quinta-feira, 27 de novembro de 2014

A negação do racismo torna-o ainda mais enigmático e difícil de combater



Ana Dias Cordeiro - Público

A chegada de Barack Obama à presidência não fez dos Estados Unidos um país menos racista, diz David Theo Goldberg. O académico e ensaísta sul-africano define o pós-racismo como “uma forma de tornar menos óbvias" as formas de um fenómeno ainda presente.

As datas permanecem vagas, nas palavras de David Theo Goldberg, e surgem sem o mesmo peso aparente dos lugares. Lugares como a África do Sul onde nasceu “nos primeiros anos da década de 1950”, ou os Estados Unidos onde desenvolveu uma extensa carreira académica cruzando disciplinas na sua investigação: filosofia ou teoria política, economia ou sociologia e antropologia. Entre outras funções que assume ou assumiu no seu longo currículo, David Theo Goldberg dirige o Instituto de Investigação em Humanidades da Universidade da Califórnia e é autor de duas dezenas de livros e de muitas outras publicações académicas sobre um tema presente na sua vida desde sempre.

A África do Sul, onde viveu até ser adulto e ter "mais de 20 anos”, deu-lhe uma consciência política e uma sensibilidade quase à flor da pele para os conceitos de raça e de racismo, e para os quais contribui com novas leituras e interpretações frequentemente rejeitadas pela ala política mais conservadora nos Estados Unidos, mas não só. O autor de The Threat of Race (A Ameaça da Raça, 2003) ou The Racial State (O Estado Racial, 2003) passou a sua juventude na parte mais rica Cidade do Cabo. Desde cedo sentiu que “algo estava errado” naquele país onde escolheu transpôr as barreiras da segregação: para comprar marijuana, entrava nos bairros de negros (townships) e convivia naturalmente com os dealers. “Não devia dizer isto a alta voz.” Mas di-lo com descontracção também para mostrar que essa experiência o salvou do desconhecimento total de um mundo, tão próximo mas ocultado pelo regime do apartheid. Esteve na passada semana em Braga a convite do Núcleo de Educação para os Direitos Humanos do Instituto da Educação da Universidade do Minho, para a apresentação de uma conferência, sob o título Já somos todos pós-raciais? – o mesmo que deu ao seu próximo livro, com saída prevista para Maio.

Na conferência e no livro, descreve as novas configurações que o racismo assume nas sociedades de hoje?

David Theo Goldberg – Tanto a conferência como o meu próximo livro são sobre as novas formas da expressão de racismo ou racismos. Para a questão “Já somos todos pós-raciais?” – que dá o título a ambos –, a resposta habitual vinda de críticos e académicos é “claro que ainda não somos todos pós-raciais”. E possivelmente nunca o seremos. O que eu digo é que, na grande maioria das sociedades modernas no mundo, a questão é sim, somos todos pós-raciais, mas apenas no sentido em que existem novas formas estruturais de racismo que prolongam os racismos do passado e assumem uma nova forma expressão. O livro – e o trabalho que tenho feito – expõe as formas de expressão que o racismo hoje assume. O pós-racismo é afinal uma maneira de encobrir, deslocar ou tornar menos óbvias as formas de uma expressão racista que permanece.

Quais as características desse novo racismo?

As formas estruturais mais profundas estão presentes, mas o que é identificado como pós-racialismo são acontecimentos racistas sem ligação entre si. Surgem num momento pontual e como o produto da má acção de uma pessoa ou de várias pessoas. Pode ser uma força policial ou um grupo de cidadãos, ao mesmo tempo que a sociedade aparece, nesta narrativa, como totalmente alheia a atitudes racistas.

Exemplo de um desses acontecimentos foi o que se passou em Ferguson, no Missouri [onde o polícia que matou o adolescente negro Michael Brown não foi acusado]?

É exactamente um desses acontecimentos, que se querem discretos e se apresentam como não sendo racistas, mas mostram, nesta nova narrativa, como funciona o racismo. Ao negar-se uma intenção racista, parece estar a negar-se a própria negação. Com isto, a sociedade recusa reconhecer que somos movidos por considerações de raça. O acontecimento é visto como um acto individual de uma pessoa mal-intencionada.

Como se apenas houvesse racismo na cabeça de quem pensou nisso e acusou o outro de ser racista?

De certo modo, a pessoa que invoca o racismo é vista como estando fora do tempo, perante esta ideia de que o racismo deixou de existir. Algumas pessoas identificam a existência de um racismo sem raça, no caso em que se discrimina uma pessoa negra ou latina mas sem se estar a pensar nesses termos. E assim, estas situações continuam no tempo e não são travadas. A negação do racismo torna-o ainda mais enigmático. Logo, mais difícil de combater. Evapora-se à frente dos nossos olhos, no momento em que está a acontecer e torna-se mais difícil de combater. É o que eu caracterizo como o pós-racial. Passa a ser mais difícil sensibilizar a sociedade para a realidade de que ele continua a existir e a condicionar a sociedade em que vivemos. Mas é a sua existência que nos explica a desigualdade tão profunda e estrutural que vemos quando olhamos os dados de quem vai para a prisão ou de quem não entra na universidade, ou as diferenças no rendimento e riqueza das pessoas.

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