JOSÉ VÍTOR MALHEIROS – Público,
opinião, em 31 julho 2014
Por
que falamos de bancos e de organizações como a ONU, ou o FMI ou a FIFA, como se
fossem respeitáveis?
O
PÚBLICO noticiou esta semana o caso de um ex-presidente da Junta de Freguesia
de S. José, em Lisboa, João Miguel Mesquita, eleito pelo PSD, que foi condenado
em Abril passado a quatro anos e meio de prisão por ter “gasto em benefício
próprio”, entre 2005 e 2007, 12 mil euros pertencentes à autarquia.
O
Ministério Público tinha-o acusado de desviar 40 mil euros e de falsificação de
documentos, mas o tribunal só considerou provado o desvio dos 12 mil euros. A
pena de prisão de João Miguel Mesquita ficou suspensa na condição de que o
condenado pagasse à autarquia os 12.000 euros de que se tinha “apropriado”, o
que significa que não existiu qualquer sanção real para o crime e que o
condenado apenas será obrigado a repor o que roubou, como se se tivesse
enganado nas contas com a melhor boa-fé do mundo e fosse o mais impoluto dos
autarcas.
A
notícia chamou-me a atenção porque me recordou um episódio passado comigo. Há
uns anos, ao sair de uma carruagem depois de uma viagem de metro, senti-me mais
leve do que quando tinha entrado. Ao apalpar os bolsos, percebi que alguém me
tinha palmado a carteira, com documentos e uns escassos euros.
Apresentei
queixa, substituí os documentos e, passados meses, recebi um telefonema da
polícia anunciando-me que tinham prendido um carteirista e que, no meio do seu
espólio, lá tinham encontrado os meus documentos. Fui testemunhar a tribunal,
juntamente com outras vítimas, e o carteirista, que confessou os crimes, foi
condenado a uns anos de cadeia. Não me recordo de o Ministério Público ter
nessa altura proposto ao carteirista a devolução do dinheiro roubado em troca
de uma pena suspensa e de uma libertação imediata, mas penso que o arranjo lhe
deveria ter agradado, já que, no meu caso, a “indemnização” seria de vinte
euros. A razão dos dois pesos da Justiça é evidente: o meu carteirista usava
uma camisa aberta aos quadrados e um blusão de má qualidade, enquanto que os
presidentes das juntas usam em geral fato e gravata. Para mais, o ex-presidente
da junta pertencia a um partido do “arco do poder” e o meu carteirista
provavelmente não teria actividade política.
Todos
os casos que conheço reforçam a minha convicção de que existe uma aplicação do
Código Penal para quem usa gravata e outra, infinitamente menos benévola, em
Portugal e em todos os outros países do mundo, para quem não usa.
Tomemos
o exemplo daquele que é um dos maiores roubos da História: a manipulação da
taxa Libor, ao longo de muitos anos, por um cartel de bancos que incluía
instituições pretensamente tão respeitáveis como o Barclays Bank, UBS,
Citigroup, The Royal Bank of Scotland, Deutsche Bank, JPMorgan, Lloyds Banking
Group, Rabobank e outros. A manipulação de uma taxa interbancária de referência
como a Libor, em benefício próprio, traduziu-se em perdas para muitos milhões
de indivíduos e organizações em todo o mundo. Milhões de estudantes ingleses,
de lojas francesas, de quintas italianas e de famílias portuguesas viram as
mensalidades dos seus empréstimos aos bancos subir durante anos para que esses
mesmos bancos e outros vissem os seus lucros crescer. Tratou-se, em linguagem
corrente, de um roubo. Não um roubo como o do meu carteirista mas um roubo
sistemático, generalizado, que defraudou milhões e que acumulou riquezas
incalculáveis nos bolsos de quem já era imensamente rico.
O
que aconteceu a estes bancos? Alguns pagaram multas, outros nem isso, porque
denunciaram os cúmplices em troca de imunidade, mas ninguém foi condenado. Houve
uns corretores expulsos de uns países, detenções para interrogatórios e foi
tudo. Talvez uns quantos acabem por ser presos – os próprios bancos acusados
tentarão encontrar bodes expiatórios –, mas nunca o castigo será proporcional
ao crime. Todos usam gravata. Alguém espera que o imenso buraco do BES tenha
responsáveis criminais?
O
ex-presidente da junta, apesar de tudo, foi condenado e a sua reputação saiu
ferida, mas os bancos ladrões e os seus administradores e directores continuam
a ser referidos na imprensa como entidades respeitáveis e os seus quadros são
invejados nas revistas, bajulados pelos Governos e pagos (legalmente) a peso de
ouro.
A
crise moral que atravessamos traduz-se nisto: condenamos carteiristas à cadeia
em nome da Justiça e tratamos com deferência e apresentamos como exemplo
organizações criminosas que operam em grande escala, como os bancos. Não é uma
novidade, mas o facto de não ser uma novidade e de continuarmos a tolerar a
situação só a torna mais grave. Continuamos a tratar com respeito governos que
se apropriam de património público para o vender ao desbarato e que destroem
monopólios do Estado para beneficiar interesses privados obscuros – como o
Governo português está a fazer com a lotaria.
Por
que respeitamos estes ladrões? Por que falamos de bancos e de organizações como
a ONU, ou o FMI ou a FIFA ou tantas outras, como se fossem respeitáveis? Por
que não exigimos que obedeçam aos padrões éticos e legais que exigimos aos
outros? Apenas porque usam gravata e sabem usar talheres? Apenas porque ficaram
ricos com o dinheiro que roubaram? Somos assim tão parvos?
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