É preciso fazer reverter esta
política e voltar a investir no desenvolvimento do SNS segundo os seus
princípios fundadores, como manda a Constituição. É essa a melhor solução para
os utentes e para os profissionais e a única que pode assegurar segurança no
futuro.
Jorge Seabra | AbrilAbril |
opinião
Não há bicho-careta de ministro
ou secretário de Estado das últimas décadas que, hipocritamente, não papagueie
que o Serviço Nacional de Saúde (SNS) constitui «uma grande vitória da
democracia», «uma espantosa construção do Portugal de Abril», parecendo que a
repetição da verdade serve apenas para disfarçar as mentiras que virão a
seguir.
Não há ministro ou secretário de
Estado que, perante os espantosos resultados obtidos pelo SNS na sua fase
ascendente, não tenha procurado modernizá-lo, flexibilizá-lo, empresarializá-lo,
tornando-o cada vez pior, mais pesado, mais partidarizado, mais burocratizado e
com menos dinheiro, estrangulando carreiras, equipas e serviços, encerrando,
fundindo e desarticulando hospitais e centros de saúde, apaparicando negócios e outsourcings,
fazendo crescer os lucros da grande privada a quem também se quer deixar o
«mercado» dos cuidados continuados.
Com o fim dos governos do «arco
de poder» (PS, PSD, CDS), e a travagem da brutal agressão dos seguidores da troika,
a esperança de uma reversão na ofensiva contra o SNS, ressurgiu.
É verdade que as nomeações do
ministro Adalberto Fernandes (gestor da PPP do Hospital de Cascais) e do
ex-secretário de Estado da Saúde, Manuel Delgado (administrador da IASIST,
empresa espanhola que vende software aos hospitais), –ambos com
declarações públicas a regurgitarem elogios à Saúde privada – levantaram
dúvidas sobre o seu empenhamento no reforço do serviço público.
Mas as pessoas e os governos são
também a sua circunstância, novas relações de força podem criar outras
vontades, e talvez na Saúde fosse de esperar uma ruptura com hábitos antigos.
Nada disso, infelizmente,
aconteceu. E se, em 2017, houve uma inegável melhoria nas condições de vida da
maioria dos portugueses, na Saúde muito pouco se avançou e apenas se
confirmaram as piores espectativas.
Contratos soltos para resolver
urgências no Sul com médicos do Norte, e consultas no interior com médicos do
litoral, gratificações para mais horas e mais doentes a quem já está no burn
out do esgotamento (desprezando os preocupantes estudos que o comprovam),
ameaças de obrigar os novos especialistas a ficarem à força no SNS
para «pagarem o que se gastou com eles», travando a fuga que o cansaço e a
falta de estímulo criaram, mostram que, também para o actual Ministério da
Saúde, «qualidade», «melhoria» e «ensino» resumem-se à ideia de «educar» pelo
chicote e encontrar bodes expiatórios para a desestruturação e desnatamento do
SNS.
Não é, pois, estranho que
continue a sangria. Em 2015, segundo cálculos fornecidos pelas ordens,
havia cerca de 21 000 profissionais de Saúde emigrados. Entre 2014 e 2016
emigraram 1225 médicos e, segundo um estudo do Instituto de Saúde Pública da Universidade
do Porto, quatro em cada dez ponderem abandonar o SNS. Em 2014, houve mais
pedidos de declarações à Ordem dos Enfermeiros para fins de emigração (2850) do
que enfermeiros formados (2633). Dez por cento dos Técnicos de Saúde formados
na Escola Superior de Tecnologia de Saúde em 2013/2014 emigraram. O contrário
do que acontecia antes da febre de «melhorias» com que os sucessivos governos
das últimas décadas atacaram o SNS.
Desiludidos com o não cumprimento
das expectativas quanto às condições de trabalho e às progressões e carreiras,
em 2017 abundaram os protestos e greves que mobilizaram praticamente todos os
grupos profissionais da Saúde (médicos, enfermeiros, técnicos, auxiliares),
assistindo-se também ao recrudescer dos velhos métodos de manipulação da
comunicação social, usando os piores truques para falsear as reivindicações em
causa e dividir os seus protagonistas.
Reapareceram parangonas
insidiosamente acusatórias a toda a largura das primeiras páginas, como a do Público de
15 de Dezembro – «As infecções hospitalares baixam e 73% dos médicos já
lavam as mãos», (depreendendo-se que 27% nunca as lavam...)
– ultrapassando a fasquia da mais completa e dolosa idiotice, ignorando a
complexidade do problema e a multiplicidade de factores favorecedores , como a
falta de funcionários de limpeza, as más condições de instalações e
equipamentos, doentes acamados em macas, a quebra de coerência nos
procedimentos de equipas contratadas ad hoc, ou o exagero no ritmo de
ocupação dos blocos operatórios, para além… da falta de sabão e/ou de
desinfectantes nos locais apropriados!
Declarações ameaçadoras como as
do ex-secretário de Estado, Manuel Delgado, com a superioridade moral que se
lhe reconhece, afirmando que «o SNS é o serviço público que mais ausências
tem ao trabalho. É uma vergonha nacional e internacional (...), e vamos
apertar a malha», são exemplo desses eflúvios de manipulação e demagogia em que
se induz a ideia de que, se o SNS tem uma resposta deficiente, é por falta de
qualidade e dedicação dos seus profissionais.
Na realidade, nada de novo. Um
discurso agressivo e divisionista contra médicos, enfermeiros e trabalhadores
do SNS, que tem subindo de tom desde que os governos do «arco do poder» foram
atacando as sua traves mestras, desviando as atenções da sua própria
responsabilidade em todo o processo de degradação do SNS e dos fretes que vão
fazendo à grande privada.
Como nas doenças, os sinais
clínicos major e minor da continuação, no ano que agora
acaba, da política de ataque ao serviço público estão aí:
Dos primeiros, o apontar para a
continuação das parcerias público-privadas em Braga e em Cascais, cuja
renegociação (e não o seu fim) foi justificada por uma «rigorosa avaliação
técnica do custo-benefício», como se não fosse uma opção política. No último
caso, aliás, a decisão foi adiada por mais dois anos, beneficiando o grupo
privado com o prolongamento do contrato. De resto, há novas PPP em marcha,
como a da construção e manutenção do novo Hospital de Lisboa Oriental, avaliada
em 415 milhões de euros.
Sinais minor não
faltam, para além dos já citados. Da hipócrita e descabida encenação moralista
da proibição de jornadas científicas com patrocínios de farmacêuticas nas
instalações do SNS (beneficiando a indústria hoteleira e dificultando a
formação contínua que o Estado não assegura), ao retalhar dos cuidados
primários com desresponsabilização do Poder Central, entregando uma fatia da
sua gestão às autarquias num viciado processo de «municipalização», à recente
criação dos Centros de Responsabilidade Integrada (CRI) nos serviços
hospitalares, permitindo a formação, no seu seio, de grupos autónomos de
médicos, gestores e enfermeiros para a execução de «empreitadas», que
contratam, com a Administração, o tratamento de um certo número de doentes por
um período de três anos, actuando como uma empresa encravada no interior do
Serviço.
Nada melhor para fragmentar ainda
mais o SNS e promover a divisão de equipas e serviços, quebrando a sua
homogeneidade técnico-científica e o ensino das novas gerações, já tão sacrificados
pela acéfala corrida aos números da «produtividade» e pelos contratos de
empresas externas com médicos à hora e ao quilómetro.
Nas palavras do Presidente
Marcelo, referindo-se aos sectores público e privado da Saúde, há «dois
grandes hemisférios que se dividem relativamente à Saúde em Portugal», e «é por
aí que passa a procura de uma fórmula intermédia…» (Diário de Notícias, 17
de Novembro).
Também o Presidente parece
ignorar o papel central e prioritário do SNS inscrito na Constituição, que
recusa falsos eclectismos de soluções «intermédias». E a resposta do
Ministro da Saúde no modernaço e polémico focus group com o Governo,
em Aveiro, já depois do súbito ataque de descentralização do Infarmed, não
deixa dúvidas sobre o sentido privatizador que lhe vai na alma.
A uma pergunta sobre o atraso de
uma consulta, Adalberto Fernandes assegurou que, a partir de Janeiro de 2018,
haverá nova legislação «muito severa, muito determinada», não para
investir mais no SNS de forma a este poder responder ao problema, mas para
assegurar que os doentes tenham um atendimento eventualmente mais rápido, pago
(pelo Estado) numa instituição privada.
Vão, pois, multiplicar-se uma
espécie de cheques-consulta que, aparentando boas intenções, agravam o
problema, consolidando o esvaziamento e desinvestimento no SNS, exportando
massivamente doentes para a grande privada, deixando umas migalhas para as
pequenas clínicas «locais», que assim pensam erroneamente subsistir.
A Saúde privada, contudo,
como diz o insuspeito Josep Figueras, director do Observatório Europeu de
Políticas e Sistemas de Saúde, para além de outras insuficiências, «não
assegura o tratamento dos 10% dos doentes que consomem 80% dos recursos» (jornal i de
26 de Novembro).
«Dois hemisférios», de
facto. Um público, subfinanciado e a definhar, que, cada vez mais, parece ser
vocacionado para os pobres. Outro, o dos grandes grupos privados, com rendas
asseguradas pelo Estado e pela ADSE , que enchem os cofres de novos e
velhos «donos disto tudo», com PPP, convenções, contratos e
sobrefacturação, levando o dinheiro que falta ao SNS, assim ajudado a
tornar-se «insustentável».
A esse bolo, ainda se juntam as
elevadas percentagens cobradas aos médicos e técnicos «liberais» pelos
gabinetes de consulta, que, apesar da falsa fama de ganhos passados, se vêm
«uberizados» com honorários esmagados pelos grandes grupos que tudo
decidem e neles mandam.
Na Saúde, parecem pois quererem
manter-se as tropelias do business as usual, dentro e fora do SNS,
aproveitando também o inevitável definhamento da pequena
privada «artesanal», cujo fim os grandes grupos privados e o Estado
procuram acelerar com a longa manus cúmplice da ERS (Entidade
Reguladora da Saúde), integrando-as nas «grandes superfícies».
É preciso mudar. É preciso fazer
reverter esta política e voltar a investir no desenvolvimento do SNS segundo os
seus princípios fundadores, universalistas e solidários, para que o serviço
público possa dar uma resposta atempada e de qualidade a todos os cidadãos.
Como manda a Constituição. É essa a melhor solução para os utentes e para os
profissionais e a única que pode assegurar segurança no futuro.
E, em 2017, ainda não foi isso
que aconteceu.
Imagem: Inácio Rosa / Agência Lusa
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