No drama dos Rohingya, que fogem
em massa de Myanmar, retrato de nossa época. A cada ano, multidões maiores são
obrigadas se deslocar em função de perseguições políticas e mudanças climáticas
Alex Randall, no Le Monde Diplomatique inglês | Outras
Palavras | Tradução: Inês Castilho
Abu Siddique será contado duas
vezes nas estatísticas de refugiados deste ano. Uma vez por fugir de Myanmar
atravessando a fronteira de Bangladesh, após a perseguição sofrida pelos
Rohingya [1]. E uma segunda vez por tentar escapar da inundação das monções que
se seguiram. Essa provavelmente não será a última vez que ele figura nas
estatísticas.
Ele explica sua situação à Agência
de Refugiados da ONU: “Estamos nos mudando porque durante as monções a água
sobe muito alto aqui. Sobe até o nosso pescoço quando chove”. A Agência de
Refugiados está ajudando algumas famílias nessa situação a mudar-se para um
novo acampamento. Outros terão de se virar sozinhos. Quando Siddique mudar, ele
estará vivendo com sua família num teto provisório, talvez a salvo da enchente
das monções mas vulnerável a um ciclone na costa exposta do Bangladesh. Quase
todo mundo gostaria de se mudar para um lugar mais seguro e com mais
perspectivas de trabalho e moradia.
Novos dados revelam que 30
milhões de pessoas foram forçadas a deixar suas casas, no ano
passado, em razão de conflitos e desastres ambientais. A maior parte estava
associada a desastres relacionados ao clima – inundações, furacões e secas. À
medida em que as mudanças climáticas começam a se alastrar, esses números
tendem a piorar.
A análise de algumas dessas
crises revela conexões preocupantes entre o deslocamento causado por desastres
naturais e aqueles causados por conflitos e violência. Casos como o de Abu
Siddique revelam que está se tornando mais difícil destrinchar as crises
modernas. Ele é um refugiado que foge da violência e da limpeza étnica; também
está sendo deslocado por um desastre ambiental. E provavelmente se deslocará
novamente, forçado talvez por outro desastre ou para instalar-se mais
permanentemente em algum lugar e encontrar trabalho.
As crises de deslocamento estão
agora interagindo com desastres causados pelo clima de maneiras novas e
preocupantes. Com frequência, pergunta-se se uma situação particular de
refugiados foi influenciada pelas mudanças climáticas. Há amiúde um desejo de
ver em qualquer catástrofe a pegada das mudanças climáticas, já que a ligação
entre elas e situações de desastre humanitário, cada vez mais frequentes,
deveria levar a ações sobre o meio ambiente.
Sobre se há conexões entre a
situação dos refugiados do povo Rohingya [1] e as mudanças climáticas, nossa
posição até agora foi de que não há ligação real entre as duas. As razões por
trás do deslocamento dos Rohingya têm a ver com política, e pouco a ver com o
meio ambiente, mudanças climáticas ou desastres naturais. Mas isso, até eles
chegarem à vulnerável costa de Bangladesh.
Com a chegada da estação das
monções e ciclones em Bangladesh, há agora uma ligação mais complexa entre a
situação geral e a mudança climática. Pois os Rohingya mudaram-se para algumas
das áreas mais afetadas.
Muitos fugiram do estado de
Rakhine e estão agora espalhados ao longo da costa em redor do Bazar Cox –
reconhecido como um dos lugares de maior vulnerabilidade climática em
Bangladesh, e possivelmente um dos mais vulneráveis do mundo.
Bangladesh está exposta a vários
impactos climáticos – elevação do nível do mar na região do delta do Ganges,
ocorrência de ciclones e chuvas de monções alteradas. Isso já está causando
grandes níveis de migração dentro do país. Conforme os níveis do mar engolem
terra no delta vulnerável, as pessoas abandonam o trabalho e a agricultura e
seguem para a capital, Dhaka.
Milhares de pessoas mudaram-se da
ilha de Bhola para uma favela em Dhaka. Deram a ela o nome de Favela Bhola por
causa da região em que moravam, impelidos por uma combinação de erosão agravada
pela elevação do nível do mar e pelos ciclones. Costumava ‘haver um fluxo de
duas mãos entre as duas Bholas, mas como as condições pioraram no delta, ele
foi reduzido. Não voltamos pra casa nos feriados porque não há mais casa para
onde voltar”, disse A-Amin à agência de notícias humanitárias IRIN . Milhares de pessoas fazem o mesmo movimento. Cada vez mais esse tipo de
imigração é visto como uma forma potencial de adaptação às
mudanças climáticas, visto que alguns lugares, como a Ilha de Bhola,
serão impossíveis de proteger. A melhor opção é imigrar.
Para alguns isso se torna uma
oportunidade: eles encontram um trabalho melhor e suas vidas são beneficiadas.
Mas muitos acabam enrascados na pobreza urbana (e não rural). “[Se tivéssemos
ficado] eu teria conseguido cuidar da minha saúde. Teríamos nossa terra para
cultivar e nossas condições de vida seriam melhores”, explicou Beliks,
residente na Favela Bhola, a pesquisadores da
Universidade das Nações Unidas. Sua família mudou-se da ilha há mais de 40
anos, antes de ela nascer. Mas Beliks diz que ainda vê a Ilha de Bhola como seu
verdadeiro lar. Desde que a família mudou-se, centenas de milhares fizeram
jornada semelhante.
Alguns dos que podem estar
realizando esse trajeto são Abu Siddique e sua família. Para eles, agora num
campo sob risco de inundação, ataque de ciclones e erosão, as perspectivas de
uma nova vida na cidade se tornarão cada vez mais atraentes. Se a situação
política em Myanmar não lhes permite voltar, muitos refugiados Rohingya
começarão a olhar para Dhaka. Se seu deslocamento original tinha raízes na
política de Myanmar e a força motriz era a violência, seus próximos movimentos
serão também determinados pelo clima.
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Alex Randall é especialista em
imigração e desastres ambientais ligados ao clima; e coordenador da Coalizão de Clima e Imigração.
[1] Os Rohingya são um povo de
língua indo-ariana, e majoritariamente muçulmano, estabelecido desde o século 8
no Sudeste Asiático. Em Myanmar, têm sofrido perseguição étnica crescente, que
se desdobrou nos últimos anos em massacres e expulsão em massa. Leis de 1982
impedem-nos de obter cidadania nacional, transformando-os em apátridas. São
proibidos de se mover pelo país, de ter acesso à Educação pública ou de
trabalhar em instituições estatais, num regime de claro apartheid. Segundo a
ONU, mais de 600 mil pessoas da etnia mudaram-se para Bangladesh desde 2016, o
que gerou grave crise humanitária. Veja mais na Wikipedia.
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