Governo
Cristina Kirchner declara guerra aos “fundos abutres” e reacende o debate: qual
o limite para o capital especulador?
Bruno
Pavan, São Paulo (SP) – Brasil de Fato
Um
mês após a equipe de Messi e companhia sair derrotada do Maracanã e ver o
sonho do tricampeonato da Copa do Mundo ser adiado por mais quatro anos, outra
equipe portenha toma as manchetes pelo mundo: a de Cristina Kirchner. O
adversário, porém, não são 11 alemães, mas um time mais ambicioso: o de fundos
abutres.
A
história começa no final de 2001, quando a Argentina passava por grandes
dificuldades e teve cinco presidentes em 12 dias. Adolfo Rodríguez Saá, que foi
eleito pela Assembleia Legislativa e governou o país por uma semana, declarou
uma moratória de cerca de 100 bilhões de dólares.
Em
2005, o presidente Néstor Kirchner abriu uma rodada de renegociações da
dívida com os credores. Esse processo, que aconteceu também em 2010, é chamado
de “swap da dívida”. Os governos convocam seus credores para trocar suas
dívidas por outras, fazendo com que o país fique livre para captar mais recursos
no mercado. À época, 93% dos credores aceitaram a renegociação com remuneração
entre 45% e 70% da dívida.
Porém,
a situação se complicou este ano, quando o juiz da corte de Nova Iorkque
Thomas Griesa acatou a decisão que obriga o governo a pagar os títulos na íntegra
aos 7% dos credores restantes que não aceitaram o acordo com o governo, os
chamados fundos holdouts, ou abutres, da NML Capital – do magnata estadunidense
Paul Singer –, da Aurelius, da Blue Angel e de mais 15 credores.
No
último dia 30 de junho, a decisão bloqueou o pagamento de 539 milhões de
dólares do governo argentino aos credores. O valor só será liberado quando
houver um acordo ou o pagamento integral do 1,3 bilhão de dólares que os fundos
abutres contestam na Justiça.
Há
de se mencionar ainda que o governo argentino nunca recebeu dinheiro deles
diretamente por meio da compra de títulos – o que eles fazem é agir no mercado
secundário comprando dívidas de alto risco de não serem pagas para, então,
forçar na Justiça.
“Bobagem
atômica”
Após
isso, o governo de Cristina Kirchner se pronunciou contrário ao que o mercado
está dizendo ser um novo calote nos credores. O ministro da Economia, Axel
Kicillof, considera “uma bobagem atômica” dizer que o país entrou em default enquanto
a presidente criticou os fundos dizendo que “está na hora de o mundo colocar
freios nos abutres e bancos insaciáveis que querem seguir lucrando com uma
Argentina quebrada e doente”.
O
economista argentino Ramón Garcia Fernández, coordenador do bacharelado em Ciências Econômicas
da UFABC, concorda ser um contrassenso chamar o que está acontecendo hoje de
calote, já que o governo está pagando rigorosamente em dia os compromissos
acertados com os credores e analisa, também, que essa questão não afeta a
economia de modo significante.
“O
país hoje continua como estava, bem ou mal. Essa briga afeta a economia real
de maneira desprezível, por mais que os adversários do governo e os holdouts queiram
semear o pânico”, apontou.
Além
disso, Garcia Fernandéz questiona a decisão do juiz já que o governo não tinha
nenhum tipo de acordo firmado com os fundos nas renegociações das dívidas nos
anos anteriores.
“Você,
por definição, não pode dar um calote nos holdouts, porque não chegou a
nenhum acordo com eles. Esses fundos têm títulos que sofreram um default em
2001 e nunca renegociaram o pagamento dos mesmos. A decisão dele não faz o
menor sentido. Muitos economistas, jornalistas, políticos, alguns deles
completamente contrários ao governo, reconhecem que foi uma decisão perigosa
para a arquitetura financeira internacional”, criticou.
Em
entrevista ao site GGN, o ex pesquisador sênior do Banco Central argentino,
Matías Vernengo, aponta que a decisão de Griesa abre precedentes perigosos na
economia mundial por colocar em dúvida a possibilidade dos países periféricos
de reestruturar suas dívidas.
“O
critério normal de reestruturação de dívidas é a condição ou capacidade do
devedor de pagar. Dito de modo simples, melhor receber algo do que nada. A decisão
reduz a margem de manobra para o uso das reservas internacionais, o que afeta a
soberania nacional e a independência do banco central de um país endividado”,
aponta.
Soberania
A
posição intransigente dos fundos, de acordo com Garcia Fernandéz, fez com que
grande parte do mercado finaneiro mundial, entre eles os próprios bancos,
ficassem do lado do governo argentino. Além disso, a ONU já declarou que a
decisão do tribunal afeta a soberania do país.
O
episódio reacende um debate sobre os limites de atuação do mercado financeiro
na compra das dívidas dos países. Por sua vez, para Vernengo, a simples
proibição de compra das negociações nos mercados secundários não é a saída,
mas ele defende a reformas das instituições financeiras existentes, como o FMI.
“O
que seria necessário realmente são instituições dos países devedores mais
organizadas, como as dos países credores, que permitissem negociar em melhores
condições. A ideia de um fundo que empreste dinheiro quando o país tem um
déficit estrutural nas contas externas é boa, mas o FMI impõe condições que
fazem desse empréstimos uma armadilha. A questão não é eliminar o FMI, mas
reformá-lo”, aponta.
A
percepção de que a Argentina está dando um calote, no entanto, de nada tem de
inocente de acordo com o professor. Ele aponta que um dos fundos abutres faz
parte do comitê da Associação Internacional de Swaps e Derivativos (ISDA, em
inglês). Osholdouts podem receber 1,3 bilhão de dólares caso consigam
receber do governo a íntegra dos títulos.
A
cláusula “Rufo”
A
grande questão que pode fazer a dívida argentina pular de 1,3 bilhão de dólares
para mais de 100 bilhões de dólares é a chamada cláusula de Direito Sobre
Ofertas Futuras (Right Upon Future Offers, em inglês). Fernandéz explica que
ela não permite que a Argentina ofereça aos fundos abutres melhores acordos do
que os outros 93% aceitaram nas negociações passadas. “Essa cláusula é muito
sensata. Imagine que eu deva 10 mil para você e para o João. Eu digo para você
que não posso pagar todo o valor e você aceita que eu só te pague 6 mil. Mais
tarde você fica sabendo que eu paguei os 10 mil pro João. Por que você vai se
dar mal por ser um cara cordato, e João, por ser um chato inflexível, recebe
tudo? Se todos somos inflexíveis, não há mais negociações quando alguém vai à
falência, algo normal no capitalismo e para o que há ampla legislação em todos
os países, seja para empresas ou para pessoas”, argumenta.
Vernengo
aponta que o Banco Central do país tem como arcar com os valores dos fundos
abutres, mas que um acordo hoje pode fazer a dívida de 1,3 bilhões de dólares
pular para mais de 100 bilhões de dólares, pois teria que oferecer acordo
semelhante aos outros 93 % dos credores.
“Para
pagar diretamente aos fundos abutres há dinheiro, o Banco Central tem por volta
de 28 bilhões de dólares. O problema é que os detentores dos títulos
reestruturados teriam o direito de reclamar, uma vez que uma das cláusulas da
reestruturação da dívida é que ninguém teria um tratamento privilegiado e receberia
melhores condições dos que aceitaram os novos termos da dívida. Nesse caso, os
efeitos de ter que pagar aos fundos abutres podem ser bem maiores do que
simplesmente a dívida direta com eles”, explicou.
Ramón
declara que não é a favor de que o governo “empurre a dívida e pague
integralmente os 1,3 bilhão de dólares dos fundos beneficiados com a decisão
de Griesa para se livrar dos abutres”, mas que isso pode acabar sendo a única
saída.
“Países
latino-americanos estão menos sensíveis aos fundos do que em outros tempos”,
diz economista
A
América Latina sofreu, na década de 1990, uma sequência de grandes crises em
governos neoliberais do continente. Ataques especulativos como o do México em 1994, a subvalorização do
real no Brasil em 1999 e, por fim, o calote argentino da dívida em 2001
provocaram efeitos dramáticos na maioria das economias do continente.
O
economista argentino Ramón Garcia Fernandéz acredita que hoje esse cenário
mudou: os países latino-america nos não estão mais tão sensíveis a ataques
especulativos como na última década e já pensam em alternativas independentes
para as respectivas economias.
“Veja
que nos anos neoliberais houve várias crises financeiras, e agora há anos que
não há nenhuma. Que país suspendeu os pagamentos da dívida nestes últimos dez
anos? Te dou dois exemplos na Argentina: quando acabou o governo de De la Rua , que continuou as políticas
de Menem, o desemprego era de quase 25%. Hoje está por volta de 7%. Além
disso, hoje se o governo precisar mexer no câmbio, ele pode, não está mais fixado
por lei no “um a um”. Isso matava as chances de fazer qualquer política econômica
independente. Com tudo isso, finalmente, acho que os Brics estão mostrando
que há outras maneiras de tocar o capitalismo que não seja a submissão ao
cassino internacional”, explicou.
Antes
da cúpula do Mercosul, o chanceler argentino Héctor Timerman se pronunciou
pedindo que os países se mobilizassem para uma reforma no sistema financeiro
mundial que “impeça as ações” dos fundos especulativos.
Ramón
pontua as diferenças entre as que ele considera dificuldades econômicas atuais
no continente, como no caso da Venezuela, para as “graves crises” da Europa,
como na Espanha, Grécia, Itália. “No caso do Maduro, há passeatas populares de
apoio ao governo. Você viu muitas pessoas nas ruas apoiando os cortes do
[primeiro-ministro espanhol] Rajoy?”, questiona
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