segunda-feira, 9 de junho de 2014

VENEZUELA: O QUE FAZER NESSA ETAPA DA REVOLUÇÃO?



Temir Porras, Caracas – Opera Mundi, opinião

"Um dos legados incontestáveis que nos deixou Hugo Chávez é que a liderança pessoal nas complexas circunstâncias da nossa Revolução é necessária"

Irreverência na discussão e disciplina na ação. Essa orientação política do comandante Chávez é mais que nunca necessária hoje, quando a Revolução enfrenta desafios gigantescos e segue atravessando o período crítico aberto pela desaparição física de seu líder fundamental. A incerteza política originada pela fatalidade tem se tornado mais aguda como produto de um cenário econômico complexo que, pela primeira vez em muito tempo, ameaça provocar rachaduras na base social da Revolução.

Não há dúvida de que boa parte das ameaças que pairam sobre a Revolução Bolivariana são de origem externa. Interferência, sabotagem, propaganda, conspiração... Todos esses fatores com os que nos sitiaram desde que o comandante Chávez decidiu governar livre e soberanamente, sem outro império que a vontade do Povo, recrudescem hoje, quando sua ausência nos debilitou de muitas formas diferentes.

Entretanto, considero que, nesse momento, devemos concentrar nossos esforços em examinar nossa própria capacidade de gerar políticas que nos façam avançar fortalecendo-nos, antes de fixar o foco naqueles que procurar nos distrair e desestabilizar.

Em primeiro lugar, porque as ameaças externas sempre existiram, e temos conseguido contê-las e derrotá-las em boa parte graças à nossa fortaleza interna. Enquanto nos acusaram de ditadores, fizemos com que a democracia progredisse, enquanto nos qualificaram de esfomeadores, fizemos com que a pobreza retrocedesse, enquanto tentavam nos isolar, tivemos maior relevância política que nunca. A Revolução Bolivariana soube derrotar internamente seus caluniadores externos fazendo de cada ataque uma ocasião para construir uma vitória.

Em segundo, porque o povo venezuelano, em sua imensa maioria composto de bons patriotas, está plenamente consciente de que as dificuldades que enfrentamos têm muito a ver com nós mesmos e julga permanentemente, de acordo com suas expectativas e aspirações flutuantes, quão capaz é a Revolução de garantir um presente melhor que o passado e um futuro ainda melhor que o presente. Nenhum desses venezuelanos aceita que um gringo pretenda humilhá-lo, e concorda que seu governo faça respeitar a dignidade da Pátria, mas na hora de atribuir as responsabilidades dos males que nos afligem, muito poucos voltam o olhar para o império... Esse critério é aplicado da mesma forma para a desestabilização interna. Por mais desleal e conspiradora que possa ser a direita venezuelana, isso não garante a indulgência popular para com o governo, do qual se exige que mantenha a conspiração sob controle, enquanto garante políticas públicas efetivas. Ninguém em sã consciência, nem na Venezuela, nem em nenhum outro lugar pensa que o principal responsável por seus problemas possa ser a oposição…

Em terceiro lugar, porque a essência da Revolução está radicada em um sonho de transformação nacional feito realidade dia após dia; no extraordinário transformado em cotidiano; em um colocar em movimento toda a sociedade em direção a objetivos transcendentais, mas com conquistas permanentes e palpáveis que demonstram que vale a pena seguir avançando. A Revolução Bolivariana aponta para o amanhã transformando o agora. Além disso, a Venezuela é um país de gigantescos recursos e imensas potencialidades, no qual a Revolução despertou consciências e elevou o nível de expectativas, de forma que as exigências crescentes do povo não permitem que a Revolução se contente em repousar sobre seus louros. Cada conquista constitui o chão sobre o qual se deve construir outra conquista superior, e não somente em termos quantitativos, mas, o que é mais complexo, qualitativos também. A Venezuela deve seguir tendo o maior sistema público de educação, o mais massivo sistema público de saúde e o acesso mais democrático às tecnologias, mas deve também construir escolas e universidade de excelência, garantir a melhor qualidade do serviço médico, assim como a mais alta velocidade de conexão à internet, em pé de igualdade com os melhores padrões internacionais. Uma coisa não é pretexto para sacrificar a outra.

Pois bem, a complexíssima conjuntura econômica que estamos atravessando e os efeitos políticos perturbadores que esta tem gerado constituem um obstáculo considerável para que a Revolução siga garantindo esse avanço interno que fez sua fortaleza na década passada. Temos de pôr tudo em obra para conservar, ou melhor dito, recuperar, nossa capacidade de transformar o presente, e não permitir que uma regressão conjuntural nas condições materiais de vida dos nossos compatriotas, junto com a dúvida sobre a capacidade da nova liderança da Revolução para conduzir os destinos do país, carregue consigo essa obra gigantesca que tanto custou para ser construída.

Mas, para conseguir esse feito, será necessário, paradoxalmente, examinar com severidade nossa estratégia, à luz de circunstâncias que mudaram tão profundamente, em um espaço tão curto de tempo, que não nos permitiram processá-las adequadamente. E essa discussão deve ser aberta e profunda, permitindo que se expressem sossegadamente as diferentes sensibilidades que formam o movimento revolucionário e bolivariano, sem que isso tenha de afetar sua unidade nem sua coesão. Uma vez mais, disso se trata dar irreverência e disciplina.

De minha parte, darei ênfase a três pontos fundamentais sobre os quais deveríamos operar, mais que uma inflexão, uma mudança de rumo estratégico no mais curto prazo possível.

1. No lado político, fortalecer a liderança do presidente Nicolás Maduro

De saída, devemos dizer que aqui não se trata de inventar um debate inexistente sobre se um suposto madurismo viria agora substituir o chavismo. Por um lado, o chavismo é nossa filiação histórica comum e, por outro, algo como o madurismo não existe nem existirá, pelo menos não como ideologia própria. Isso parece ser algo óbvio, mas vale a pena destacá-lo para não perder tempo em discussões estéreis.

Entretanto, não há nada menos chavista que aquilo de liderança coletiva. Um dos legados incontestáveis que nos deixou o comandante Hugo Chávez em relação ao exercício da política é que a liderança pessoal nas complexas circunstâncias da nossa Revolução é necessária, deve ser exercida e deve ser reconhecida. Certamente, a liderança não se decreta, e deve ser construída, consolidada e até ter algo de naturalidade e muita legitimidade, mas não é verdade que o chavismo necessite de uma liderança pessoal sólida. E, finalmente, essa liderança deve ser exercida (essa obviedade merece também ser ressaltada) de corpo presente. Ter um líder histórico e uma fonte suprema de inspiração não basta; falta alguém que lidere a batalha dia após dia no mundo real e exerça a liderança política. Tomando como comparação um exemplo um tanto extremo, poderíamos dizer que a liderança material do presidente Nicolás Maduro não substitui a liderança espiritual do comandante Chávez, da mesma maneira que a liderança de um papa da Igreja Católica não substitui o guia espiritual do Senhor...

Por agora, o que é incontestável é que o próprio comandante Chávez designou Nicolás Maduro como chefe político do chavismo, e que a maioria dos venezuelanos (e obviamente dos chavistas militantes) o elegemos democraticamente como nosso presidente.

Não apostar tudo, sincera e efetivamente, na consolidação da liderança de Nicolás Maduro seria um erro crasso, já que o destino do chavismo está de mãos dadas com o de Nicolás Maduro, e está absolutamente claro que nossa única opção é a vitória. Em caso de derrota, não haverá uma segunda oportunidade.

E se me perguntassem como isso constitui uma mudança de rumo estratégica, responderia que agora se reconhece em Nicolás Maduro sua função de presidente da República, mas não de chefe político do chavismo, com o direito e o dever de imprimir sua visão pessoal na construção da Revolução, transcendendo a simples função de conservador do legado do comandante. Voltarei a este ponto mais adiante.

A liderança do presidente deve ter duas colunas igualmente importantes.

A primeira, já citada, é a histórica, cujo ponto culminante é o sublime discurso do comandante Chávez no dia 9 de dezembro de 2012, designando Nicolás Maduro como seu sucessor. Não me estenderei nesse ponto evidente, a não ser para reforçar o valor dos símbolos e das palavras para Chávez. Ao falar de sua convicção “plena como a lua cheia, absoluta, total”, o comandante não buscou simplesmente usar uma figura de linguagem em um momento tão grave. Conhecendo o peso gigantesco de sua palavra, Chávez indicou taxativamente e reiteradamente quem deveria ser o chefe quando chegasse a hora de sua partida. Até nisso exerceu um ato tipicamente chavista de autoridade. Chávez jamais falou de uma situação transitória, nem de um órgão colegiado, nem de nada do estilo, e seu silêncio a respeito é tão contundente como se ele o tivesse dito. Finalmente, creio profundamente que Chávez designou Maduro para que, como ele o fez, exercesse sua liderança, e que, como consequência, o chavismo deve trabalhar para que essa liderança se consolide, já que nisso está em jogo o futuro da Revolução.

A segunda é de natureza pessoal. Maduro não pode ser somente o “filho de Chávez” ou o fiador do legado. Tem de imprimir sua visão pessoal na condução da Revolução. Por uma razão tão óbvia quanto o fato de Chávez e Maduro serem dois nomes diferentes, e não apenas no que se refere à estatura política, como é evidente. Diferentemente de Chávez, Maduro é um civil, e tem um caráter profundamente urbano, em oposição à ruralidade de Chávez. Talvez por sua formação de sindicalista, tem uma visão muito pragmática da política, de certa forma menos ideológica ou doutrinária que a de Chávez. Isso não quer dizer de nenhuma maneira que suas convicções sejam menos firmes, mas que tem um estilo mais flexível na hora de abordar os problemas. Tudo isso prova, de fato, que Maduro não é parte ideológica de uma corrente de pensamento, como sim o é Chávez, mas é um chefe político dessa corrente e está na obrigação de adaptá-la às circunstâncias. O comandante Chávez encarnou um modo de liderança titânica, demiúrgica, necessária para fazer com que a Pátria renascesse de suas cinzas. Hoje, depois de 15 anos de Revolução Bolivariana, estamos em outro momento histórico, ao qual corresponde uma liderança flexível capaz de tirar o barco da tormenta e em cuja destreza sejamos capazes de depositar nossa confiança para deixar que o manobre segundo seu melhor critério. Esse homem é, sem dúvida, Nicolás Maduro.

E quem pode negar que o pragmatismo seja uma virtude extremamente necessária nas circunstâncias complexas que vivemos? Qual seria o papel de um líder se não o de imprimir sua visão pessoal à política e aglutinar a vontade majoritária ao redor dessa visão?

Por fim, estou convencido de que a melhor forma para que o presidente Maduro siga o exemplo de Chávez não é tentando imitá-lo, mas exercendo a liderança como a exercia Chávez, com suas características próprias, muito necessárias para a etapa da Revolução que vivemos. O Maduro pragmático é muito necessário. Ao escolhê-lo como seu sucessor, Chávez demonstrou uma vez mais que era muito mais visionário que todos nós.

2. No lado econômico, fixar objetivos estratégicos e alcançá-los com pragmatismo

O período turbulento que a Revolução atravessa tem em boa parte causas econômicas. Certamente, a Revolução tem sido a maior onda de democratização política da história republicana venezuelana, mas o que lhe tem dado sua extraordinária originalidade tem sido sua obra de democratização econômica e social, ao contrário da tendência global de aumento das desigualdades. A Revolução Bolivariana se fez imparável tão rápido como conseguiu gerar esse movimento ascendente, que gerou pela primeira vez na história confiança e segurança nas classes populares venezuelanas. A despreocupação com o amanhã, e a confiança de que o futuro será melhor que o presente, para si mesmo e para seus filhos, é um dos cimentos mais sólidos sobre os quais construir um projeto profundamente republicano. Na maioria das sociedades, a participação política tende a se intensificar conforme se sobe na escala socioeconômica. Isso se explica porque a política é um filho para aqueles que vivem na angústia da sobrevivência e preocupados com o amanhã. A Revolução Bolivariana conjurou essa maldição e massificou a participação política ao fazer retroceder a imensa incerteza econômica e social na qual a maioria de nós venezuelanos vivíamos.
 
Hoje, o fantasma da regressão social nos espreita, e é um imperativo exorcizá-lo. E o pior é que não nos espreita porque o governo bolivariano tenha renunciado às suas políticas sociais, que seguem plenamente vigentes. Paradoxalmente, são os grandes desequilíbrios macroeconômicos que conspiram contra os esforços sociais que o governo revolucionário faz, fazendo-o destruir com a mão direita, por assim dizer, o que vai construindo com a mão esquerda.

E a isso me refiro quando falo de agir com pragmatismo, porque não se trata de mudar grandes orientações políticas, mas de tomar as atitudes conjunturais apropriadas para alcançar efetivamente os objetivos levantados politicamente.

A Revolução deve buscar por todos os meios gerar estabilidade e tem de conseguir a via mais direta para chegar lá, porque o tempo conspira contra ela. As desordens macroeconômicas às quais está submetida a sociedade venezuelana têm efeitos rápidos e consideráveis nas condições de vida dos venezuelanos. Fazer as coisas mais ou menos bem, em quantidade insuficiente ou um mês mais tarde do que deveria, tem efeito muito importantes. O melhor exemplo disso é a inflação, cujo estrago é impossível retraçar. Por mais inspeções e ofensivas econômicas que lancemos, se o resultado ao final do mês é 5% de inflação, o povo e o governo perdem. Porque a transferência da conta é imediata e porque recuperar o nível de vida é muito mais lento e trabalhoso que perdê-lo. Em questão de meses podemos perder o que construímos em anos, e que nos tomará anos para recuperar quando conseguirmos inverter a tendência. E trata-se exatamente disso. De inverter a tendência e rápido. Gerando crescimento, reduzindo a inflação para níveis administráveis, racionalizando uma política monetária e cambiária mais parecida com o funcionamento de um cassino que com a de um Banco Central, e fazendo o esforço de administrar a economia tal qual é hoje, e não como gostaríamos que fosse em um mundo que ainda não existe. Porque a economia capitalista, que é a do mundo no qual vivemos, dever ser dirigida de tal maneira que não conspire contra os objetivos imediatos da Revolução (aumentar o bem-estar material, democratizar a habitação, a saúde e a educação etc.) em um país onde o gigantesco peso econômico do Estado é o que condiciona o comportamento de todos os demais atores. Com estabilidade macroeconômica, altos preços de petróleo e políticas sociais de impacto, francamente não falta muito mais para progredir a passos largos em direção a uma sociedade mais avançada. Um pouco de pragmatismo e de eficiência são suficientes.

A heterodoxia macroeconômica é necessária para governar a partir da esquerda: ter uma estratégia audaz de investimento nas reservas internacionais, não sacrificar o crescimento para anular a inflação, recorrer ao déficit fiscal para sustentar a atividade econômica quando é necessário etc. Mas isso não quer dizer que se possa fazer qualquer dessas coisas ilimitadamente, em nome do anticapitalismo. Acabar com as reservas é pior que acumulá-las em excesso, ter inflação de dois dígitos sem crescimento é altamente regressivo socialmente, e fabricar moeda sem limite é simplesmente destruir o seu valor. Conduzir com racionalidade a política econômica não é sinônimo de neoliberalismo, assim como praticar a heterodoxia a ponto da irracionalidade não é sinônimo de socialismo.

Hoje, nosso modelo de avanço social está ameaçado pelo esgotamento dos recursos disponíveis da renda petroleira para dar-lhe um sustento material. Sem maior criação de riquezas, não poderemos sustentar o ritmo dos avanços sociais que a Revolução requer. Frente a essa perspectiva, duas grandes possibilidades se oferecem para nós: por um lado, produzir mais renda extraindo mais petróleo, e, por outro, gerar novas riquezas produzindo outros bens e serviços. Uma aproximação pragmática consiste em buscar as vias mais rápidas para alcançar esses objetivos sem deixar de lado nossos princípios, mas também sendo realistas sobre o que é possível fazer aqui e agora.

Para solucionar nossos mais agudos e urgentes problemas de liquidez, parece mais razoável apostar em recuperar o que diminuiu da nossa produção petroleira tradicional — com alguns recursos bem dirigidos — do que esperar que os megainvestimentos da Faixa ( Petrolífera do Orinoco ) multipliquem nossa produção atual por dois ou três.  No preço de hoje, uma produção adicional de 500 mil barris por dia geraria ingressos anuais adicionais de bilhões de dólares; isto é, em 12 meses o total da dívida comercial que acumulamos em vários anos. Sem dúvida, sonha menos épico que a Faixa, mas bastante mais factível no curto prazo.

Ainda me lembro da lição magistral de política que o presidente Pepe Mujica deu a um de nossos antigos ministros de Agricultura, ao dizer a ele que, enquanto ele estava se preocupando em construir o socialismo no campo, os venezuelanos estavam se alimentando de cerais importados produzidos por empresas transnacionais. Frente a essa realidade cruel, Pepe acrescentou que ele preferia consumir cerais (e alimentos em geral) produzidos por um capitalista venezuelano na Venezuela, que gerasse riqueza no país e lhe poupasse divisas à nação a depender das importações. Isso não será socialismo, mas dentro das possibilidades que temos aqui e agora, é sem dúvida melhor que importar comida produzida pelos gigantes do agronegócio.

3. No lado social, construir uma maioria ampla para transformar em profundidade

É evidente que o chavismo deve reconstruir sua maioria política para voltar a ser a força hegemônica que necessita e merece ser. 50% mais um voto é certamente suficiente para ser um governo legítimo, mas não para desencadear uma marcha imparável em direção ao socialismo...

Para transformar nossa sociedade em paz e com liberdade, nossa Revolução deve contar com o apoio, tácito ou manifesto, da imensa maioria dos nossos compatriotas. Isso não quer dizer que tenham de estar inscritos no PSUV (Partido Socialista Unido da Venezuela), mas que nossas instituições e nossas políticas devem estar em sintonia com as aspirações da imensa maioria da população.

Para isso, o chavismo tem de voltar a ser esmagadoramente dominante nas classes populares (os grupos socioeconômicos D e E) que têm sido historicamente seu sustento, mas também solidamente majoritário nas classes médias (o grupo C) que a própria Revolução alargou. As classes populares são aliadas naturais da Revolução, na medida em que esta lhes garante políticas e direitos sociais que lhes façam sair definitivamente da pobreza e lhes abram novos horizontes para gozar de uma vida plena e prazerosa. Fazer com que milhões de pessoas saiam da pobreza quer dizer, por dedução lógica, que a classe média (em sua expressão mais modesta inicialmente) cresce em proporção correspondente. Este feito extraordinário, do qual teríamos de nos orgulhar ruidosamente, às vezes pode parecer nos gerar incômodo, como se tivéssemos terminado acreditando na caricatura miserabilista que a direita fez de nós. Aquela que sugere que o chavismo busca uma nivelação para baixo das classes sociais, e sonha em destruir as classes médias por ser a materialização da pequena burguesia.

Construir uma sólida classe média, concebida como um vasto grupo social central, altamente educado e disfrutando de um nível de vida avançado qualitativa e quantitativamente, é e deve continuar sendo o objetivo mais concreto da Revolução Bolivariana. Alcançá-lo dentro de uma sociedade justa e solidária, organizada ao redor do coletivo humano e não do dinheiro, é e deve ser seu objetivo superior.

Mas, para alcançar esse horizonte sublime é necessário somar, e muito, procurando que cada ação do governo revolucionário, em qualquer de seus níveis, esteja orientada para incorporar cada dia mais compatriotas a essa grande massa necessária. Ao mesmo tempo em que devemos garantir a eficiência e a pertinência de nossas políticas em todos os âmbitos, devemos também nos preocupar em desarticular tudo o que conspira contra a constituição dessa grande maioria.

Não existe nenhuma razão objetiva, por exemplo, para que uma porcentagem importante da população venezuelana, especialmente nas classes médias e médias-altas, esteja fanatizando e radicalizando contra a Revolução. Que todos não nos apoiem é compreensível, mas que muitos estejam dispostos a qualquer loucura para acabar conosco, não. Os acontecimentos de 2014, e a violência desatada nas áreas urbanas de classe média contra o Estado e tudo o que a Revolução representa é uma interpretação política da sociedade na qual queremos viver. Certamente, a justiça e a lei devem prevalecer, mas além disso, é uma necessidade desarticular politicamente a frustração que essa violência gera, já que a Venezuela que a Revolução se propôs a construir não pode incluir as guarimbas - protestos que bloqueiam as ruas com barricadas - e a violência política como um elemento permanente. Não se trata de governar para uma minoria e ainda menos uma violenta, mas de exigir de nós mesmos não dar nenhum pretexto para a radicalização dos nossos adversários. A falta desse ou daquele produto não é uma razão legítima para praticar o terrorismo político, mas o fato é que algo temos de estar fazendo mal para seja um calvário conseguir shampoo ou leite em um país rico como o nosso, e disso se nutre a conspiração e a violência. Desmascarar os violentos, mas dar-lhes pretextos para gerar violência é, uma vez mais, desfazer com uma mão o que se faz com a outra.

Os grandes desafios que a pátria enfrenta nos compelem a formular respostas que devem ser estratégicas, mas cuja implementação necessite fazer-se efetiva no curto prazo. O breve espaço de tempo que transcorreu desde que começou a crise histórica gerada pelo desparecimento do comandante Chávez, começa a se tornar um tempo grande se quisermos preservar a capacidade política da Revolução de transformar profundamente a realidade, sem contar com a liderança transcendental que ele representava.

O chavismo precisa de um líder, e o presidente Nicolás Maduro, como previu o comandante Chávez, reúne as condições para exercer essa liderança em circunstâncias muito diferentes, onde a ação política deve se impregnar de pragmatismo e conquistar a maior quantidade de progressos efetivos no mais curto prazo. O chavismo deve assumir a consolidação dessa liderança como algo fundamental e permitir que se manifeste com suas características próprias.

A estabilização econômica do país requer que essa liderança pragmática se exerça plenamente, e, ao mesmo tempo, constitui uma condição de sua condição no maior prazo. A sociedade venezuelana está submetida a tensões econômicas tais que são capazes de neutralizar os esforços da Revolução para garantir o progresso e a justiça social. É necessário combater a perspectiva da regressão social, e isso requer uma racionalização da nossa heterodoxia macroeconômica, seguindo o princípio de que um medicamento é efetivo contra uma enfermidade apenas se administrado em doses adequadas. Além disso, nossa política econômica deve estabelecer, com pragmatismo, objetivos concretos de crescimento, inflação, tipo de câmbio etc., que permitam criar as riquezas que darão sustento material ao modelo de progresso que é a razão de ser da Revolução.

Esse modelo deve ser orientado para reconstituir uma grande base social de apoio, uma classe central acomodada que tenha um interesse objetivo e compartilhado no progresso coletivo da sociedade. A Revolução deve estabelecer como objetivo consolidar essa grande base social de apoio para poder seguir promovendo transformações profundas na nossa sociedade, que têm já menos a ver com saudar as dívidas do passado, e cada vez mais com o futuro que construímos juntos. Para isso, a Revolução deve recuperar um apoio massivo em sua base social-popular, adaptar sua estratégia para a emergência de nossas classes médias, produto de sua política de desenvolvimento e justiça social, assim como desarticular, graças à sua efetividade, a violência política e a antipolítica que incuba em importantes setores médios da sociedade.

Talvez assim, empreenderemos a Revolução na Revolução à qual nos convocou o presidente Maduro.

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