quinta-feira, 7 de setembro de 2023

Portugal | Cavaco e a sua arte de nos fazer esquecer como governou

Tiago Matos Gomes* | Diário de Notícias | opinião

Aníbal Cavaco Silva vai lançar um livro denominado O primeiro-ministro e a arte de governar onde, de acordo com o que já foi revelado pela comunicação social, nos tenta ensinar como deve ser um chefe de governo. Cavaco Silva governou durante 10 anos, dois em maioria relativa e oito em maioria absoluta, entre 1985 e 1995.

É bom lembrar que Mário Soares tinha assinado uns meses antes da primeira vitória de Cavaco Silva a nossa adesão à então Comunidade Económica Europeia, a 12 Junho de 1985, onde entrámos de pleno direito a 1 de Janeiro de 1986. Foi, por isso, o primeiro primeiro-ministro a beneficiar dos fundos europeus.

É também bom recordar que país tínhamos em 1985, quando Cavaco Silva foi eleito em Outubro. Portugal era um país profundamente atrasado em comparação com os seus parceiros europeus. A revolução tinha acontecido há apenas 11 anos, seguida de 2 anos de PREC e profunda instabilidade política e económica, bem como de um processo de descolonização com a chegada de meio milhão de pessoas em poucos meses. Seguiram-se anos de governos instáveis e de curta duração, com a morte de um primeiro-ministro pelo meio, culminando com a vinda do FMI num governo de bloco central. E foi este governo, tão mal falado hoje em dia, que nos colocou definitivamente na Europa, depois de muitos sacrifícios para salvar o país da bancarrota. E para quem tem má memória, havia sectores relevantes do PPD/PSD que eram contra a entrada de Portugal na então CEE.

Cavaco Silva começa a governar um país paupérrimo, saído de uma intervenção do FMI e de um governo profundamente patriótico, com milhões de fundos vindos de Bruxelas. É por isto que as pessoas lhe atribuem um enorme sucesso e uma imagem de desenvolvimento do país. É por comparação com a década anterior. Quando se passa de 2 para 10 tem muito maior impacto quando se passa de 120 para 128, mesmo que a subida seja a mesma. Os governos de Cavaco Silva fizeram essa "proeza" de passarmos de 2 para 10.

Só que devemos muito mais às instituições europeias do que aos governos de Cavaco Silva. Brincando, se uma qualquer personagem da Disney fosse primeiro-ministro entre 1985 e 1995 os resultados não seriam muito diferentes. Mas talvez esta última hipótese nos tivesse poupado ao governo mais autoritário da história democrática portuguesa.

(Ler sublinhados por PG)

O tempo tende a apagar tudo, mas convém lembrar que uma pessoa ficou paraplégica por um tiro da polícia nos protestos pelo aumento do valor das portagens da Ponte 25 de Abril, convém lembrar as cargas policiais que estudantes do secundário e das universidades levaram, convém lembrar que polícias foram obrigados a confrontar outros polícias no Terreiro do Paço, no famoso episódio de secos contra molhados.

E também convém lembrar como o dinheiro vindo de Bruxelas para aplicar na conversão e modernização da nossa agricultura foi mal aproveitado e passámos de repente a ver jipes por todo o interior do país em vez de terras cultivadas. E como se incentivou a monocultura do eucalipto. E como se investia em centenas de quilómetros de auto-estradas e se desinvestia na ferrovia. Foi no seu tempo que uma certa mentalidade dependente do automóvel floresceu. Bem como um novo-riquismo que atrasou formas mais progressistas de pensamento.

E tudo isto com apenas dois canais nacionais (RTP1 e RTP2) e dois canais regionais (RTP Açores e RTP Madeira), todos do Estado. Os governos de Cavaco Silva foram os últimos na Europa ocidental a dar licenças a televisões privadas. E até teve um jornal do Estado até 1991, este mesmo, o Diário de Notícias. Foi no tempo dos governos de Cavaco Silva que um programa de Herman José foi censurado e tirado do ar. Foi no tempo dos governos de Cavaco Silva que José Saramago foi excluído de um concurso literário.

O legado de Cavaco Silva não pode ser visto apenas pelos números e estatísticas. O ponto de partida era baixíssimo e foram as instituições europeias que modernizaram Portugal, pelo menos nas suas necessidades básicas. Um exemplo disso foi o saneamento, e aí mérito das câmaras que usaram bem os dinheiros europeus, que em 1985 não chegava a todo o lado. Não esqueçamos que nesse tempo ainda havia aldeias sem luz.

O legado dos governos de Cavaco Silva terá com certeza os seus pontos positivos, como uma rápida construção de novas escolas (ainda que muitas delas provisórias até hoje), num momento em que tivemos uma das nossas maiores populações estudantis nos ensinos primário e secundário. E entende-se que queira deixar uma imagem mais positiva para memória futura. Mas não foi o nosso melhor primeiro-ministro. Havia mesmo um sentimento de asfixia democrática. Havia até pessoas com medo de dizer o que pensavam com medo de represálias. Provavelmente infundadas. Mas havia esse clima.

É por isso que Cavaco Silva nunca será uma figura consensual. Então porque conseguiu duas maiorias absolutas como primeiro-ministro? Por tudo o que atrás foi dito. Beneficiou como nenhum outro (não em termos quantitativos, mas comparativos com o passado) dos fundos europeus, dominou a comunicação social, nomeadamente a televisão em monopólio em sete dos 10 anos de governação, e criou um clima de receio e dependência do Estado na sociedade portuguesa.

Foi esta a sua arte de governar.

*Presidente do movimento Partido Democrata Europeu

(O autor escreve de acordo com a antiga ortografia)

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