Daniel Olivera – Expresso, opinião
O governo aprovou,
na última quinta-feira, sem grande debate nacional, a possibilidade de
financiamento direto aos alunos de colégios privados. No Decreto-Lei, nenhuma
carência de oferta pública tem de justificar este apoio. Não há sequer qualquer
referência a dificuldades económicas dos subsidiados pelo Estado. Na prática,
com os "contratos simples de apoio à família", agora sem qualquer
regra de atribuição, o Estado passa a tratar os colégios particulares da mesma
forma que trata as escolas públicas (o próprio Crato o confirmou), abatendo na
propina do aluno do privado o mesmo que calcula gastar num aluno do Estado.
Acontece que os
colégios privados têm vagas finitas. Por isso, basta que haja mais candidatos
do que vagas para os alunos terem de ser selecionados. E os critérios de
seleção são sempre dois: captar os melhores alunos, para subirem no ranking e
serem competitivas, e evitar problemas sociais e disciplinares. Ninguém no seu
perfeito juízo acredita que alguma escola privada dispensará, de forma formal
ou informal, esta prerrogativa de seleção.
Na realidade,
poucos colégios têm ofertas pedagógicas muito diferenciadas em relação ao
sistema público. É mais desta capacidade de seleção que a maioria dos colégios
vive. Seleção que lhes permite garantir melhores resultados. Não perder tempo
com alunos com necessidades educativas especiais, com indisciplina e com
problemas sociais é mais do que meio caminho andado para ter um ambiente
escolar mais seguro e melhores resultados académicos. É natural que os pais
prefiram que os seus filhos estudem neste ambiente mais protegido e
selecionado.
De uma forma ou de
outra, as escolas privadas continuarão a querer ficar com os melhores alunos e
os que não representem qualquer dificuldade social ou disciplinar: meninos não
problemáticos de famílias ricas ou de classe média e, com este financiamento,
os melhores alunos das famílias carenciadas. Tudo isto com financiamento
público (e não, como seria normal e já acontece em alguns colégios, através do
mecenato e de bolsas da própria escola). O que quer dizer que as escolas
públicas ficarão com o que sobra: os problemas sociais e disciplinares e os
alunos com necessidades especiais. Que pai quererá ter o seu filho numa escola
que é um ghetto? O que não puder escolher.
O Estado
financiará, através dos impostos de todos, um sistema de ensino dual, com
escolas para ricos e bons alunos e escolas para pobres e maus alunos. Este
sistema de "apartheid escolar", que simpaticamente nos é vendido como
sinal de liberdade de escolha, apenas anulará a principal função da escola
pública: garantir a igualdade de oportunidades, sem a qual a liberdade é uma
mera ilusão.
Em Portugal não é
obrigatório ter os filhos nas escolas públicas. As pessoas têm a liberdade de
escolher se os querem no ensino público ou privado, em escolas laicas ou
religiosas, em escolas portuguesas ou estrangeiras. O que está em debate não é
essa liberdade, que está garantida e é legítima, mas se o Estado está obrigado
a fornecer um serviço público universal e gratuito ou se essa obrigação se
estende ao subsídio a empresas privadas que se dedicam à educação.
Neste Decreto-Lei o
Estado apenas garantirá o financiamento até ao que custa um aluno no sistema
público. O que quer dizer que, para os mais carenciados, a liberdade de escolha
está limitada a escolas que cobrem abaixo desses preços. Acima disso, teremos
famílias ricas, que hoje pagam os colégios sem qualquer financiamento público,
a serem subsidiadas para terem os seus filhos nos colégios mais caros do País.
Só elas poderão pagar o dinheiro que ainda fica a faltar depois da ajuda do
Estado. Só elas continuarão a poder exercer plenamente a liberdade de escolher,
entre todas, a escola do seu filho. Porque a liberdade de escolha é sempre
finita. E a forma mais justa de a garantir é criar as condições para que as
escolas públicas sejam atrativas para todos. Escolas interclassistas e de
qualidade. O que implica recursos financeiros que esta estratégia desviará para
colégios que têm como objetivo (legítimo) o lucro.
Mas vale a pena não
ficar apenas no terreno dos princípios. Conhecemos o País onde vivemos. Sabemos
como faz o Estado negócios com os privados. E até temos alguma experiência no
financiamento público de colégios privados, através dos contratos de
associação. Um dos exemplos foi relatado pela TVI e dei nota dele num dos meus
textos: a GPS, um grupo privado com 24 escolas. Um grupo que, apesar de piores
condições do que as escolas públicas vizinhas, conseguiu, através de bons
contactos no Ministério, desviar alunos que o público tinha condições para
receber para as suas escolas.
Pode dar-se o caso
deste Decreto-Lei resultar apenas do fanatismo ideológico de Crato. Mas não
deixa de ser curioso que isto surja num momento em que milhares de famílias de
classe média retiram, por falta de condições financeiras, os seus filhos das
escolas privadas. O que está a causar enormes problemas a muitos colégios. Mas
que era, ironicamente, uma excelente notícias para as escolas públicas, que
viam a classe média a regressar, garantindo uma escola mais interclassista,
como existia nos anos 80. Nada que entusiasme o ministro. Enquanto continua os
cortes na Educação e inicia um ano letivo com o caos instalado nas escolas
públicas, Crato parece estar mais interessado em gastar as suas energias e os
nossos impostos para salvar os colégios em aflição.
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