sábado, 26 de agosto de 2023

A Pátria dos Filhos da Kapopa – Artur Queiroz

Artur Queiroz*, Luanda

Volta e meia acusam-me de ser anti-português. Isto porque não alinho com a Associação de Amizade Chega ao Topo do Nazismo-Fascismo, Comités do Socialismo-Fascismo, Associação dos Beneficiários da Social Democracia-Fascismo ou Paróquias do Personalismo Cristão-Fascismo. Conheço razoavelmente o mundo que fala Português. Quem mais odeia a Língua Portuguesa são as elites do bom povo português. Um ódio de morte. Nos Media chegam ao extremo do assassinato à linha ou em directo. É contra isso que sou.

Um dia fui ao Recife fazer uma reportagem sobre Manuel Bandeira e a escultura de José Rodrigues (Zeca Bailundo) na grande avenida madrinha do mar. Recife da negra Irene. Recife pátria estremecida de Manuel Bandeira, o que escreveu: “Assim eu quereria meu último poema/Que fosse terno dizendo as coisas mais simples e menos intencionais/Que fosse ardente como um soluço sem lágrimas/Que tivesse a beleza das flores quase sem perfume/A pureza da chama em que se consomem os diamantes mais límpidos/A paixão dos suicidas que se matam sem explicação”. A Língua Portuguesa é tão amável. Tão amante dos poetas!

Em Portugal fui agraciado com a amizade de Eduardo Guerra Carneiro, Manuel António Pina ou Luís Veiga Leitão. Jornalismo casa com poesia, sabiam? Já perdi os três mas a vida continua e os poemas estão aqui, mesmo à mão.

O Luís Veiga Leitão foi preso pelos fascistas. Além de grande poeta e contista também desenhava esplendidamente. Decidiu desenhar uma bicicleta na parede da cela e depois escreveu estas palavras ao velocípede: “Aqui,/Onde o dia é mal nascido,/Jamais me cansou/O rumo que deixou/O lápis proibido…/Bem-haja a mão que te criou!/Olhos montados no selim/Pedalei, atravessei/E viajei/Para além de mim”. Ninguém prende um poeta! Não há muros intransponíveis para a poesia. Anti-português eu?

Em Maputo passava ao fim da tarde pelo bar do Hotel Cardoso onde um pianista de laço unia ternamente os inventores do amor. E fazia companha aos bebedores solitários. No caniço, aos sábados, juntavam-se poetas: Zeca Afonso, José Craveirinha, Rui Nogar e outros vates da Língua Portuguesa. Nogar fumou suruma nos olhos de Ana Maria e ficou mesmo maluco. Suruma é liamba sem alma. Se o poeta fumasse boi branco do Cuando Cubango nos olhos da sua amada, ainda hoje voava sobre a catedral da liberdade no Triângulo do Tumpo. 

Craveirinha foi enclausurado nas masmorras dos colonialistas e um dia escreveu: “Todo o poeta quando preso/é um refugiado livre no universo/de cada coração/ na rua”. Anti-português, são os portugueses que não se comovem quando convivem com africanos que pensam em português, sonham, em português, amam em português. Sofrem a discriminação e o racismo em português.

O pianista de laço que conheci em Maputo apareceu mais tarde, pianando jazz e cantando à Armstrong. Andava pelos bares. Um dia acompanhou ao piano uma menina com voz fenomenal. Escrevemos para ela umas cantigas. Já nem me lembro das palavras, mas uma dizia que é longa a travessia do teu corpo, longo o beijo que se perde na memória. 

A menina cantava e entusiasmava. Via-se pelos aplausos. Escrevemos um fado para a jovem e talentosa cantora. Depois perdi-me do Alex Honwana e ele perdeu-se de mim. Mas isso não importa, a amizade, mesmo longe dos bares, não prescreve.

Luanda é a bela adormecida esperando ansiosa pelo beijo que a desperte. As noites luandenses são negras e cintilantes como prata. A Conchinha Mascarenhas, rainha da Rádio, cantou que as noites da nossa cidade são mulatas. Noites de semba, de samba, de morna, de fado. Noites passionais cortantes como punhais, ciúmes que matam, veneno que vicia até à morte.

Dessa parceria de cantigas com o Alex Honwana sobraram estas palavras que encontrei entre papelada sem tempo nem calendário. Vou enviá-las à Conha de Mascarenhas, a voz suave das noites luandinas. Mana Ana Maria põe música nas palavras e ela canta docemente:

.À Janela dos Teus Olhos

Silêncio/que me ardem/as asas/em trinados/de guitarras.

Silêncio/que ainda/ espreitam/desejos/à janela dos teus olhos.

Morre a noite/triste sorte/madrugada/assassinada/dias que correm/a fio/condenados/como um rio/navegado/pela tristeza:/copos vazios /na mesa/vinho tinto/travo amargo/volúpia do absinto.

Silêncio/que me desfaço/neste abraço/cansado/neste luar/decapitado/na noite/sem madrugada/no dia nunca/marcado/na partida/inesperada/no lenço/que ainda acena/à memória/ atraiçoada.

Silêncio/que me ardem/as asas/em trinados/de guitarras.

Anti-português eu? Os que assassinam a Língua Portuguesa nos Media portugueses são o quê? Os que atrelaram Portugal aos nazis de Kiev na guerra da OTAN (ou NATO) o que são? Os que invadiram o audiovisual com graves defeitos de dicção para garantir que o Tio Célito pode ser uma estrela da televisão são anti tudo. Os que pagam 800 euros líquidos por mês às e aos jornalistas com dez anos de carreira (já podem fazer jornalismo não tutelado…) são o quê?

Eu sou pela Língua Portuguesa, sempre. Sobretudo entre nós, porque é um poderoso instrumento de Unidade Nacional. Honro o mais que posso os meus antepassados. Mas sou da Kapoppa do Negage. Não me condenem por isso. Dizia Neruda à sua amada: Tira-me o pão. Tira-me o ar. Mas morro se me tiras o teu sorriso.

Não me tirem a Kapopa. O Kamdombe. O Bindo. O Bairro Operário. Morro se me tirarem a Língua Portuguesa, minha amada, minha eterna amante. 

*Jornalista

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