Rafael
Correa está muito próximo de eleger seu sucessor. Seu segredo: desprezar o
“ajuste fiscal”, realizar política econômica contrária ao que exigiam os
“sábios” neoliberais
Mark
Weisbrot – Outras Palavras - Tradução: Cauê S. Ameni
Em
uma mudança apoiada e bem recebida por Washington, a América Latina está
vivendo, nos últimos anos, uma guinada à direita. As três maiores economias da
região – Brasil, Argentina e Peru – têm agora presidentes de direita com
estreitas relações com Washington e sua política externa. A narrativa-padrão do
“Consenso de Washington” ignora qualquer envolvimento dos EUA na região. Para
ela, os governos de esquerda eleitos na América do Sul nas duas últimas décadas
surfaram no boom das commodities para conquistar vitórias populistas,
promovendo assistência aos mais pobres e um gasto supostamente insustentável.
Quando este boom entrou em colapso, prossegue a narrativa, também desabaram as
finanças dos governos de esquerda e, consequentemente, seus destinos políticos.
Mas
isso esta narrativa é exagerada e interesseira demais. O Equador é um bom
exemplo de como um governo de esquerda obteve sucesso na última década por meio
de mudanças positivas e criativas na economia política, assim como em reformas
financeiras, institucionais e regulatórias.
Os
detalhes também merecem ser observados. A experiência equatoriana mostra que
boa parte da retórica sobre como a “globalização” restringe as escolhas dos
governos e os obriga a agradar os investidores internacionais é falaciosa.
Mesmo um país em desenvolvimento, relativamente pequeno e com renda média, pode
adotar opções alternativas de política viáveis – desde que se elejam governos
independente e responsáveis a ponto de considerar tais opções.
Os
resultados de uma década de governo de esquerda no Equador (2007-16) incluem
reduções de 38% na pobreza e 47% na extrema pobreza. Os gastos sociais, assim
como o PIB, duplicaram – o que incluiu um aumento nos gastos com Educação e
Saúde. A matrícula escolar aumentou radicalmente entre os jovens. As despesas
com ensino superior, em relação ao PIB, tornarm-se as mais altas na América
Latina. O crescimento da renda média anual per capita foi muito maior do que
nos 26 anos anteriores (1,5% versus 0,6%). A desigualdade foi consideravelmente
reduzida.
O
investimento público mais que dobrou como percentual do PIB. Os resultados
foram aparecendo amplamente em novas estradas, hospitais, escolas e acesso à
eletricidade.
Rafael
Correa foi eleito presidente do Equador em 2006 e assumiu o cargo em janeiro de
2007. Ex-ministro da Economia que estudou nos Estados Unidos, ele resolveu
enfrentar alguns dos problemas estruturais e institucionais que impediam o país
de avançar. A ação política do Estado havia sido tolhida devido à adoção, pelo
Equador, do dólar norte-americano como moeda própria, em 2000. Isso significa
que o governo não podia influenciar sua taxa de câmbio e estava limitado em sua
política monetária. Isso reduziu a capacidade de agir do Banco Central como um
credor de última instância para o sistema bancário.
Significa
que o governo precisava ser mais eficiente e criativo, para exercer mais controle
sobre o sistema financeiro. Em 2008, uma nova Constituição foi aprovada em
referendo e o Banco Central – que antes era “independente” e limitava-se ao
controle da inflação – agora fazia parte da equipe econômica do governo. Isso
foi muito importante na coordenação da política econômica. O senso comum entre
a maioria dos economistas – e um dos pilares do neoliberalismo – é que os
Bancos Centrais devem ser independes dos governos eleitos. Na prática, isso
significa geralmente que eles não precisam se reportar ao povo, mas a poderosos
interesses financeiros.
Uma
nova lei exigiu, em 2009, que os bancos equatorianos trouxessem 45% de seus
ativos líquidos para o país; essa exigência aumentou para 60% em 2012, e o
nível foi para 80% em 2015. Essas e outras reformas, que evitaram a fuga de
divisas, foram essenciais para superar o primeiro desafio sério do novo
governo: a crise financeira de 2008 e a recessão mundial em 2009. O Equador foi
um dos países mais atingidos no hemisfério, já que os preços do petróleo
despencaram e o governo dependia deles para manter a maior parte de sua
receita. Outras grande fonte de dólares, as remessas – principalmente o
dinheiro enviado para o país por equatorianos que trabalham no exterior –
também entrou em colapso durante a recessão. Esse duplo choque poderia ter
causando uma recessão prolongada ou uma enorme depressão, mas isso não ocorreu
– graças ao aumento nos gastos do governo e um a uma vasta política de
estímulo, em 2009. A recessão durou menos, custando cerca de 1,3% do PIB.
O
outro grande choque econômico foi a queda, muito mais prolongada, nos preços do
petróleo, que começou no terceiro trimestre de 2014. Então, o governo foi ainda
mais criativo. Além de adotar políticas fiscais expansinistas (ou seja, de
viver em déficit fiscal) o Banco Central criou dinheiro, comprando títulos
públicos, em política semelhante ao “quantitative easing” praticado pelo
Federal Reserve (o BC dos EUA). Mas os recursos foram usados como empréstimo,
para mais investimento e gastos do governo. Foi uma ação inesperada, para um
governo que sequer tem sua própria moeda – mas provou-se muito útil na
recuperação da economia.
A
decisão mais importante, porém foi talvez a mais heterodoxa. O governo impôs um
leque de tarifas sobre as importações, utilizando a brecha oferecida pela
Organização Mundial do Comércio (OMC) para salvaguardar países em situação de
emergência em seu balanço de pagamentos. A redução das importações, em 2015-16,
provocou um crescimento de 7,6 pontos percentuais no PIB, durante estes anos.
Isso compensou reduções de gastos que o governo teve de adotar, quando as
receitas caíram.
O
governo de Correa e seu partido (Aliança País) foi capaz de alcançar assim
progresso social e econômico consideráveis, apesar de duas recessões causadas
por choques externos graves. Ao contrário do que prega a narrativa do Consenso
de Washington, esta ação foi possível graças a grandes reformas institucionais,
regulação financeira e decisões políticas inteligentes, muitas delas contrárias
às receitas econômicas do neoliberalismo.
O
fato de próprio presidente ser um professor de Economia e saber o que estava
fazendo contribuiu com sua opção por um governo progressista, desde o primeiro
momento. O governo de Correa, ainda assim, foi obrigado a enfrentar interesses
econômicos poderosos – inclusive os banqueiros, que eram controlava a maior
parte das emissoras de TV, no início do mandato. Em 2011, um referendo proibiu
os bancos de possuírem canais (e vice-versa). Isso ajudou a reduzir a força dos
banqueiros no debate público. Mas a mídia continuava a ser uma força
partidarizada e de direita, como em outros países governados pela esquerda – a
exemplo do Brasil, onde a mídia comercial liderou um esforço bem-sucedido para
derrubar a presidente Dilma Rousseff.
O
legado do governo de Correa foi testado nas eleições destes domingo, para a
presidência e a Assembleia Nacional [Lenin Moreno, vice-presidente e candidato
da Aliança País à reeleição lidera as apurações, com quase 40% dos votos. Caso
atinja este percentual, não haverá segundo turno (Nota de Outras Palavras)].
Moreno é conhecido por seu ativismo, nacional e internacional, em favor dos
portadores de deficiência (ele próprio está em cadeira de rodas desde foi
atingido por uma bala num assalto, em 1998). Popular em seu partido e entre a
população, promete ampliar as conquistas sociais e econômicas da última década.
O
oponente mais próximo de Moreno é Guillermo Lasso – previsivelmente, um grande
banqueiro – que promete redução de impostos, inclusive a eliminação dos
tributos sobre ganhos de caṕital,
o que pode beneficiar os grupos sociais enriquecidos. Lasso foi derrotado por
Correa em 2014, por amplíssima margem. Outra oponente é a deputada Cynthia
Viteri, que propõe desmantelar algumas das principais reformas de Correa,
inclusive para restaurar a “autonomia” do Banco Central, remover os impostos
sobre remessas de dinheiro ao exterior e reduzir o poder do governo central.
Qual
a importância desta eleição? Como frisou Noam Chomsky, mês passado, “no início
deste século, a América Latina começou, pela primeira vez em 500 anos, a
livrar-se do imperialismo ocidental”. A “onda rosa” na Améria do Sul – cidadãos
de países em desenvolvimento obtendo progressos sociais e econômicos por meio
de eleições – é também um evento raro na história mundial. Muito poucas das
histórias de desenvolvimento bem-sucedidas no século 20 e depois (China, por
exemplo) deram-se em democracias eleitorais. Entre 2002 e 2014, a taxa de
pobreza na América Latina aiu de 43,9% para 28,2%, depois de ter crescido nos
vinte anos anteriores.
Tem
sido difícil manter todos estes ganhos – soberania nacional, progresso social,
democracia. A região depara-se com a desaceleração das economias mundial e
regional; uma direita ressurgente que ainda controla a maior parte da riqueza,
da renda e da mídia dos países; e, em alguns casos, os próprios erros dos
governos de esquerda. Se tudo isso fosse pouco, há Washington, que teve, nos
últimos 16 anos, uma única estratégia: livrar-se dos governos de esquerda que
for possível eliminar, e assegurar-se de que eles não voltarão. Ninguém espera
atitude melhor do novo ocupante da Casa Branca.
Não
haverá alarde algum na mídia, mas tanto os apoiadores quanto os oponentes do
movimento da América Latina rumo à independência e a governos progressistas no
século 21 estarão muito atentos a esta eleição.
Foto:
Professor de Economia, Correa apostou que era preciso ampliar o gasto social,
em vez de cortá-lo. Os resultados deram-lhe razão; os eleitores parecem dispostos
a fazê-lo também
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