Rui Peralta, Luanda
I - O projecto de
construção de uma América unida, iniciada por Bolivar, Francisco de Miranda,
Francisco Morazán, José Marti e outros, sempre encontrou, por parte de Washington,
uma persistente resistência, uma vez que contrariava as apetências imperiais,
desde muito cedo manifestas, da parte Norte do continente. Ontem, como hoje, as
forças que sempre se opuseram á integração americana e a um real e efectivo
processo de independência e assunção da soberania popular na América Latina e
Caribe, encontraram (tal como encontram) em Washington os seus mentores,
financiadores e protectores.
Desde muito cedo,
nos USA, desenvolveram-se tendências, que se tornaram dominantes, contrárias á independência
dos territórios que actualmente compreendem a América Latina e o Caribe. John
Adams, que foi presidente dos USA entre 1797 a 1801, aconselhava prudência aos seus
compatriotas, alertando-os para o perigo da Inglaterra se fortalecer com as
independências a Sul do continente, reagindo às informações que chegavam ao
Norte, sobre a insurreição de Tupac Amaru em 1780 - 1781.
Thomas Jefferson,
manifestou as mesmas preocupações e considerava que o fim do domínio espanhol
só beneficiaria a Inglaterra. Foi com os mesmos argumentos que George
Washington (presidente no período 1789 – 1797) decidiu apoiar a administração
colonial francesa no Haiti, durante a revolução haitiana e que os USA
negaram-se durante muitos anos a reconhecerem a independência do Haiti.
II - Só no início
do século XIX é que os líderes norte-americanos concluíram que os processos em
curso, na época, na parte sul do continente, eram, afinal, os ecos da revolução
iniciada no norte e que seriam inevitáveis os resultados das independências a
sul do continente. Mas se o Congresso dos USA aplaudia e apoiava o processo de
emancipação a Sul do continente, no executivo continuava a preponderar a ideia
de que este processo apenas iria beneficiar a Inglaterra e que constituiria a médio prazo uma ameaça á independência dos USA, pelo que seria preferível
manter a presença espanhola a sul do continente, até que os USA estivessem em
condições de enfrentar a Inglaterra e conduzir esse processo de emancipação.
Em 1819, John
Quincy Adams, presidente dos USA e Luís de Onís, ministro espanhol, subscrevem
em Washington o tratado que legalizava a possessão da Florida para os USA. Após
a ratificação do tratado a política norte-americano alterou-se em relação às
independências sul-americanas. Os USA passaram á ofensiva no Texas e em Cuba,
que reivindicaram territorialmente e reconhecem as independências das colónias
espanholas, embora mantenham uma política de neutralidade, aprovada pelo
Congresso dois anos antes do tratado da Florida, durante a administração de
James Madison (1809 – 1817).
Mas esta neutralidade
dos norte-americanos é apenas aparente, consistindo na realidade um subterfúgio para dissimular os seus reais interesses. Em 1817, o governo republicano da
Venezuela proclamou o bloqueio da Guayana e Angostura, em posse dos realistas espanhóis.
Os USA fizeram ouvidos de mercador e furaram o bloqueio. Os republicanos
venezuelanos aprisionaram dois barcos norte-americanos, que ignoraram o
bloqueio e que transportavam viveres e munições para os realistas.
Nos USA, Cobbett
iniciou uma campanha no seu semanário, contra a falsa neutralidade parcial dos
USA a favor de Espanha e solidarizou-se com os republicanos da Venezuela,
exigindo que o governo norte-americano entregasse armas, munições e equipamento
aos Venezuelanos e terminasse com o apoio camuflado de neutralidade aos
espanhóis. Um facto ocorrido em 1817 contribuiu ainda mais para desmascarar a
pretensa neutralidade norte-americana: em Junho desse ano, mais de uma centena
de patriotas sul-americanos ocuparam a ilha Amélia, na costa norte da Florida e
proclamaram a Republica Livre da Florida, estabelecendo a capital em
Fernandina. Os revolucionários içaram a bandeira venezuelana e dominaram toda a
ilha.
A posse deste ponto
na Florida era de extrema importância para os patriotas venezuelanos, pois
permitia-lhes a comunicação com os USA, para além das operações logísticas a
partir da costa norte-americana e ao mesmo tempo era um reforço ao bloqueio de
Guayana e Angostura, detendo todo o abastecimento norte-americano aos
realistas. Foi a partir desta Republica Livre, que durou 66 dias, que as duas
embarcações norte-americanas foram detidas. Os norte-americanos (decorria a
administração James Monroe, sendo John Quincy Adams o secretario de estado)
invadiram a Ilha Amélia e ocuparam Fernandina.
III - Para além
desta política de falsa neutralidade dos governos norte-americanos perante os
movimentos de emancipação sul-americanos, Washington adoptou uma atitude de
recusa em receber os enviados diplomáticos da América Latina. A Junta Suprema
de Caracas foi a primeira a enviar as suas comissões aos USA em busca de apoios
para a causa da independência e do reconhecimento oficial. A missão foi um
fracasso. Os norte-americanos não reconheceram a Junta Suprema de Caracas e não
ouve qualquer apoio. Por exemplo, as fábricas norte-americanas alegaram que não
podiam fornecer armas porque já havia outros compromissos comerciais com outras
nações.
O presidente
norte-americano Madison prometeu enviar a Caracas um cônsul, depois de Caracas
decretar a liberdade de comércio. Esta proposta foi recebida friamente em
Caracas. No fundo a posição norte-americana resumia-se a não reconhecer a Junta
Suprema, desde que esta não reconhecesse de forma oficial o governo dos USA e
aceitasse as condições comerciais dos USA.
Também o Governo de
Cartagena das Índias (Colômbia) pretendeu estabelecer relações diplomáticas com
o governo dos USA, mas teve o mesmo destino que a Junta Suprema de Caracas, e
das comissões do Chile e de Buenos Aires, embora a este último bastasse
reconhecer os USA como a nação mais favorecida no relacionamento comercial. Na
administração de Madison, o único enviado diplomático que o secretário Monroe
recebeu de imediato e com cortesia foi o do México, mas para propor ao governo
mexicano a incorporação desse país nos USA.
IV - Do lado
sul-americano, a atitude era a oposta. Os sul-americanos recebiam
respeitosamente os agentes diplomáticos norte-americanos. Buenos Aires recebeu
o cônsul-geral norte-americano em 1811, Caracas o agente diplomático em 1812,
Cartagena em 1816 e Buenos Aires, Santiago e Lima receberam o agente
diplomático em 1817 (Tendo Buenos Aires recebido o cônsul-geral seis anos
antes).
O governo
norte-americano só reconheceu a Grande Colômbia (actualmente Venezuela,
Colômbia, Panamá e Equador) em Março de 1822. Cuba realizaria uma luta pela independência,
durante 30 anos e apenas foi reconhecida por Washington depois de ter assinado
a Emenda Platt, um apêndice á constituição cubana que converteu a ilha numa
neocolónia dos USA. O Haiti, independente desde 1804, apenas seria reconhecido
pelos USA em 1862. Esta política de Washington é contraditória se considerarmos
que a Republica do Texas, que se tornou independente em 1836, foi reconhecida
pelos USA no ano seguinte e o Panamá que optou pela secessão, afastando-se da
Grande Colômbia, em 1903, a
3 de Novembro, foi reconhecido 3 dias depois, devido ao canal interoceânico que
os norte-americanos estavam interessados em construir.
Todo este pequeno e
resumido historial é, no entanto, suficientemente demonstrativo da política
externa norte-americana, que desde a sua fundação sempre se regeu pela
necessidade de expandir a sua hegemonia. Os USA apenas reconheciam a
independência dos países do sul do continente quando os benefícios económicos
se tornavam evidentes. Para trás e no esquecimento ficaram todas as declarações
dos pais fundadores dos USA e os seus princípios constitucionais. Até hoje e durante
todo o tempo em que o Capital subjugar a democracia norte-americana.
V - Há 250 anos
David Hume intrigava-se com o facto de muitos serem governados por poucos, de
uma maneira tão fácil e interrogava-se sobre o que conduzia o Homem a essa
submissão. Concluiu, há 250 anos, que o governo baseia o seu controlo na
opinião.
Hutchenson, um
pedante moralista, contemporâneo de Hume, considerava que a questão colocada
por Hume era subversiva e que existia um princípio, a que denominou consentimento
dos governados, que era o que fazia que as massas “estupidas e preconceituosas”
consentissem com o que era feito em seu nome, pelos governantes.
Este princípio foi
aprimorado nos USA, através da sua história. Está evidenciado nas relações com
o sul do continente americano, foi evidenciado na Guerra das Filipinas (onde a
imprensa norte-americana afirmava que as tropas norte-americanas estavam “massacrando
os nativos á moda inglesa, de forma civilizada” e com o “consentimento futuro
dos filipinos, que reconheceriam o gesto norte-americano, num futuro próximo”, foi
patente na Coreia, no Vietname e mais recentemente no Iraque e no Afeganistão.
A indústria
mediática dedica-se ao controlo da opinião pública, ao ponto desta tornar-se um
murmúrio zombie, apenas ouvido em privado. Toda esta atitude tornou-se ofensiva
generalizada a partir do momento em o moralista (medíocre, como todos os
moralistas) Hutchenson tentou tapar a boca a Hume. Porque a partir daí surgem
todo o tipo de barbaridades expressas, como a de Hamilton considerar que o povo
é uma grande besta que precisa de ser domada.
Há de facto uma
besta, mas não é o povo, mesmo se não entendermos muito bem o que é que esta
identidade o povo representa e que sectores comporta (o léxico burguês está
carregado destas meias verdades e de conceitos inúteis e vazios, como povo,
sociedade civil, opinião pública, etc., devido á mediocridade e generalização
do mundo burgues), mas existe de facto uma besta – o Capital – indomável e cuja
única solução para os problemas que causa é o seu extermínio.
Os USA são sempre
um exemplo nestas questões (Tocqueville foi o primeiro a compreender a importância
dos USA como exemplo). O comportamento, a atitude, da política externa
norte-americana em relação á América Latina é um exemplo da forma como os
diversos sectores do Capital, dominaram as relações com as nações do sul do
continente, ultrapassando as tímidas recomendações e princípios expressos pelo
Congresso e as barreiras criadas pela soberania popular. Mas esses princípios
aplicados nas relações exteriores não eram mais do que o espelho da política
interna. A diplomacia do negócio não é mais do que a continuidade do negócio doméstico,
levado para lá das fronteiras.
VI - O padrão de
relacionamento com a América do Sul nunca mudou. Durante a administração
Kennedy o conceito de missão das Forças Amadas da América Latina foi alterado.
Do conceito de “defesa hemisférica” passou a “segurança interna”. Esta decisão
não foi uma mera alteração de conceito de defesa ou de política externa dos
USA. Foi uma alteração de relacionamento entre centro e periferia. Com essa
alteração a administração Kennedy reposicionou a periferia.
A primeira consequência
deste reposicionamento foi o golpe que instituiu a ditadura militar brasileira.
As Forças Armadas brasileiras eram consideradas pelos norte-americanos como uma
“ilha de sanidade” e o golpe foi considerado pelo embaixador dos USA na época,
Lincoln Gordon (um economista de Harvard), como uma “rebelião democrática” e “vitória
mais decisiva da liberdade na metade do século XX”, acrescentando que o golpe
militar iria “criar um clima muito melhor para investimentos privados”. A
continuação deste processo é conhecida e trágica quando foi transposta para a
Argentina e para o Chile.
A protecção do
investimento privado dos USA e o comércio são a base da política externa dos
USA. O principal destinatário da ajuda e do treino militar norte-americano na América
Latina, actualmente é a Colômbia, cujo regime oligárquico, curiosamente, é o
campeão das violações aos direitos humanos no hemisfério. A base deste
relacionamento é um mito denominado “guerra ao narcotráfico”, um mito criado em
Washington, usando actores colombianos (de péssima qualidade).
Um mito porque o
regime colombiano é alicerçado no narcotráfico e sustentado pelas verbas dos
narcotraficantes. É um regime aberrante, produto das decadentes oligarquias
latifundiárias e da sua aliança com os sectores financeiros, suportada pelos
militares corruptos, cujos salários são pagos pelos cartéis da droga. O país é
um imenso cemitério, onde as milícias paramilitares dos traficantes impõem a
sua lei. O terrorismo de estado é a norma e o genocídio prática corrente. Pois
é esta a “democracia” que os USA consideram estável e um exemplo para a América
Latina.
VII - Esta politica
externa é a consequência do panorama interno dos USA. E o panorama interno não
é mais do que uma sociedade dominada por uma minoria manipuladora que controla
a maioria através da alienação. Sociedade profundamente alienada, em que a
opinião publica é manipulada por “fazedores de opinião”, cujas elites escolhem
os candidatos a presidentes, como se fossem presidentes de conselhos de
administração de uma qualquer multinacional e que fazem do eleitorado um imenso
rol de consumidores que votam na melhor cosmética realizada aos candidatos e
que assumem como seus os representantes do Capital.
A alienação da
sociedade norte-americana é traduzida nos conceitos do “american dream” e do “american
way of live”, conceitos divulgados de forma persistente pela indústria
mediática, a nível interno e na periferia. São milhões os pobres que vindos da
América do Sul correm atrás do “american dream”. Muitos perdem a vida em busca
desse sonho e milhões vêm a sua ilusão acabar mal. Poucos são os que se
apercebem, a tempo, do alcance desta máquina propagandística e muito poucos os
que conseguem singrar no mundo hostil do “american nightmare”.
Uma coisa já ficou
determinada pelos últimos movimentos democráticos de contestação social nos
USA, os Occupy: A elite é apenas um por cento…Talvez esta quantificação ajude a
despertar os sentidos entorpecidos por séculos de intoxicação.
Fontes
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