Em
Moçambique, mais do que uma manifestação criada para dar enfâse a alguns ritos
tradicionais, a dança simboliza a resistência contra o colonialismo, a
escravidão e o tribalismo, a que fomos sujeitos no passado. Nesse contexto,
surgiram, há vários anos, bailados tais como Xigubo, N’ganda, Timbila, Nyau,
entre outros, cujo objectivo é preservar a cultura e a história do povo. Mas a
capoeira, que persiste desde o século passado como manifestação
artístico-cultural dos negros africanos, desenvolvida na América Latina,
concretamente no Brasil, no nosso país “é ainda considerada uma arte de
maldição”.
No
pretérito domingo, 03 de Agosto corrente, comemorou-se no mundo o Dia
Internacional do Capoeirista. Para celebrar a efeméride, ainda marcada por
preconceitos a que essa classe de artistas é sujeita, vários grupos de Maputo e
Matola juntaram-se, no Centro Cultural Brasil-Moçambique (CCBM), para
manifestarem os seus sentimentos.
Trata-se
de Ginga de Maputo, Mando de Palmares, Mar Azul, Angola Palmares, Legião Capoeira,
Noite de Luar, Quintal dos Palmares, Abaete e Arte Viva. Em declarações ao
@Verdade, os capoeiristas manifestaram a sua indignação relativamente à suposta
marginalização da arte que praticam. Para eles, “a sociedade moçambicana não
valoriza os seus princípios. A capoeira é um veículo da salvação e salvaguarda
da história da nossa liberdade. É a nossa cultura”.
Melquisedeque
Sacramento Santos é contramestre de capoeira do grupo Arte Viva, desde o ano de
2010. Ele é natural da Baía, no Brasil, e reside em Moçambique desde 1999,
tempo suficiente, segundo conta, para afirmar que “fazer a capoeira em
Moçambique é uma batalha”.
Recorrendo
à experiência que adquiriu na sua terra natal, Sacramento Santos refere que ao
contrário do que acontece no seu país de origem – onde surgiu a técnica de uma
das artes marciais – em Moçambique a experiência é completamente diferente:
"Quando saí do meu Estado pensei que em qualquer canto do mundo seria
possível desenvolver o bailado tal como eu vinha fazendo. Mas realizar esta
actividade é uma grande batalha porque as pessoas ainda não assumiram a arte”.
“Temos
que lutar contra certos paradigmas. As pessoas devem deixar de pensar que o
facto de a capoeira ter surgido no Brasil, automaticamente leva o rótulo
brasileiro. Que haja mais investigações sobre a origem desta arte”, afirma o
contramestre.
Uma
das posições defendidas em relação ao estágio actual e o rumo que a capoeira
está a seguir na sociedade moçambicana, foi a questão de divulgar a origem e a
história das danças que contribuíram para a libertação dos moçambicanos, em
particular, e dos africanos, em geral.
Para
além da pedagogia, foi fortalecida a questão de o baile ser igualmente
incorporado nas vastas manifestações culturais existentes em Moçambique. “No
Brasil, por exemplo, a ‘capoeiragem’ é reconhecida como património histórico o
que já dignifica todo o trabalho deixado pelos antecessores mestres e pelos que
continuam a abraçar esta arte, consideravelmente, afro-brasileira”, disse
Sacramento Santos.
Todavia,
apesar desta insatisfação, em alguns países como Angola, a capoeira parece que
já é valorizada como uma manifestação cultural e considerada uma das formas
sublimes de expressar sentimentos e com um contributo incomensurável na
formação moral e cívica de jovens.
Ainda
sobre este assunto, os gémeos instrumentistas (tocam batuque) moçambicanos,
Elias Manhiça e Augusto Manhiça, actuaram nas celebrações do Dia Internacional
do Capoeirista. Eles acreditam que a cultura de um povo é marcada por histórias
e faz parte de uma herança que atravessou várias gerações. Segundo os
entrevistados, pese embora a capoeira seja marginalizada, se for difundida
regularmente, pode enraizar-se na sociedade.
“Eu
creio que tudo quanto tem uma certa persistência acaba por ser aceite. Com esta
iniciativa do contramestre Sacramento Santos, em colaboração com outros
instrutores, embora com alguma estranheza, as pessoas têm a consciência do que
ela (a capoeira) representa para os africanos”, disse Elias Manhiça.
Por
sua vez, Augusto Manhiça lamenta a rejeição da arte em alusão e defende que a
mesma constitui uma manifestação simbólica para toda a comunidade africana e
brasileira. “Sou apologista de que cada expressão cultural tem o seu contexto.
E a capoeira não é excepção. Quando se fala de escravatura recorre-se sempre a
negros por serem as figuras conhecidas que levaram chicotadas no passado".
Mas para a sua salvação, houve intervenção diversificada de capoeristas.
O
nosso interlocutor disse ainda que a aprovação de qualquer manifestação
artístico-cultural como património de um país devia ter em conta, em primeiro
lugar, as demostrações que contribuíram para a libertação dos povos oprimidos
no passado e que actualmente os dignificam. A capoeira é exemplo disso. Deste
modo, continua a ser bastante poderosa para a animação, o entretenimento e a
formação humana.
Sobre
a capoeira
A
história da capoeira começa no século XVI, na época em que o Brasil era
subjugado por Portugal. Daquele território da América Latina saía a
mão-de-obra, ou seja, escravos (negros) para as fazendas com vista a produzir
açúcar para alimentar e economia da metrópole. Baseada em danças tradicionais e
rituais tipicamente africanos, os escravos praticavam a capoeira nos intervalos
do trabalho, treinando, quer o corpo, quer a mente para situações de combate.
Apesar
de a prática de qualquer género de arte marcial desta natureza ter sido
impedida terminantemente pelos seus "donos" (opressores), a capoeira,
como uma forma de manifestação artístico-cultural, continuou mas encoberta
pelos seus praticantes e por todos aqueles que a apreciam como se de dança
recreativa se tratasse.
No
entanto, foi no século XVII que alguns escravos fugiram das casas dos senhores
para formarem "quilombos" (territórios escondidos e governados por
escravos), onde aperfeiçoaram aquela arte. Em 1888, foi abolida a escravatura
no Brasil.
Ainda
assim, a capoeira permanecia proibida. Contudo, continuava a ser praticada pela
população mais pobre, dando origem a perseguições e condenações, numa
tentativa, quase bem-sucedida, de erradicar a capoeira das ruas brasileiras.
Lamentavelmente, a capoeira continua sem espaço em alguns países africanos.
Verdade
(mz)
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