domingo, 17 de agosto de 2014

OS ABUTRES CONTRA A SOBERANIA ARGENTINA




Governo Cristina Kirchner declara guerra aos “fundos abutres” e reacende o debate: qual o limite para o capital especulador?

Bruno Pavan, São Paulo (SP) – Brasil de Fato

Um mês após a equipe de Messi e com­panhia sair derrotada do Maracanã e ver o sonho do tricampeonato da Copa do Mundo ser adiado por mais quatro anos, outra equipe portenha toma as manche­tes pelo mundo: a de Cristina Kirchner. O adversário, porém, não são 11 alemães, mas um time mais ambicioso: o de fun­dos abutres.

A história começa no final de 2001, quando a Argentina passava por gran­des dificuldades e teve cinco presidentes em 12 dias. Adolfo Rodríguez Saá, que foi eleito pela Assembleia Legislativa e go­vernou o país por uma semana, declarou uma moratória de cerca de 100 bilhões de dólares.

Em 2005, o presidente Néstor Kir­chner abriu uma rodada de renegocia­ções da dívida com os credores. Esse pro­cesso, que aconteceu também em 2010, é chamado de “swap da dívida”. Os gover­nos convocam seus credores para trocar suas dívidas por outras, fazendo com que o país fique livre para captar mais recur­sos no mercado. À época, 93% dos credo­res aceitaram a renegociação com remu­neração entre 45% e 70% da dívida.

Porém, a situação se complicou este ano, quando o juiz da corte de Nova Iork­que Thomas Griesa acatou a decisão que obriga o governo a pagar os títulos na ín­tegra aos 7% dos credores restantes que não aceitaram o acordo com o governo, os chamados fundos holdouts, ou abu­tres, da NML Capital – do magnata esta­dunidense Paul Singer –, da Aurelius, da Blue Angel e de mais 15 credores.

No último dia 30 de junho, a decisão bloqueou o pagamento de 539 milhões de dólares do governo argentino aos cre­dores. O valor só será liberado quando houver um acordo ou o pagamento inte­gral do 1,3 bilhão de dólares que os fun­dos abutres contestam na Justiça.

Há de se mencionar ainda que o gover­no argentino nunca recebeu dinheiro de­les diretamente por meio da compra de títulos – o que eles fazem é agir no mer­cado secundário comprando dívidas de alto risco de não serem pagas para, en­tão, forçar na Justiça.

“Bobagem atômica”

Após isso, o governo de Cristina Kir­chner se pronunciou contrário ao que o mercado está dizendo ser um novo ca­lote nos credores. O ministro da Econo­mia, Axel Kicillof, considera “uma bo­bagem atômica” dizer que o país entrou em default enquanto a presidente criti­cou os fundos dizendo que “está na ho­ra de o mundo colocar freios nos abu­tres e bancos insaciáveis que querem se­guir lucrando com uma Argentina que­brada e doente”.

O economista argentino Ramón Gar­cia Fernández, coordenador do bachare­lado em Ciências Econômicas da UFA­BC, concorda ser um contrassenso cha­mar o que está acontecendo hoje de ca­lote, já que o governo está pagando ri­gorosamente em dia os compromis­sos acertados com os credores e anali­sa, também, que essa questão não afeta a economia de modo significante.

“O país hoje continua como estava, bem ou mal. Essa briga afeta a econo­mia real de maneira desprezível, por mais que os adversários do governo e os holdouts queiram semear o pânico”, apontou.

Além disso, Garcia Fernandéz ques­tiona a decisão do juiz já que o governo não tinha nenhum tipo de acordo firma­do com os fundos nas renegociações das dívidas nos anos anteriores.

“Você, por definição, não pode dar um calote nos holdouts, porque não chegou a nenhum acordo com eles. Esses fun­dos têm títulos que sofreram um default em 2001 e nunca renegociaram o paga­mento dos mesmos. A decisão dele não faz o menor sentido. Muitos economis­tas, jornalistas, políticos, alguns deles completamente contrários ao governo, reconhecem que foi uma decisão peri­gosa para a arquitetura financeira inter­nacional”, criticou.

Em entrevista ao site GGN, o ex pes­quisador sênior do Banco Central ar­gentino, Matías Vernengo, aponta que a decisão de Griesa abre precedentes pe­rigosos na economia mundial por colo­car em dúvida a possibilidade dos países periféricos de reestruturar suas dívidas.

“O critério normal de reestruturação de dívidas é a condição ou capacidade do devedor de pagar. Dito de modo simples, melhor receber algo do que nada. A de­cisão reduz a margem de manobra para o uso das reservas internacionais, o que afeta a soberania nacional e a indepen­dência do banco central de um país endi­vidado”, aponta.

Soberania

A posição intransigente dos fundos, de acordo com Garcia Fernandéz, fez com que grande parte do mercado fi­naneiro mundial, entre eles os próprios bancos, ficassem do lado do governo ar­gentino. Além disso, a ONU já declarou que a decisão do tribunal afeta a sobera­nia do país.

O episódio reacende um debate so­bre os limites de atuação do mercado financeiro na compra das dívidas dos países. Por sua vez, para Vernengo, a simples proibição de compra das nego­ciações nos mercados secundários não é a saída, mas ele defende a reformas das instituições financeiras existentes, como o FMI.

“O que seria necessário realmente são instituições dos países devedores mais organizadas, como as dos países credo­res, que permitissem negociar em me­lhores condições. A ideia de um fundo que empreste dinheiro quando o país tem um déficit estrutural nas contas ex­ternas é boa, mas o FMI impõe condi­ções que fazem desse empréstimos uma armadilha. A questão não é eliminar o FMI, mas reformá-lo”, aponta.

A percepção de que a Argentina está dando um calote, no entanto, de nada tem de inocente de acordo com o pro­fessor. Ele aponta que um dos fundos abutres faz parte do co­mitê da Associação Internacional de Swaps e Derivativos (ISDA, em inglês). Osholdouts podem receber 1,3 bilhão de dólares caso consigam receber do go­verno a íntegra dos títulos.

A cláusula “Rufo”

A grande questão que pode fazer a dí­vida argentina pular de 1,3 bilhão de dó­lares para mais de 100 bilhões de dóla­res é a chamada cláusula de Direito So­bre Ofertas Futuras (Right Upon Future Offers, em inglês). Fernandéz ex­plica que ela não permite que a Argenti­na ofereça aos fundos abutres melhores acordos do que os outros 93% aceitaram nas negociações passadas. “Essa cláusula é muito sensata. Ima­gine que eu deva 10 mil para você e para o João. Eu digo para você que não pos­so pagar todo o valor e você aceita que eu só te pague 6 mil. Mais tarde você fi­ca sabendo que eu paguei os 10 mil pro João. Por que você vai se dar mal por ser um cara cordato, e João, por ser um chato inflexível, recebe tudo? Se todos somos inflexíveis, não há mais negocia­ções quando alguém vai à falência, algo normal no capitalismo e para o que há ampla legislação em todos os países, se­ja para empresas ou para pessoas”, ar­gumenta.

Vernengo aponta que o Banco Central do país tem como arcar com os valores dos fundos abutres, mas que um acordo hoje pode fazer a dívida de 1,3 bilhões de dólares pular para mais de 100 bi­lhões de dólares, pois teria que oferecer acordo semelhante aos outros 93 % dos credores.

“Para pagar diretamente aos fundos abutres há dinheiro, o Banco Central tem por volta de 28 bilhões de dólares. O problema é que os detentores dos títulos reestruturados teriam o direito de recla­mar, uma vez que uma das cláusulas da reestruturação da dívida é que ninguém teria um tratamento privilegiado e rece­beria melhores condições dos que acei­taram os novos termos da dívida. Nesse caso, os efeitos de ter que pagar aos fun­dos abutres podem ser bem maiores do que simplesmente a dívida direta com eles”, explicou.

Ramón declara que não é a favor de que o governo “empurre a dívida e pa­gue integralmente os 1,3 bilhão de dó­lares dos fundos beneficiados com a de­cisão de Griesa para se livrar dos abu­tres”, mas que isso pode acabar sendo a única saída.

“Países latino-americanos estão menos sensíveis aos fundos do que em outros tempos”, diz economista

A América Latina sofreu, na década de 1990, uma sequência de grandes crises em governos neoliberais do continente. Ataques especulativos como o do Méxi­co em 1994, a subvalorização do real no Brasil em 1999 e, por fim, o calote ar­gentino da dívida em 2001 provocaram efeitos dramáticos na maioria das eco­nomias do continente.

O economista argentino Ramón Gar­cia Fernandéz acredita que hoje esse ce­nário mudou: os países latino-america­ nos não estão mais tão sensíveis a ata­ques especulativos como na última déca­da e já pensam em alternativas indepen­dentes para as respectivas economias.
“Veja que nos anos neoliberais houve várias crises financeiras, e agora há anos que não há nenhuma. Que país suspen­deu os pagamentos da dívida nestes úl­timos dez anos? Te dou dois exemplos na Argentina: quando acabou o gover­no de De la Rua, que continuou as políti­cas de Menem, o desemprego era de qua­se 25%. Hoje está por volta de 7%. Além disso, hoje se o governo precisar mexer no câmbio, ele pode, não está mais fixa­do por lei no “um a um”. Isso matava as chances de fazer qualquer política eco­nômica independente. Com tudo isso, fi­nalmente, acho que os Brics estão mos­trando que há outras maneiras de tocar o capitalismo que não seja a submissão ao cassino internacional”, explicou.

Antes da cúpula do Mercosul, o chan­celer argentino Héctor Timerman se pro­nunciou pedindo que os países se mobili­zassem para uma reforma no sistema fi­nanceiro mundial que “impeça as ações” dos fundos especulativos.

Ramón pontua as diferenças entre as que ele considera dificuldades econômi­cas atuais no continente, como no caso da Venezuela, para as “graves crises” da Europa, como na Espanha, Grécia, Itália. “No caso do Maduro, há passeatas popu­lares de apoio ao governo. Você viu mui­tas pessoas nas ruas apoiando os cor­tes do [primeiro-ministro espanhol] Ra­joy?”, questiona

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