terça-feira, 16 de janeiro de 2024

Portugal | Política e geleia

Miguel Prado, jornalista | Expresso (curto)

Bom dia.

Começo por lhe fazer um convite: amanhã, dia 17, às 14h, "Junte-se à Conversa" com David Dinis e Vítor Matos para falar sobre "Até onde pode crescer o Chega?". Inscreva-se aqui. E na quinta-feira, às 12h, irá realizar-se mais um “Visitas à redação”, exclusivo para assinantes. Inscreva-se através do mail producaoclubeexpresso@expresso.impresa.pt e venha conhecer o seu jornal.

Agora, o inusitado título deste Expresso Curto. Começo pela geleia. No último Natal amigos de longa data enviaram um cabaz simpático com uma deliciosa geleia de maçã e alecrim. O aroma é extraordinário. E o pequeno frasco, claro, está a terminar. Mas, na verdade, não é essa geleia que aqui nos traz. É uma outra, que tomou o espaço público, invadindo a cena política com um colorido intenso e uma consistência dúbia.

Não mudemos de assunto, mas recuemos no tempo. Em 1978, em “Pano-Cru”, num disco que nos trouxe canções maravilhosas como “O primeiro dia” e “Balada da Rita”, Sérgio Godinho cantava assim: “o fascismo é uma minhoca que se infiltra na maçã, ou vem com botas cardadas, ou com pezinhos de lã”. O país vivia os primeiros anos pós-revolução e as memórias da ditadura estavam frescas. Quase meio século depois, sem botas cardadas nem pezinhos de lã, o seu fantasma ressurge, com ou sem ironia, lembrando um período sombrio da nossa história.

Eis que no ano em que Portugal celebrará os 50 anos do 25 de Abril o país se encontra perante um dos desafios maiores das últimas décadas na sua construção democrática. O populismo materializou-se numa máquina bem oleada, com uma narrativa eficaz, atraindo um número cada vez maior de cidadãos, insatisfeitos com as respostas dadas pelas forças partidárias que há mais anos dominam a política nacional. A mensagem vence e convence, mesmo quando sustentada em alegações que nem sempre aderem à realidade. Mas assim é a geleia: escorregadia. E acontece num contexto de um desemprego relativamente baixo (a taxa está hoje nos 6,6%, longe do pico de 17,7% de 2013), contas públicas em ordem (na iminência de baixar a dívida para menos de 100% do PIB), continuidade da percepção de Portugal como um dos países mais seguros do mundo.

Claro que, além dos bons indicadores, o país soma, também, fontes de preocupação. A habitação é cara, os professores estão insatisfeitos, os polícias também, muitos jovens optam por emigrar, os hospitais aparentam não conseguir dar resposta às necessidades dos cidadãos, pressionados pela escalada inflacionista do último par de anos. Após a “geringonça”, o Partido Socialista conseguiu mandar sozinho mas depois veio o 7 de novembro de 2023: a demissão de um primeiro-ministro que, maioritário no Parlamento, sucumbiu perante as suspeitas levantadas pelo Ministério Público na Operação Influencer.

António Costa decidiu sair de cena, servindo ao eleitorado, de bandeja, o futuro do país. Após oito anos de governação socialista, há quem à esquerda diga “basta” e à direita diga “chega”. E aqui estamos. O presidente do terceiro maior partido, reconduzido com uma soviética maioria, propõe aliviar a carga fiscal dos portugueses, riscando o IMI e o IUC e aumentando generosamente as pensões. Paga a promessa com o sonho, indo buscar 20 mil milhões de euros a um pote mágico chamado “acabar com a corrupção”. Mas... “Prometer acabar com a corrupção é como prometer a paz no mundo”, notava ainda ontem, na TVI, Pedro Santos Guerreiro. Sobre as ditas promessas, vale a pena ler aqui no Expresso, se ainda não leu, quanto custariam as medidas. Henrique Raposo, também no Expresso, não hesita em sublinhar que “quando diz que os estrangeiros estão a consumir a Segurança Social, roubando o dinheiro que os nossos pais e avós descontaram durante anos, Ventura está a mentir duas vezes”.

Daniel Oliveira, neste artigo de opinião, nota que “André Ventura não é o único que mente e faz promessas que não tenciona cumprir”, mas aponta o “descaramento perante a evidência da mentira grosseira”. Ainda está a ser escrita a história da sua ascensão em Portugal, que parece assentar numa capitalização de descontentamento que tira partido, por um lado, do fascínio dos media por personagens com posições inflamadas e conflituosas, em detrimento das vozes mais serenas e ponderadas; e, por outro lado, do fenómeno das redes sociais, enquanto espaço de difusão de informação não mediada, livre dos filtros do jornalismo, e de circulação gratuita. Num espaço e no outro, o dos media e o das redes sociais, fomos assistindo a um fenómeno de polarização, favorecendo o extremismo e a radicalização, em prejuízo do debate construtivo e elevado.

É ainda incerto se o crescimento do Chega o tornará, afinal, um partido como os demais, uma força que fará cedências para obter poder. Uma peça do sistema, portanto. E é também uma incógnita o futuro do PSD, que, no caminho para as legislativas, já distribuiu os lugares elegíveis para os seus, e também os que poderão permitir ao CDS regressar ao Parlamento. Como Luís Marques Mendes comentava no domingo, PSD e CDS têm de “apresentar ideias” para um “projeto transformador” para as eleições de 10 de março.

A política nacional está ao rubro e o termómetro da direita está a ferver. Não perca, acabado de sair, o mais recente episódio do podcast Comissão Política, que debate as ambições e promessas de André Ventura. Se não gostar, prove geleia de maçã com alecrim. Uma delícia. Mas como o mundo não termina neste deslumbramento, veja que outros temas marcam a atualidade.

Outras notícias

Irão. Teerão lançou na noite de segunda-feira ataques contra alvos ligados ao Daesh na Síria e no Iraque, incluindo uma área perto de um consulado dos Estados Unidos.

EUA. Donald Trump venceu a disputa republicana no Estado de Iowa, conseguindo, na última noite, mais de 50% dos votos, contra apenas 21% de Ron DeSantis e 19% de Nikki Haley. Conheça aqui os detalhes desta primeira vitória de Trump no arranque das primárias republicanas. O novo fôlego de Trump na política norte-americana é, aliás, o tema em análise no podcast Expresso da Manhã desta terça-feira, que já pode ouvir aqui.

Polícias. O presidente do Sindicato Unificado de Polícia, Humberto Alvão de Carvalho, admitiu ao Expresso que a manifestação marcada para 31 de janeiro em frente a Assembleia da República poderá ser antecipada. Esta segunda-feira o presidente do Observatório de Segurança, Jorge Bacelar Gouveia, defendeu que dar aumentos salariais à Polícia Judiciária e não à PSP e à GNR viola o princípio de igualdade perante a lei.

GES. É mais um atraso numa derrocada que dura há dez anos. O Tribunal do Luxemburgo deveria começar esta terça-feira a olhar para as contestações às listas de credores da Espírito Santo International e da Rio Forte, mas o calendário foi adiado, como aqui contamos.

Media. Os trabalhadores da Global Media continuam com pagamentos em atraso. Até ao final desta segunda-feira a administração ainda não tinha conseguido regularizar os salários de dezembro e os subsídios de natal, depois de ter indicado que o deveria fazer no início desta semana. Entretanto, a Global anunciou a nomeação de Artur Cassiano como diretor de informação interino da TSF.

Frases

“Francisco Sá Carneiro é inimitável, muito menos caricaturável”

Maria da Graça Carvalho, presidente do Instituto Francisco Sá Carneiro e eurodeputada, repudiando declarações do presidente do Chega que invocavam Sá Carneiro

“Aqui não anda ninguém a vender um Portugal que pode dar tudo a todos”

Luís Montenegro, presidente do PSD, numa alusão à convenção do Chega

“Quando o Governo legisla sobre novos subsídios que têm a ver com o risco e a perigosidade do trabalho não pode legislar só por uma polícia, deve legislar para todas as polícias”

Jorge Bacelar Gouveia, presidente do Observatório de Segurança, sobre os aumentos salariais concedidos à Polícia Judiciária

“A performance financeira não deixa de ser uma dimensão de reputação importante, mas, nos dias que correm, colocar muitas fichas nessa dimensão pode ser um erro grave que danifica seriamente a reputação de uma empresa”

Salvador da Cunha, presidente executivo da Lift Consulting, em artigo de opinião sobre como as empresas comunicam os seus resultados

Podcasts a não perder

Que voz é esta? A solidão tem impacto na saúde física e mental, diz o presidente da SOS Voz Amiga, Francisco Paulino. O professor de sociologia Renato Carmo fala de uma economia “cada vez mais liberal, com foco crescente no individualismo”. Oiça aqui o mais recente episódio do podcast “Que Voz é Esta?”, dedicado à saúde mental.

No princípio era a bola. Neste episódio do podcast “No Princípio Era a Bola”, Rui Malheiro e Tomás da Cunha analisam a última jornada da primeira volta da I Liga, que confirmou as mudanças que Sérgio Conceição fez na sua equipa e também trouxe triunfos para Sporting e Benfica. Pode ouvir aqui.

Economia dia a dia. O Fórum Económico Mundial arrancou esta segunda-feira em Davos, na Suíça, e decorrerá até sexta-feira. Saiba quais os principais temas em destaque nesta edição do evento que junta a elite mundial, no mais recente episódio deste nosso podcast diário.

Manual de Sobrevivência. No seu podcast narrativo sobre a Ucrânia, Iryna Shev conta-nos como foi a sua passagem por Dnipro, onde ficou impressionada com a “boa disposição” dos soldados acamados que encontrou. Para ouvir aqui.

O que ando a ler

“Demon Copperhead”, de Barbara Kingsolver, é a história de um rapaz, Damon, nascido num meio pobre, no condado de Lee, no Estado da Virginia, e da sua aventura para superar a morte da mãe, ainda jovem, e as experiências falhadas de institucionalização e reinserção em famílias de acolhimento. O romance, inspirado em David Copperfield, de Charles Dickens, projeta para a América atual os desafios das crianças nascidas em famílias disfuncionais, numa história contada na primeira pessoa por Damon, que, com uma narrativa viva, nos cativa e leva numa viagem pelo interior dos Estados Unidos, entre Virginia e o Tennesee, com paragem em estações de serviço, boleias com desconhecidos, peripécias várias, desabafos e frustrações.

Aqui termino este Expresso Curto, deixando-lhe o convite para que continue a seguir a atualidade no Expresso, onde temos uma seleção de Exclusivos para os nossos assinantes. Obrigado pela sua atenção! Boas leituras e boa semana!

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