quarta-feira, 12 de junho de 2013

Colômbia: PAZ, PAX OU PÁS?

 

Rui Peralta, Luanda
 
I - No passado dia 26 de Maio as delegações das Forças Armadas Revolucionarias da Colômbia-Exercito Popular (FARC-EP) e do governo colombiano divulgaram, em Havana, um comunicado conjunto. Após seis meses os representantes das FARC-EP e do executivo colombiano chegaram a acordo quanto á Reforma Rural Integral, primeiro ponto da Agenda de Paz em curso. 
 
O documento preconiza profundas transformações nas zonas rurais, tendo sido muitas das exigências das FARC-EP aprovadas, como as relativas ao acesso e uso da terra, à formalização da propriedade, às terras improdutivas, aos programas de desenvolvimento social, ao estímulo à produção agropecuária, ao Fundo de Terras para a Paz e ao ambiente. Abre-se assim um novo ciclo dos Diálogos para a Paz.  
 
No dia 11 deste mês (estou a escrever a 10) as delegações iniciam a discussão do segundo ponto da Agenda: a Participação Política, um ponto de extrema importância para a Colômbia, uma sociedade onde a democratização é um processo lento e complexo, dificultado por uma oligarquia esclerótica e em que a participação é limitada, pois a estrutura oligárquica prefere (para estrangeiro ver e por uma questão de imagem, que facilita os negócios) um sistema de mera representatividade, suficiente para legitimar o seu poder. No entanto o presidente Juan Manuel Santos afirmou estar empenhado no processo de paz, desde que decorra "com prudência e responsabilidade".
 
Será que o presidente colombiano considera a participação política um foco de imprudência e responsabilidade? Atendendo aos hábitos e interesses da oligarquia, a resposta é sim. Esta questão da participação é assustadora para a oligarquia colombiana e inclusive aterradora, se associarmos às alterações na estrutura rural e agrária que o país vai sofrer, pela aplicação do primeiro ponto da Agenda (é bom não esquecer que a oligarquia colombiana tem origem nas áreas rurais, onde mantem o seu domínio, com base na estrutura latifundiária).
 
Quanto às FARC-EP, consideram positivo o acordo alcançado mas alertam para as dificuldades de diálogo, encontradas nos restantes pontos da Agenda, nomeadamente os relativos à droga, ao cessar-fogo e armamentos e à reintegração das populações expulsas dos seus territórios, pontos onde as divergências entre ambas as partes são profundas. Aliás, esta organização partiu para as conversações com muito maior coesão interna (pelo menos não são conhecidos, no seio das FARC-EP, opositores ao processo) do que o governo colombiano, que manifesta posições dúbias, em consequência das divisões internas no seio das forças governamentais.
 
A conquista da Paz implicará, a medio e longo prazo, o desmantelamento do aparelho oligárquico e da sua estrutura repressiva e as FARC-EP estão conscientes dessa realidade e das suas consequências na sociedade colombiana. Mas também o regime tem essa consciência e a oligarquia sabe que terá muito a perder se o processo não for devidamente negociado.  
 
O governo fala a duas vozes, restando compreender se este é um comportamento propositado (utilizando o método do policia bom e do policia mau) ou se são divergências reais no seio da oligarquia colombiana. Surgiram novas camadas na sociedade colombiana, não provenientes da oligarquia, mas parasitárias e dependentes desta, que com o processo de globalização da economia, emergiram e autonomizaram-se, tendo hoje voz politica. Seja como for, enquanto o presidente colombiano mostra-se “esperançado”, o alto comando das Forças Armadas sabota os debates de Havana – apoiados pela Noruega e Cuba – intensificando a guerra, conforme pode ser verificado nos bombardeamentos que as forças governamentais efectuaram em várias regiões do país, nas zonas que considera serem de influencia da FARC-EP, “zonas de subversão” controladas pelos “terroristas” (segundo os parâmetros dos militares) e muitos ministros, a começar pelo do Interior, referem constantemente que caso as conversações não conduzam a acordo, até ao Natal de 2013, estas deverão ser suspensas.
 
II - Esta posição de alguns sectores minoritários contrasta em absoluto com os sentimentos das camadas populares da sociedade colombiana que aderem de forma entusiástica às iniciativas do Movimento Colombianos para a Paz, lançado pela ex-senadora Piedad Córdoba. E a adesão destes sectores, os mais carenciados, tem uma razão de ser.
 
A situação social na Colômbia continua a degradar-se. A corrupção desenfreada e a miséria, nas grandes cidades, alastram. As bem equipadas forças armadas colombianas absorvem uma imensa fatia do orçamento geral do Estado. A fome atinge oito milhões de pessoas, e quinze mil crianças morrem anualmente, por desnutrição, antes dos cinco anos. Dirigentes sindicais, dirigentes camponeses, líderes comunitários e outros cidadãos que exercem os seus direitos são assassinados todos os meses. O fosso entre ricos e pobres aumenta a cada ano, sendo a Colômbia uma das sociedades mais desiguais do mundo. A muitos pouco mais resta do que a adesão á luta armada.  
 
É aqui que entram as FARC-EP (que comemoram 49 anos de existência e de luta ininterrupta),  incluídas pelo anterior presidente colombiano, Álvaro Uribe, (acusado de relacionamentos diversos, com Pablo Escobar, que parece ter financiado a campanha que levou Uribe á presidência, para alem de apoiar as milícias paramilitares incentivadas durante a administração de Uribe) nas listas, da União Europeia e da ONU, de organizações terroristas. As FARC-EP assumem-se como organização revolucionária, marxista-leninista, mas não é o marxismo-leninismo e o discurso ideológico que alimentam as esperanças dos seus guerrilheiros ou o número considerável dos que alentam e juntam-se às suas fileiras, mas sim o facto de ser na luta armada que muitos colombianos conseguem encontrar um espaço de liberdade e de transformação e fugir ao pesadelo da corrupção e das perseguições da oligarquia (que nem sempre utiliza os meios legais, preferindo os meios paramilitares).
 
O que leva os cidadãos a empunhar as armas contra o poder instituído é a repressão, a humilhação, o ter uma vida sem perspectivas, o ser assassinado por esquadrões paramilitares de extrema-direita, formados por militares, policias e gângsteres dos bandos do narcotráfico, são os estabelecimentos prisionais do regime e a imensa mentira em que vive a sociedade colombiana, desde á décadas.
 
Quem é o guerrilheiro das FARC? O trabalhador que fez greve e que viu os seus colegas desaparecerem e que foi vítima de atentados; o camponês que foi expulso das suas terras e que não tem como alimentar os filhos; o desempregado; os que viram as suas comunidades e as suas nações indígenas a serem espoliadas, recolocadas, ou simplesmente expulsas dos seus territórios ancestrais pelas mineiras ou pelos latifundiários; o estudante que foi preso e torturado, apenas porque participou numa reivindicação associativa;  as mulheres, vítimas permanentes da dupla exploração e que sentem na pele a humilhação do género; enfim toda a imensa camada de explorados, espoliados e humilhados por uma oligarquia que pretende manter o seu domínio sem olhar a meios.
 
III - Uma das cláusulas da Agenda estabelece que o Acordo Geral de Paz, apenas será possível se existir aprovação de todos os pontos que o formam. Não chegar a acordo em qualquer um dos pontos implica a anulação dos demais. Esta exigência do governo  é demonstrativa da má-fé da oligarquia e tem sido permanente nas posições dos delegados do governo na Mesa de Negociações, a ausência de vontade em negociar de forma séria e transparente e em ameaçar continuamente a ruptura das conversações.  

A encruzilhada no processo de paz, coloca-se nos seguintes termos: A paz só é possível com as reformas e as reformas terminarão com o domínio oligárquico. É evidente que o governo estabeleceu linhas que limitam o efeito das reformas, mas um facto é que não está em condições de evitar as reformas, porque estas revelam-se necessárias para o desenvolvimento económico da Colômbia. Alguns sectores da burguesia colombiana há muito que entenderam isso e estão a favor das reformas, preconizando um fim rápido para a oligarquia, que também a eles, asfixia, apoiando assim o bom termo das conversações.
 
A maioria dos colombianos manifesta-se favorável á transformação do sistema político colombiano e o actual presidente soube aproveitar esse clima, durante a campanha eleitoral que o elegeu. Mas é necessário, para que as conversações determinem acordos, que do lado do governo, este processo não seja encarado como um mero processo de desarmamento, para o qual se faz algumas concessões. Para o processo de paz resultar, terá de ser encarado pelo governo colombiano, como muito mais do que isso.
 
A Paz vai permitir que uma alta percentagem do PIB, actualmente aplicada na guerra, seja aplicada na modernização da sociedade colombiana e no seu desenvolvimento efectivo, criando uma politica social abrangente, um sistema nacional de saúde e uma rede publica de educação, universal e gratuita e que os sectores produtivos sejam relançados e possam penetrar no mercado global, que a investigação cientifica e tecnológica possa florescer e o ecossistema não seja degradado, enfim os factores mínimos indispensáveis a uma sociedade onde o bem-estar não seja um fim inalcançável, para a maioria, mas uma realidade para todos. Para isso acontecer é necessário que amplos sectores da sociedade colombiana mobilizem-se nesse sentido.   
 
IV - O acordo obtido, sobre as terras, é um marco importante. Alguns criticam-no por ser demasiado genérico, pouco preciso, mas são os acordos genéricos que prevalecem, na História, pela sua flexibilidade e pela sua adaptabilidade ao tempo e às transformações. É evidente que este sector é uma ameaça para os sectores mais tradicionalistas da oligarquia agrária, mas para outros sectores da mesma oligarquia, não tradicionalistas e mais vocacionados para a capitalização da terra, este acordo poderá representar uma excelente oportunidade para a reconversão da sua actividade, passando do parasitismo latifundiário aos dinâmicos processos do agronegócio.
 
Por outro lado, para os camponeses e para os assalariados rurais, este acordo representa uma enorme melhoria na sua condição e uma perspectiva de futuro. As cooperativas e os terrenos comunitários poderão conhecer uma maior expansão, os sistemas agrícolas serão melhorados e modernizados, os conhecimentos ancestrais sobre a terra e sobre a produção da terra, poderão ser aperfeiçoados e novos métodos serão, certamente, aprendidos.
 
Sendo este universo de transformações possíveis, apenas com o acordo sobre o ponto, o que não será possível com os acordos nos restantes pontos? Mas parece que o presidente colombiano tem algumas dificuldades em compreender a dinâmica que será desencadeada pelo processo de Paz. No passado dia 2, deste mês, o presidente acusou as FARC-EP de ameaçarem os dirigentes da Confederação Geral de Trabalho (CGT), baseado num panfleto que circulou em Bogotá, de uma das frentes das FARC-EP, a Frente António Nariño, o que foi rechaçado pela Delegação das FARC-EP em Havana, dois dias depois.
 
O governo colombiano não pode andar á procura de motivos para ganhar pontos nas negociações. É que o regime colombiano é acusado, desde á anos, do desaparecimento e assassinato de centenas de sindicalistas. Esta súbita preocupação com a CGT é um pouco fora do contexto e acaba por dar algum cabimento á acusação das FARC-EP de que tudo não passou de uma montagem dos serviços de informação.
 
Estes “solavancos” são normais num processo negocial, mas não são salutares á continuidade do processo, porque criam desconfianças, num momento em que a confiança ainda não foi criada entre as partes. É evidente que tudo isto pode também ter sido uma efectiva ameaça das FARC-EP sobre um sector sindical que foge ao seu controlo e com o qual o governo tenta obter apoios para a sua politica. Isso também pode ser concluído a partir das declarações dos delegados das FARC-EP.
 
Seja o que for e como for, a atitude de ambas as partes tem de ser alterada. Se de facto pretendem dialogar e chegar a acordos que acabem com uma guerra interna de décadas, nenhuma das partes pode ameaçar sectores independentes, que não se colocam nas perspectivas dos oponentes. É legítimo estabelecer alianças, durante um processo negocial e é legítimo tentar evitar as alianças estabelecidas pelos oponentes, o que não é legítimo é evitá-las com base na ameaça e na coerção
 
V - Os crimes cometidos pela oligarquia, através das décadas, não são uma consequência da guerra, mas sim o factor gerador da guerra. Grupos de cidadãos recorreram e mantiveram-se na luta armada, devido á violência do regime e ao seu carácter visceralmente corrupto e corruptor. Esse foi o factor que gerou e manteve a guerra que a Colômbia conhece á décadas.
 
Um dos exemplos da violência do poder e de uma administração corrupta e intrinsecamente ligada ao narcotráfico (e que praticou uma nova forma de terrorismo de estado: o narcoterrorismo de estado) foi a administração do ex-presidente Álvaro Uribe. Nos últimos anos vários dos seus colaboradores mais próximos (cerca de trinta ex-deputados) e membros da sua família, foram processados e a maioria deles, condenados, tanto em processos judiciais sobre ligações a grupos paramilitares, como a clãs do narcotráfico. Alguns deles foram responsáveis por milhares de assassinatos.
 
Em Janeiro de 2013, chegou a vez de Álvaro Uribe. As autoridades colombianas (Fiscalia General) abriram uma investigação sobre as suas responsabilidades na criação e financiamento de grupos paramilitares. Os factos em investigação remontam á década de noventa, quando Álvaro Uribe ainda era governador da província de Antioquia, Segundo declarações documentadas de diversas testemunhas e outras provas em verificação, o então governador provincial, Álvaro Uribe, foi um dos impulsionadores da criação da AUC (Autodefensas Unidas de Colômbia), organização responsável por crimes diversos, atentados e massacres. A AUC formava os seus gangsters numa fazenda de Uribe, a Fazenda Guacharacas e financiou a campanha de Uribe á presidência, com dinheiro do narcotráfico, a segunda actividade da organização, depois do assassinato, tortura e massacres (a terceira actividade da AUC eram as bananas, sobre as quais tinham uma comissão sobre as caixas saídas das fazendas para o mercado). 
 
Claro que os investigadores e os fiscais são alvo de pressões políticas e de ameaças constantes, o que dificulta e torna lenta a investigação, sujeitos a um apertado esquema de protecção. Os factos imputados prescrevem em 2016, pela lei colombiana, mas poderão ser levados ao Tribunal Internacional de Haia, pois trata-se de crimes contra a humanidade.
 
Também estas são questões fundamentais no processo de paz. Os crimes cometidos pela oligarquia têm de ser discutidos e alvos de procedimento judicial. E aí, não parece existir uma grande abertura por parte do actual presidente colombiano e do seu executivo, em considerar esta questão. Seria positivo que o governo colombiano avançasse com esse processo de discussão, de uma forma transparente (como se passou no Peru e na África do Sul), mas o mais provável é que não o faça e que tente impedi-lo (em vão, pois será uma questão levantada pela dinâmica do processo de paz, num contesto em que fugirá ao controlo do governo).
 
VI - Um bom exemplo de participação e de envolvência no processo de paz é dado pelo Partido Comunista Colombiano (PCC), que nomeou Carlos Lozano Guillén como seu candidato ao Senado, nas eleições de 2014. Integrante do colectivo Colombianas e Colombianos pela Paz, Carlos Lozano é jornalista, director do semanário VOZ, desde 1991, membro do Comité Executivo Central do PCC, porta-voz da Marcha Patriótica e ex-membro da Junta Nacional do Polo Democrático Alternativo.
 
Autor de nove livros e coautor em dezenas de livros sobre os mais variados temas, Carlos Lozano recebeu numerosas distinções na Colômbia e no exterior, entre elas a Ordem do Cavaleiro da Legião de Honra, a mais alta distinção que a França concede aos estrangeiros. A importância desta candidatura no processo de paz reside no facto de fazer parte de um projecto amplo pela paz e democracia. O projecto aspira a que a Marcha Patriótica lidere o projecto de unidade em trono das conversações de paz, buscando os mais amplos compromissos com os mais variados sectores da sociedade colombiana.
 
É exactamente esta a atitude mais correta e comprometida com o processo de paz e este é um exemplo que deve ser seguido por outras forças políticas colombianas (desde que comprometidas com o actual processo e que antevejam o alcance do mesmo, para o futuro da Colômbia). É este carácter unitário, de mobilização da sociedade colombiana que poderá fazer cumprir o artigo 22 da Constituição desse país, que estabelece a paz como um direito fundamental dos colombianos. São os cidadãos que têm de forçar ambas as partes (FARC-EP e governo) a um diálogo consistente, que garanta as bases de construção do futuro para a Colômbia e a paz como política de Estado.
 
Da compreensão, por parte dos actores políticos em diálogo, deste anseio das mais amplas camadas da sociedade colombiana, poderá resultar uma Paz efectiva. Que não seja podre nem Pax Americana.
 
Fontes
Rodrigues, Miguel Urbano As FARC-EP, meio século de luta pela paz. http://www.odiario.info/?p=2881 
 

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