quinta-feira, 28 de agosto de 2014

Portugal – PIRES VELOSO: NEM VICE-REI NEM HOMEM, APENAS CANALHA




Uma leitura obrigatória, por quem viveu e sofreu aqueles dias

*Mário Tomé - Inflexão

A democracia novembrista, como foi gerada num golpe contra a democracia que rasgava os horizontes para um futuro decente graças ao 25 de Abril, fez de praticamente todos os implicados, mesmo que bombistas, assassinos e canalhas, gente respeitável, grandes patriotas pelo papel fundamental que tiveram no combate à revolução e à sua expressão genuína, o PREC.

Este é o caso do finado António Pires Veloso, cognominado vice-rei do norte pelo papel violento que desempenhou contra o movimento popular e a democracia nos quartéis, os dois pilares da revolução de Abril.

Tinha 88 anos e foi, durante o PREC, como comandante da Região Militar do Norte , testa de ferro dos militares ao serviço da coligação PS+PSD+CDS+spinolistas+bombistas que planearam e executaram o golpe do 25 de Novembro de 1975.

O obituário de António Pires Veloso no DN e, entre outras que decerto houve, a referência que Marcello Rebelo de Sousa lhe fez na sua missa dominical na TVI, “um homem essencial na fase crucial final da revolução”, levam-me a fazer também a minha nota necrológica.

No seguimento do golpe do 25 de Novembro de 1975, os militares comprometidos com o movimento popular e com a democratização das Forças Armadas, foram presos e colocados em Caxias e Custóias. Os presos em Custóias, sob custódia militar de Pires Veloso, foram colocados em isolamento absoluto, em celas de 3X2 m mais o balde da merda por companhia.

Um dia foram surpreendidos pela algazarra de um grupo de presos de delito comum que investiram pelas 3 alas ocupadas pelos presos militares e, de posse dos respectivos molhes de chaves, lhes abriram as portas das celas gritando, “fujam que já abrimos tudo”. Valeu o sangue frio dos presos militares travados, aliás, no natural impulso de ganhar a liberdade – convém lembrar que o isolamento incluía a inexistência de qualquer informação sobre as causas da prisão, sobre o enquadramento da sua situação e sobre o destino que os esperava e que tudo era possível - pela intervenção dos majores Cruz Oliveira, Queiroz Azevedo e Campos Andrada que gritaram “o pessoal não sai daqui”. Porque aquela cena só podia tratar-se de uma provocação para serem abatidos quando tentavam fugir. Os três majores dirigiram-se através de corredores desertos e portas escancaradas até ao posto da chefia dos guardas prisionais onde lhes foi dito nada saberem! Para lá do portão, lá fora, um pelotão da GNR aguardava…

A doce moleza pantanosa que nos tem transportado até à insolvência financeira, económica, política e ética, fazendo do povo e dos trabalhadores não só bode expiatório mas, mais ainda, vítimas escolhidas do esbulho brutal com que governos e finança, em bacanais de corrupção instituída, têm comemorado o 25 de novembro, ano após ano, dificulta-nos a percepção daquilo que gente engravatada e com currículo e pedigree está pronta para fazer, ou mandar fazer.

Este o caso de Pires Veloso que se comportou como um canalha durante o PREC e, em especial, em relação aos militares presos em Custóias sob sua jurisdição político/jurídico/militar.

Ainda sob o seu comando na Região Militar Norte foi preparada a Operação Montanha que se destinava a, oficialmente, transferir durante a noite alguns dos presos militares para a Guarda mas que tinha de novo a intenção provocatória da emboscada para os abater; foi a acção determinada do Dr. Ramon de La Féria e do então governador civil do Porto, Cal Brandão, junto de Pires Veloso que impediu mais uma tentativa canalha e cobarde de assassinato de prisioneiros.

Para ilustrar esta afirmação, sirvo-me de excertos de uma carta que o Major Médico Cruz Oliveira me facultou e autorizou a divulgar.

"Meu caro Ramon de La Féria

Em
tempos escrevi-te uma carta curta, mas bastante sentida, em que te agradecia o quanto te devia pessoalmente, e também quanto te deviam muitos dos que devotadamente se envolveram em defender os ideais de Abril. E sinto agora novamente necessidade de te escrever, para que, quem desconhece o por ti feito, possa avaliar a tua coragem, nobreza anónima e determinação que obstou a que tivéssemos sido exterminados como esteve para acontecer depois do 25 de Novembro. Mas passo a contar:

Em meados de 1978, estava eu sentado na mesa de uma esplanada com o meu advogado e nosso comum amigo, Teófilo Carvalho dos Santos, que era na altura o meu advogado para me defender das perseguições de que estava a ser alvo por parte da Força Aérea, quando passou um homem que ele cumprimentou dizendo – Adeus, Ó Mário! – e perguntou-me – Você não conhece o Cal Brandão? E com a singeleza e simplicidade que o caracterizava contou-me: Você lembra-se de que quando esteve preso em Custóias, correu o boato de que havia um grupo de doze presos que deviam ser liquidados?

Se me lembrava! Apesar de estarmos incomunicáveis e com dificuldade em sabermos o que se passava cá fora, chegou ao meu conhecimento pelos truques em que os presos e as famílias são férteis, de que no Estado Maior da Região Militar do Norte, se estava a estudar a execução de um golpe, que visava a liquidação de doze detidos considerados como cabecilhas e perigosos. A operação a executar era simples, seríamos metidos em carros celulares e com uma escolta militar escolhida a dedo, seríamos transferidos para a Guarda. Em determinado sítio os carros detinham-se, deixavam-nos sair para urinar e seriamos eliminados a tiro sob pretexto de que tínhamos intentado fugir. Seria também inculpado nisso um grupo de ciganos, que erravam então na região. Os militares a liquidar eram os doze que posteriormente foram transferidos para o Presídio Militar de Santarém, o Campos de Andrada, o Tomé, o Queiroz Azevedo, o José Andrade, o Francisco Paulino, o José Afonso Dias*, o Álvaro Neves**, o Godinho, um “civil de apelido Luz”***, mais dois militares e eu. A operação não se realizou imediatamente porque havia dificuldade em reunir um grupo de soldados que se dispusessem a colaborar num assassinato desta ordem; isto foi o que nos contaram alguns militares já contactados para o efeito e que desvendaram o segredo às nossas famílias. A operação dependia directamente do Chefe de Estado Maior da Região Militar do Norte.

Foi num destes dias negros, que com a frontalidade com que sempre assumes as tuas atitudes, me escreveste. Uma carta sentida de encorajamento fraternal, de compreensão pelas atitudes tomadas, de esperança na persecução nos ideais de Abril. E respondi-te logo, numa pequena missiva, em que contava todas estas peripécias, ciente de que era bem possível vir a ser liquidado dentro de dias e bom seria que a história pudesse vir a contar, posteriormente, com o esclarecimento do ocorrido…Recorrendo a uma artimanha que na altura me ocorreu, mandei-te a carta dentro de um par de botas que “simuladamente” não me serviam, nem nunca chegaram a servir, que eu devolvi, através dos guardas, à minha família. Que guarda ia pensar que dentro das bolas de jornais amarrotados que enchiam as botas, ia uma carta para ti? E assim recebeste a minha carta.

A operação de transferência-liquidação, não soubemos porquê na altura, gorou-se e fomos transferidos sim, mas de helicóptero, para Santarém.

Começa aqui novamente a narração do Teófilo: - “Você lembra-se de ter escrito uma carta ao Ramon de La Féria a contar que o Pires Veloso se preparava para mandar matar alguns militares presos, entre os quais estava você? Vocês tiveram sorte, porque segundo me contou o Cal Brandão, o Ramon, nesse dia mesmo, meteu-se num avião, foi ao Porto, mostrou a sua carta ao Mário que era o Governador Civil e os dois foram falar com o Pires Veloso em termos tão firmes que ele deu o dito por não dito, que isso não era assim, que podiam estar descansados e até chamou o seu Chefe de Estado Maior, o Major Gabriel Teixeira, que era quem tudo estava tramando, que também negou a operação, que, segundo soubemos, até já tinha o nome de “Operação Montanha”.

Escapámos por pouco. E nunca se soube como nem porquê. Encontrei-te várias vezes e nada me contaste. É bem do teu carácter e da tua modéstia esse proceder. E incógnita ficaria esta façanha, um acto tão belo e de tanta determinação morreria solteiro.

Escrevo-te hoje esta carta, de que farás o uso que quiseres, certo de que, em mais um aniversário do nosso 25 de Abril, quero que as gerações vindouras te conheçam, saibam o teu nome e te considerem um Homem de Abril.

Eles agradecer-te-ão, eu não o faço. O teu acto é tal que deve se exaltado e não banalizado.

Fraternalmente teu amigo, abraça-te com dedicação e amizade o

Carlos Cruz Oliveira

Ericeira, 25 de Abril de 2001"

O facto de os doze militares terem sido, abortada a operação Montanha, transferidos para Santarém, demonstra cabalmente que um destino diferente lhes foi de antemão reservado. Aliás não tem sentido separar “os cabecilhas” quando os presos estavam, como já referi, totalmente isolados.

*Já falecido.

**Álvaro Neves, já falecido, e Godinho Rebocho, sargentos paraquedistas que encabeçaram a movimentação dos paraquedistas contestando a sua extinção como Corpo

***Militante do PRP

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