segunda-feira, 7 de agosto de 2023

Angola | Ilha do Zimbo e a Cidade Mariposa – Artur Queiroz

Artur Queiroz*, Luanda

Luanda foi fundada por portugueses que lhe imprimiram a sua marca. Muitas marcas, muitos sinais que iam do bom ao mau gosto, da construção majestosa à casa térrea atarracada. Os quintais e quintalões, as varandas amplas que dão frescura, os telhados de zinco barulhentos e escaldantes ou de telha em canudo. No início os luandenses viravam as costas à urbe que nascia. Mas depois aproximaram-se, cercaram e invadiram. Ainda conheci e vivi essa mistura nos Coqueiros, nas Ingombotas, em São Paulo. Luanda é uma cidade mariposa, finge que se transforma mas é sempre a mesma. 

A Ilha de Luanda era disputada. O Rei do Congo ofereceu-a aos construtores da cidade. O País dos Dembos não concordou. Uma delegação foi ter com o governador e disse-lhe que ninguém pode oferecer o que não lhe pertence. O território era uma espécie de região autónoma onde os comerciantes se abasteciam da moeda oficial nas trocas comerciais, o zimbo. A disputa deu guerra que durou entre 1872 e 1919. Os da Ilha mantinham a independência. São Muxiluanda! Quem frequentou as farras no Marítimo sabe o que isso significa. 

Quem gosta de Luanda sabe que a cidade tem um ambiente que derrete corações, faz explodir paixões, desperta amores que acabam em crimes passionais. As casas, os prédios, os comércios e tudo o mais de pouco ou nada servem. Luanda é madrugada faminta de vícios e pecados, acalmados quando a maré-baixa faz soprar da baía um cheiro imparável a esgotos. Assim ninguém esquece que não há bela sem senão. Vivi essa Luanda das noites quentes, do cheiro a suor envolto em ondas de perfumes enjoativos, que se libertavam de corpos elegantes, muito acima da média. Palavras de amor facílimas, carícias automáticas no tempo em que tudo era manual. Muita conversa, muita bebida e muita música. Que cidade!

Mestre Cartola cantava que a vida é um moinho. Tritura mas faz farinha e pão. A vida tem altos e baixios, marás altíssimas e fossas profundas. Numa fase em que estava por terra fui adoptado por uma senhora repleta de qualidades. Nem um defeito. Nem um cabelo desalinhado. Nem uma palavra amarga. Nem um gesto agressivo. Mostrei-lhe que Luanda nada tem a ver com o péssimo gosto arquitectónico dominante nem com a má construção nascida depois de 1961. Tem um clima apenas captado por quem é capaz de colher rosas das lixeiras. O amor era tanto que escrevi com ela pelo menos um capítulo da minha vida.

Habituado aos quartos sem luz eléctrica mas com muita quentura dos tectos de zinco, fui morar para a Avenida do Hospital, num prédio acabado de construir. O meu primeiro doce lar de acolhimento. Comecei a ser caprichoso. Quando foi inaugurado o hotel Panorama, na Ilha do Cabo, propus à minha adoptante passarmos lá os fins-de-semana. Ela não sabia dizer a palavra não e assim se fez. Odeio praia e tenho medo do mar. Mas ela adorava ficar estendida ao sol na praia em frente ao hotel. E eu batucava na minha máquina de escrever Hermes Baby umas xaropadas para vender ao velho Maciel que depois revendia à Agência Portuguesa de Revistas. Novelas de amor!

Na praia apareciam uns gandulos musculados enfeitando-se par a minha adoptante. E ela apontava para o hotel e dizia delicadamente: Isso de homem tenho ali no quarto! E eu batucava furiosamente na teclas da Hermes Baby. Se isto não é uma história de amor a Luanda desisto de viver.

Injustiças não. Luanda é uma cidade onde impera o mau gosto e a péssima qualidade construtiva. Mas a cidade tinha (ainda tem…) pérolas criadas por grandes arquitectos como Fernando Batalha, Vasco Vieira da Costa, Fernão Lopes Simões de Carvalho (Carvalhinho) autor do projecto da Rádio Nacional, os irmãos Castilho ou José Troufa Real. O hotel Panorama foi projectado pelo arquitecto modernista Carlos Moutinho. Bom gosto!

Logo a seguir à Independência Nacional o Hotel Panorama acolheu cooperantes soviéticos e de outras nacionalidades. A guerra corroeu a operação porque sem técnicos não há hotelaria. Por fim ficou apenas o edifício. O mar encarregou-se de fazer dele uma ruína. O mar arruína tudo! A água é amarga e faz compressão na barriga. As calemas até derrubaram a Fortaleza de Nossa Senhora da Flor da Rosa. Lamberam dois terços da Ilha do Cabo e dos Muxulianda. 

Depois da Independência Nacional o hotel Panorama passou a propriedade do Estado. Ainda bem. E assim ficou até ser abandonado à maresia. Mesmo assim as ruínas serviram de tecto a meninos de rua e deslocados de guerra. Ruinas habitadas por famílias e suas criancinhas! É um fim digno do hotel onde passava os fins-de-semana para não me sujeitar às longas filas de trânsito. Um burguês privilegiado com alma de anarquista.

Em 2017, ano em que começou o combate à corrupção e impunidade, a Fundação Sagrada Esperança comprou o edifício que já foi hotel. Para que fim a fundação quis um edifício arruinado pelo salitre até ao ferro do betão? Tive agora as respostas. 

O moderno edifício do Hotel Panorama vai ser demolido e no seu lugar a Fundação Sagrada Esperança constrói um hotel novo, projecto novo, no valor de 50 milhões de dólares! Afinal apenas comprou o terreno! E agora tem de gastar milhões a demolir e tirar dali o entulho. Na época o Jaime Saint Maurice fez uma reportagem que trazia água no bico. O hotel foi construído por um ricaço no domínio público! Basta ver a localização para concluir que é verdade. Portanto, a Fundação Sagrada Esperança comprou (a quem?) um terreno com entulho que pertence ao Estado.

O empreiteiro da obra é o Grupo ALCAAL que opera nas áreas da agricultura, indústria têxtil e reflorestamento. Como é a sua primeira incursão na hotelaria, não se esqueçam que o ar marítimo come tudo, destrói tudo. Pior que o mar só mesmo a UNITA. Os construtores têm de levar isso em conta. Eu vou já reservar a suite presidencial para passar lá um fim-se-semana batucando no teclado do computador e pensando na minha adoptante que fez de mim um rapaz caprichoso.

O General Fernando Garcia Miala anda desesperadamente a limpar-se. Apareceu numa cerimónia de passagem à reforma de oficiais generais oferecendo ricas prendas. Agora foi à Jamba procurar ossadas. O Francisco Queiroz está lixado, foi apeado do negócio. Agradeço â CIVICOP que procure também as ossadas de Dona Isabel Paulino no Bailundo. O assassino Abílio Camalata Numa sabe onde estão. E procurem as ossadas de todos os outros que foram assassinados por Savimbi longe, muito longe da Jamba. Têm milhares de ossadas para encontrar.

*Jornalista

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