domingo, 5 de março de 2023

Portugal | ASSIM ESTAMOS – José Sócrates

José Sócrates* | Diário de Notícias | opinião

A situação é a seguinte. O Parlamento legisla, a justiça não obedece. Preocupada com o escândalo de manipulação na distribuição de processos, a Assembleia da República aprovou em 2021 uma lei com uma intenção muito precisa --- todos os juízes dos tribunais superiores devem ser sorteados. Em concreto, a norma diz assim: "a distribuição é feita para apurar aleatoriamente o juiz relator e os juízes adjuntos de entre todos os juízes da secção competente, sem aplicação do critério de antiguidade ou qualquer outro". Nada nesta formulação jurídica é incerto, ou confuso, ou duvidoso. E, no entanto, que circunstância extraordinária -- o sistema judicial recusa-se a aplicá-la. A razão invocada, dizem os senhores juízes, é que a lei não está regulamentada como está previsto no artigo 3.º e, assim sendo, nenhuma das normas pode entrar em vigor. Bom, não é assim. E para se perceber que não é assim não é preciso ter uma especial preparação jurídica, basta não aceitar ser tomado por parvo. Na verdade, como umas quantas leituras ensinam, nos casos em que uma determinada lei não foi regulamentada como devia, só não entram em vigor as normas que precisem dessa regulação específica, não as outras, aquelas que a doutrina classifica como sendo "normas exequíveis por si próprias". Para quem está de boa-fé, a questão é fácil de compreender -- afinal de que regulamentação precisa a norma que acima citei e que impõe a forma de sorteio para todos os juízes? A resposta é : nenhuma, nenhuma regulamentação é necessária. A norma jurídica fala em distribuição aleatória, o que significa sorteio e o sorteio é uma operação simples que se faz há muito tempo em todos os tribunais. E se é feito todos os dias para os juízes relatores, não há nenhuma razão para não fazer da mesma forma com os juízes adjuntos. Não obstante, assim estamos -- a lei manda sortear, os tribunais não sorteiam.

Vejamos com mais atenção. A primeira regra do que vulgarmente se chama Estado de Direito é a exigência de que qualquer atuação dos poderes públicos seja enquadrada pelas normas da lei. Fora dela, fora da lei, toda a ação estatal é arbitrária. Uma segunda regra básica é a exigência de que as normas legais tenham na sua origem o povo soberano, seja através dos seus representantes eleitos diretamente por sufrágio universal, como é o caso do Parlamento, seja através de um governo diretamente responsável perante a sede da representação nacional. Julgo que é a isto que se chama o princípio da soberania popular. Ora bem, salvo melhor opinião, que não estou a ver qual seja, são exatamente estas as duas regras do Estado de Direito que estão em causa neste debate. Ao ignorar as normas legais em vigor o sistema judicial pretende impor a sua vontade aos outros órgãos de soberania eleitos diretamente pelo povo. E quer fazê-lo em matérias que não são da sua competência como é o caso da feitura das leis, violando clara, frontal e explicitamente o princípio de separação de poderes. Mas, assim estamos. Foi a isto que chegámos. A lei deixou de ser um valor seguro para se transformar num enunciado frágil e precário à mercê de habilidades interpretativas e de interesses corporativos. Quanto à política, a pobre da política, a lamentável política, é difícil dizer se fala ou se balbucia quando a senhora Ministra da Justiça afirma que haverá oportunidade de "revisitar algumas soluções vertidas na lei". Sim, sim. Enquanto revisita e não revisita, ninguém cumpre a lei. Que situação extraordinária.

O que efetivamente se passa é que o Governo está desde setembro de 2021 na situação de ilegalidade por omissão. E talvez seja importante lembrar que esta omissão legislativa não é sobre uma matéria qualquer, mas sobre matéria respeitante a um dos mais importantes princípios do direito democrático, o direito ao juiz natural. Dezassete meses de omissão. Não é desleixo, não é incompetência, não se trata de falta de recursos (nesta área política já só falta o Ministério aderir ao discurso da falta de recursos). Trata-se, isso sim, de uma opção política absolutamente ilegal e que não esconde a reserva mental com que o Governo sempre encarou a Lei da Assembleia. Perante os factos, é inacreditável que o assunto tenha deixado de ser debatido publicamente pela simples razão de que não interessa a ninguém -- nem ao sistema judicial, nem ao sistema político, e, em consequência, nem ao sistema mediático. Na verdade, nenhum destes sistemas de poder deseja a mudança que a lei prevê e talvez só o cidadão se incomode com a omissão de um direito seu. Mas o cidadão deixou de ter voz quando a política se calou. Portanto, silêncio. O governo não regulamenta e assim é que está bem. Todos satisfeitos. Só o Estado de Direito sai a perder, mas é difícil vislumbrar alguém que ainda se preocupe com isso. E no entanto, o que está em causa nesta questão é um princípio político essencial -- em democracia, é a política que faz o direito, não é o direito que faz a política.

Quando alguém lembra a senhora Ministra de que o seu dever está há dezassete meses por cumprir, esta responde, com a solenidade própria do discurso de abertura do ano judicial, dizendo que é "preciso serenar algum ruído". Eis, portanto, a resposta que a política oferece ao problema -- todo o debate sobre o tema é ruído. O terreno do Direito deve continuar reservado a alguns iniciados capazes de distinguir, no céu estrelado onde brilham as ideias universais e perenes, os conceitos de "Justiça" e de "Bem" de que a humanidade tanto necessita. E isso exige ponderação e reflexão aos mestres -- e paciência, muita paciência, aos cidadãos. O resto, a controvérsia, a discussão, a disputa política em torno de leis que não foram regulamentadas, não passam de fúteis "discórdias parlamentares" às quais não devemos prestar atenção. Ruído. Perda de tempo. Lentamente, vamos vislumbrando a receita de sucesso dos Ministros da Justiça -- não fazer nada, não fazer absolutamente nada. Deixar a política às corporações. Serenar o ruído, significa silêncio. Nada mais.

Enquanto a senhora Ministra se queixa do insuportável barulho que a defesa do Estado de Direito provoca no seu delicado espírito, a campanha contra as garantias constitucionais, isto é, a campanha contra a democracia, prossegue sem oposição. Façamos um breve recenseamento. O diretor da Polícia Judiciária afirma, com o ar grave de quem conhece profundamente o direito penal, que estamos a viver uma época de "terrorismo processual". Pelo seu lado, o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, também sem qualquer espécie de contenção, declara que, se queremos resolver os problemas da justiça, "é preciso cortar com o excesso de garantias de defesa". Noutra área profissional complementar, um dos fiéis parceiros do ministério público diz, em entrevista, que é preciso pôr de lado os "complexos da ditadura" -- sim, na ditadura as coisas funcionavam. Um outro colega desta arte afirma que o julgamento público está feito (o seu trabalho está feito, é o que quer dizer) mas o julgamento em tribunal não está, apresentando várias razões para esse escândalo entre as quais o facto de um juiz de instrução ter considerado as acusações falsas. É, de facto, um escândalo que a justiça não se limite a seguir as conclusões do julgamento público feito nos jornais e que as leis penais ainda permitam a defesa de quem se reclama inocente -- afinal, se o cidadão já teve o seu "julgamento popular", que mais é necessário? Finalmente, para não ir mais longe, uma antiga Ministra da Justiça, fiel ao estilo destrambelhado que cultivou ao longo da sua carreira política, junta-se à turba para dizer que a verdadeira prioridade deve ser o combate às "manobras dilatórias". Não falei das posições do partido Chega, que não são necessárias. Julgo que a amostra é suficiente. Mas animemo-nos, haverá próximos capítulos.

Post Scriptum: O processo Marquês vai fazer dez anos. O inquérito durou quatro. A instrução durou três e meio. A disputa de "competência negativa" entre juízes, para determinar quem era o titular do processo, durou oito meses. O juiz que fez a instrução concedeu quatro meses ao Ministério Público para fazer o recurso. Feitas as contas, que são fáceis de fazer, o Estado é diretamente responsável por quase nove anos dos dez que, até hoje, durou o processo. O discurso das "manobras dilatórias" da defesa tem um sério problema com os factos.

* Engenheiro. Antigo primeiro-ministro e principal arguido no processo Marquês

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