terça-feira, 20 de fevereiro de 2024

Espaços de Liberdade na Lixeira -- Artur Queiroz

Artur Queiroz*, Luanda

A minha entrada numa Redacção ficou marcada por esta lição. Os jornais são espaços de liberdade. E só é jornalista quem souber viver entre as fronteiras da honra e da dignidade. Porque escrever é coisa ao alcance dos miúdos da quarta classe. Qualquer um é capaz de compor mensagens informativas. Acreditei. Até que um patrão chamou todos os jornalistas do “reviralho” e despediu-os, dando esta ordem: Vão à tesouraria fazer contas. Eu não fui e ousei ameaçar o dono. Disse-lhe na cara, com os olhos incendiados, que o atirava pela janela para a rua. Estávamos num terceiro andar!

A maka meteu polícia e fiquei marcado. O conflito com os patrões tornou-se insanável. Eles transformaram os espaços de liberdade em lixeiras. Poderes ilegítimos. Todos pelo Salazar. Todos pelo colonialismo. Todos contra a Liberdade de Imprensa. Todos contra o pensamento. Quem não era fascista não existia. Quem respeitava os princípios éticos e deontológicos tinha as portas das Redacções fechadas. A lixeira cresceu desmesuradamente.

Antes de voltar ao lixo, lembro o meu vizinho da Kapopa, o senhor Van-Dúnem, latoeiro de profissão. Sempre o conheci velho. Vivia com um neto da minha idade, o meu único amigo. Nas redondezas todos diziam que ele era feiticeiro. Nunca se viu um velho a viver sem família, só com uma criança. Era verdade. Todas as casas acolhiam grandes famílias com crianças, muitas, adultos e mais-velhos. 

O latoeiro fazia candeeiros a pitrol com latas de sardinhas e outras embalagens. Meu Pai levava a mercadoria nas suas operações de permuta. O senhor Van-Dúnem ganhava bem com o negócio. Além de artista das latas, era um extraordinário contador de histórias. Enquanto trabalhava, contava-me as mais belas. Era o avô que não tinha. O fornecedor de alimentos à minha imaginação. Via nele mais do que um deus. Ouvir dizer que ele era feiticeiro magoava-me. Um insulto.

Um dia perguntei-lhe se era feiticeiro. Ele olhou para mim com um sorriso e disse: Isso não existe, meu filho. Não há feiticeiros E eu, furioso, respondi: Há sim! Esses que lhe chamam feiticeiro são uns grandes feiticeiros! 

O artista das latas parou o trabalho, sentou-se no chão junto a mim e falou assim: Não há feiticeiros. Não existe feitiço. Não há bons e maus. Quando tratamos os outros como maus, eles tratam-nos da mesma maneira. Ficamos todos maus. O segredo da vida é sermos todos bons. Enquanto não formos capazes de tratar todos como bons, vamos andar sempre zangados uns com os outros. E a fazer grandes makas.

Meu Pai era um desterrado. O senhor Van-Dúnem também. Foi parar ao Negage de castigo. Para não ficar só, um dia levaram-lhe o neto. Eles eram os bons para mim mas os maus para quem os desterrou. Se tratamos os outros por maus, então também somos tratados assim.  

O senhor Navalny morreu numa prisão onde cumpria pesada pena. Ele devia saber que os russos não toleram nazis. O Nacionalismo Russo brota da Mãe Rússia, uma força telúrica que derrotou as “invencíveis” hordas hitlerianas.

A União Soviética, hoje Federação Russa, perdeu 26,6 milhões de pessoas durante a II Guerra Mundial. Mais de metade de todas as mortes registadas em todos os países que entraram no conflito. O Exército Vermelho libertou a Humanidade dos nazis. Abriu as portas dos campos de extermínio. Navalny podia opor-se ao regime. Mas não podia apresentar-se como nazi. Foi julgado e condenado por isso e por outras.

A morte de Navalny está a ser explorada politicamente pelo “ocidente alargado”. Uma desumanidade. Uma baixeza inqualificável. Enfim, os políticos do ocidente alargado começaram com tiques nazis e agora a maioria não esconde a sua apetência para o nazismo. Na Europa já conseguiram mais do que Hitler. Nos EUA houve Trump e a dose pode ser repetida lá para o final do ano. O Brasil teve um Bolsonaro e a Argentina tem um Milei. O Equador tem o seu Noboa, nascido em Miami, ninho de máfias sociais e políticas.

O secretário-geral da ONU exigiu às autoridades russas uma explicação credível sobre a morte de Navalny. Moscovo anunciou um inquérito sobre a morte do presidiário. Em qualquer país do mundo isso acontecia, dadas as circunstâncias da morte. Os peritos vão fazer uma autópsia para determinar as causas. Trabalho da Medicina Legal.

Uma Redacção com Jornalistas não dá esta notícia: O corpo de Navalny está desaparecido. A sua porta-voz, num inglês de Cambridge, exige que o corpo seja entregue imediatamente à família. Os russos esconderam o corpo de Navalny para apagarem os vestígios do crime. Só numa lixeira, frequentada por porcalhões, isto é “notícia”. Nem sequer tem dignidade de propaganda. É o ocidente alargado bolsando peçonha e mau perder contra um Estado Soberano, o seu Governo e sobretudo sobre o Chefe de Estado, Vladimir Putin. Um nojo.

Os peritos estão a fazer uma autópsia para determinar as causas da morte do recluso. Não podem entregar o corpo à família! Se o recluso caiu inanimado é preciso saber porquê. E isso não se faz com conversa. Não é trabalho de lixeiros. Não se faz na lixeira. Os “jornalistas” do ocidente, alargado não sabem o que é uma autópsia. Não sabem o que é Medicina Legal. São apenas carregadores de gravadores, câmaras e microfones. Sem cabeça. Pior do que a morte de Navalny é a morte do Jornalismo no ocidente alargado.

Um comentador internacional de grande prestígio, Gilbert Doctorow, aponta o dedo aos serviços secretos britânicos. Explica com grandes pormenores como Navalny foi morto pelos bófias de Londres. Lá está a lição do latoeiro meu vizinho na Kapopa do Negage. Se apontamos o dedo aos outros considerando-os maus, eles respondem com a mesma moeda. Os assassinos de Navalny estão nos serviços secretos britânicos!

Há uma terceira hipótese sem apontar o dedo a ninguém. Navalny teve morte súbita. Acontece aos melhores. Eu que sou dos maus para meio mundo, um dia caí para o lado e acordei no bloco operatório. Um especialista em cirurgia cardiovascular garantiu-me mais uns anos de vida como é público e notório. Só para me obrigar a pagar contas e a comprar medicamentos. Não se faz isto a ninguém. Nem aos nazis quanto mais a uma vítima do imperialismo como eu.

* Jornalista

Sem comentários:

Mais lidas da semana