes de Deus” é possível
testemunharmos os acontecimentos e os ditos mais bizarros.
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