segunda-feira, 17 de novembro de 2014

O ANO DA DIPANDA



Rui Peralta, Luanda

I - Angola comemorou o 39° aniversário da sua independência, num momento em que a Catalunha realizou uma consulta popular que resultou numa vitória de 81% do SIM à independência e que a Europa comemora o 25° aniversário da queda do muro de Berlim, embora se reforcem muros (como na Palestina e no Sahra) e erguem-se novos muros, como os muros que impedem emigrantes e imigrantes de serem cidadãos. 39 anos de Independência no momento em que a Humanidade encontra-se numa encruzilhada, indecisa se passa a Ultima Fronteira e culmina o objectivo de uma luta de seculos para abolir fronteiras, muros disfarçados de soberania nacional, que transformam a humanidade num bando de primatas, sob a capa da integridade territorial.

39 anos apos a Independência de Angola o mundo necessita de "pontes, não de muros", como apontou o Papa Francisco. Uma das encruzilhadas da economia-mundo (logo da Humanidade) è que apenas estabelecem-se pontes entre os capitais, nunca entre as pessoas. È um espaço de logica invertida, em que o Homem è um peso morto, um habitante entre muros, um ser dominado pelo medo de empobrecer, pela superstição do dinheiro, pela tradição dos bens, um ser-mercadoria, impossibilitado de construir pontes pelos seus mercadores.

Este è um mundo diferente do de 1975, ano em que Angola afirmou ao planeta: "Estamos aqui!" Diferente na realidade geopolítica, geoestratégica e geoeconómica. Em 1975 o mundo era bipolar. Na década de 90, passou a unipolar e hoje è a-polar. Claro que esta ausência de polaridade implica o seu oposto, a multipolaridade, o que acaba por confundir os espíritos menos esclarecidos, mas basta lembrarmo-nos da fome e da fartura, que estão na origem uma da outra. Com a polaridade geopolítica passa-se o mesmo: è exatamente por serem tantos que não há nenhuns! Os velhos senhores, em decadência, ainda têm força para controlar a situação e os novos senhores, apesar da ansiedade, ainda não se sentem com a pujança necessária ao exercício hegemónico.

E è neste mundo que os meninos que em 1975, aprendiam à volta da fogueira a ter uma bandeira e a olhar para o céu com a convicção que as estrelas são do Povo, comemoram, 39 anos depois, o único que lhes resta: a bandeira! As estrelas, essas, ficaram só lá mesmo, no firmamento...

II - No inicio da década de 70 a inflação afetou implacavelmente os países africanos, tornando inoperantes as politicas de cooperação e os auxílios diversos. A vertiginosa subida de preços dos produtos industriais importados pelos países africanos e a estagnação dos preços das matérias-primas exportadas, alagou ainda mais o enorme fosso enorme entre as economias africanas e as economias ocidentais.

A estratégia imperialista (denunciada pela Argélia em 1975) de implantação de indústrias transformadoras no sector têxtil, siderúrgico, etc., não representou qualquer vantagem para as economias africanas, não passando de um elemento de remodelação da divisão internacional do trabalho. Também o aumento do preço do petróleo - um factor da crise iniciada em 1969 e que atingiu o ponto critico em 1973 - revelou-se um factor negativo para as economias africanas não petrolíferas (a grande maioria) não apenas pelos seus impactos directos nos custos dos combustíveis, mas porque muitos governos africanos fizeram uma leitura errada da situação e acreditavam que o aumento dos preços de todas as matérias-primas, o que não aconteceu, ou nos casos em que ocorreu (como os fosfatos e o alumínio), foram ajustamentos reduzidos.

Em 11 de Novembro de  1975, quando Angola proclama a Independência, as economias da África independente são fornecedoras de matérias-primas, longe, muito longe, da soberania económica...

III - A década de 70 inicia-se sob a pressão de um longo período de seca, que afecta a uma parte da Africa Oriental e toma a drástica proporção do drama da fome na Etiópia e na Somália. Aos longos períodos de seca adicionam-se factores como a concentração da produção agrícola nas culturas para exportação (como, por exemplo, o amendoim no Senegal e o algodão no Chade), que conduziu ao abandono das culturas de produtos alimentares, a ausência de políticas criadoras de infraestruturas de irrigação, de apoios à agricultura, a eliminação dos pequenos proprietários de gado e dos pequenos camponeses, ou a criação de gado em grande escala, sem levar em conta o impacto ambiental, foram factores conducentes a catástrofes ambientais, no curto, medio e longo prazo.

Todas as políticas agrícolas implementadas tiveram como objectivo a exportação, caindo nos ditames neocoloniais e gerando aberrações como as que ocorreram no Senegal, que utilizou vastas áreas costeiras para produzir tomates e legumes para o mercado internacional enquanto os camponeses senegaleses não tinham arroz. Ora estas políticas que conduziam à fome originaram perturbações sociais que, no caso do Níger e do Chade, levaram à queda dos respectivos governos e na Etiópia, onde os 100 mil mortos em consequência da fome, contabilizados em 1973, abalaram profundamente os alicerces ancestrais da velha e caduca monarquia.

Entre 1969 e 1975, o panorama político africano sofre alterações fundo. Na Somália o golpe de Estado de 1969 levou o pais a enveredar por uma via não-capitalista de desenvolvimento, fora da orbita Ocidental (Os zig-zags da sua direcção politica foram de tal ordem que o país voltou à esfera neocolonial, acabando por desintegrar-se). Em 1972 o Gana e o Madagáscar - dois sólidos aliados do Ocidente - sofrem alterações políticas. O Gana, que durante meses passou por um perturbado processo de contestação social, dominado por um regime dialogante com Pretoria, assiste a um golpe militar progressista. O Madagáscar, outro Estado aberto ao diálogo com Pretoria sofre uma vaga de protestos, manifestações e greves, que levaram à queda do governo. Em 1974 a Etiópia - o mais antigo Estado africano e um dos mais seguros aliados de Washington no continente - è abalada por uma vaga grevista em Adis Abeba, que origina um golpe militar que depõe o imperador e decreta uma reforma agraria, um ano depois.

Em 1975, ano em que Angola proclama a independência, o campo progressista em Africa parecia avançar sobre o campo neocolonial...

IV - Com a vitória da luta armada de libertação nacional na Guiné-Bissau, Angola e Moçambique - na sequência do derrube da ditadura fascista em Portugal - o bastião imperialista na Africa Austral foi abalado e torna-se inevitável a perda do satélite rodesiano.

As vitorias dos movimentos de libertação nacional que constituíam a CONCP (Conferência das Organizações Nacionalistas das Colonias Portuguesas) atinge duramente os interesses imperialistas, mas igualmente toda a superestrutura do capitalismo, no sentido em que comportava uma proposta de libertação que era internacionalista e que eliminava o papel submisso a que a divisão internacional do trabalho condenava o continente africano.

A manutenção do domínio colonial português não foi, como alguns defendem, uma aberração, um absurdo ou um "atraso", mas sim o resultado de uma situação específica: Portugal, um país subdesenvolvido subjugado por uma ditadura fascista, guardião ao serviço do imperialismo, tinha como função a segurança dos recursos naturais e humanos das regiões que colonizou, ou seja, um fiel-de-armazém. A razão da sobrevivência do colonialismo português reside na divisão internacional do trabalho. Foi isso que impediu o Portugal fascista-colonialista de adoptar a política de descolonização neocolonial do presidente De Gaulle, restando-lhe a guerra.

O combate, nestas circunstâncias, torna-se um combate por Africa e enquadra-se na luta global contra o capitalismo. A luta dos movimentos de libertação nacional inseridos no CONCP, não pretendia apenas conquistar a independência formal (o regime neocolonial). Foi uma luta cujo objectivo assentava na irradicação da exploração do Homem pelo Homem e na eliminação do imperialismo e do neocolonialismo em Africa, etapa fundamental na relação de forças que caracterizava o cenário geopolítico e geoestratégico da época.

Esta concepção de luta em Africa era comum ao PAIGC, MPLA e FRELIMO, que definiam um horizonte mundial decorrente do objectivo de uma independência onde não florescesse o capitalismo e que não se constituiria uma base do imperialismo. O projecto de libertação nacional destes movimentos  tinha consciência das contradições e da luta de classes. Este discurso foi uma ruptura total com a Africa neocolonial.

V - A África neocolonial em 1975 repartia-se por três vertentes ideológicas que partilhavam os mesmos valores e os mesmos amos: o micronacionalismo de Houphouet-Boigny, a negritude de Senghor e a Autenticidade de Mobutu. A etno-filosofia, a aversão a uma efectiva unidade africana e a submissão aos interesses neocolonialistas, são a  base de sustentação das burguesias nacionais do continente (em alguns casos agenciadas pelas elites coloniais, noutros casos negligenciadas pela administração colonial e noutros, ainda, espoliadas pelo colonialismo) tinham contas a ajustar com o Ocidente, mas precisando, ao mesmo tempo, do capital dos seus comparsas europeus e norte-americanos) das elites burocráticas (formadas no colonialismo e desenvolvidas pelos aparelhos das independências) e das camadas pequeno-burguesas.

Boigny, Senghor e Mobutu têm a mesma posição em relação à "comunidade luso-africana" - ensaiada pela Primavera marcelista em Portugal - e em relação ao "diálogo" com o regime de apartheid na África do Sul e ao regime rodesiano. Partilhavam a falsificação da Historia do continente africano, negando as contradições existentes nas sociedades pré-coloniais (mais tarde, na década de 90, Mandela manifesta o mesmo credo anti-histórico, quando refere a "harmonia das sociedades africanas pré-coloniais"). A "remodelagem" do passado, a mistificação do papel do "chefe africano" (muito idêntico ao processo com que o fascismo na Europa dos anos 20 e 30, mistificava o líder, o "Dulce", o "führer", o chefe da nação, etc.). Estas eram (e ainda são, mas já remodeladas ao espirito afro-capitalista) as armas culturais e ideológicas do neocolonialismo e da agressão imperialista. Foram estas armas utilizadas contra Angola por Mobutu, que através dela interferiu na guerra de Libertação contra o colonialismo português, utilizando Holden Roberto, um velho agente do imperialismo norte-americano e comparsa próximo de Mobutu (embora alguns dos melhores combatentes do braço armado da FNLA, o ELNA, fossem fuzilados por ordem de Mobutu, com aparente complacência de Holden Roberto, apos uma eventual tentativa falhada de golpe de Estado) e mais tarde ingeriu-se nos assuntos internos de Angola.

A tentativa, levada a cabo por Mobutu, de absorção do MPLA pela FNLA era uma das muitas interferências que o neocolonialismo efectuou, no sentido de neutralizar as forças progressistas e revolucionarias angolanas. Ao ver os seus intentos frustrados, Mobutu insulta Neto em público e dificulta o mais possível a movimentação das Forças Armadas Populares de Libertação de Angola na zona fronteiriça do norte, em particular no corredor do Zaire. Apos a independência de Angola, a parelha Mobutu/Holden tenta tomar militarmente o norte do país e fizeram planos para realizar uma chacina em Luanda. Gorados os seus planos, derrotados militarmente em Angola, Mobutu acaba por ter de concentrar-se na situação interna do Zaire e Holden perde a sua utilidade, como agente do imperialismo e do neocolonialismo, cujas atenções viram para Pretoria que atacou o sul de Angola.

Surge um novo líder agenciado pelo imperialismo, numa fase em que o avanço das forças progressistas africanas è notório em todo o continente. Esse novo agente era um velho conhecido do colonial-fascismo português e contava com uma larga experiencia de relacionamentos com a PIDE (a policia politica do regime fascista português) e com as Forças Armadas Portuguesas. Tal como a FNLA de Holden Roberto, também a UNITA de Savimbi contou com o apoio da China, camuflando as redes de interesses e os apoios ocidentais que constituíram o grosso da sua logística através de Pretoria.

VI - As mudanças ocorridas com os principais "agentes internos" neocoloniais correspondem a novas etapas geostratégicas (curta e média duração), a novas fases geopolíticas (média e longa duração) e a novos períodos geoeconómicos (curta, média e longa duração). Assim, o "agente Holden" è "emparelhado" a Mobutu em função de uma nova fase geopolítica na Africa Austral (a independência de Angola, que arrasta consigo a previsível queda da Rodésia, bastião do imperialismo na região), de uma nova etapa geoestratégica (os avanços das forças progressistas no continente e o subsequente recuo das forcas neocoloniais) e geoeconómicas (alterações do padrão-ouro devido a Breton-Woods e o respectivo impacto na economia sul-africana; a persistência da crise económica no Ocidente e os factores de aceleração tecnológica na ex-URSS).

O "modelo Holden" entrou em queda no exacto momento da sua ascensão aos ombros de Mobutu (o sargento-mor do neocolonialismo). Gorados que foram os seus intentos, tornou-se evidente que o modelo  teria de ser substituído. E foi...o "modelo Savimbista" (Jonas Malheiro, um velho conhecido das Forças Armadas Portuguesas e da PIDE, foi colocado como reserva em 1975, ao cuidado de Pretoria) revelar-se-ia muito mais eficiente. E muito mais viral...

Fontes
Benot, Y. Ideologias das independencias africanas Ed. Sà da Costa, Lisboa, 1981.
CONCP La lutte de liberation dans les colonies portugaises: la conference de Dar-es-Salam CONCP, Argel, 1976 de Andrade, M. P. La guerre en Angola Ed. Maspero, Paris, 1971

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