Tomás
Vasques – jornal i, opinião
Não
há democracia que aguente esta cultura da irresponsabilidade política e de
apego ao poder
Leio
no "Expresso" que, durante uma visita do senhor primeiro-ministro aos
Açores, uma sua assessora, berrou ordens, em tom grosseiro e autoritário, ao
motorista de um autocarro que transportava a comitiva. Com os presentes
incomodados com a insolência, a senhora assessora, qual sargento-lateiro na
parada, ainda concluiu com desdém: "isto com gado, corria melhor".
Não se deve generalizar a partir de uma situação concreta mas, infelizmente,
este episódio ilustra bem a arrogância com que o poder trata os mais fracos. O
desprezo pela gente humilde. Esta arrogância e este desprezo vêm de cima. E
espalha-se como mancha de óleo por estas criaturas que enxameiam os gabinetes
ministeriais. Em regra, trata-se de gente pedante, democraticamente inculta,
que trepou aos corredores do poder pela corda dos aparelhos partidários. Gente
que, de coluna dobrada, passa o tempo a lamber botas aos de cima para se manter
nos cargos. Não há democracia que aguente esta "cultura do poder".
O
senhor primeiro-ministro, no parlamento, durante o debate do Orçamento, meteu
os pés pelas mãos sobre a reposição dos salários da função pública. Disse uma
coisa às dez da manhã e outra, completamente diferente, duas horas depois. A
primeira, num discurso escrito; a segunda, em respostas improvisadas aos
deputados. Garantiu a total recuperação dos salários, até 1500 euros já em 2015
e, acima desse montante, uma recuperação de 20% no próximo ano, com a recuperação
integral em 2016. Tanto disse isto, como disse, a seguir, que o que disse não
era verdade. Porque disse, depois, que se continuar como primeiro-ministro:
"proporei que a reversão salarial seja de 20% em 2016". Então, não
era "integral"? Enfim, uma trapalhada, meio desleixada, meio
eleiçoeira. O discurso político dos nossos governantes está cada vez mais
trapaceiro, enganador, preguiçoso; patético, mesmo. Sinais evidentes, não só da
impreparação, mas sobretudo da arrogância e do desprezo com que o poder trata
os cidadãos, sobretudo os mais fracos. Não há democracia que aguente este modo
de estar na política.
A
senhora ministra da Justiça em vez de se demitir, de imediato, pelo caos que o
ministério que dirige lançou nos tribunais, fazendo desaparecer mais de 3
milhões de processos do sistema informático, o que paralisou a actividade
judicial durante mês e meio, encontrou ali à mão, para se manter no cargo, os
"bodes expiatórios": dois "administrativos" que lhe
sonegaram "informação importante". Este comportamento, de completa
irresponsabilidade política, de passa-culpas, de apego ao poder, de mais uns
meses de carro à borla e outras mordomias, do tipo "eu estou a
mandar" como disse a assessora do senhor primeiro-ministro ao motorista,
gangrena a democracia. Não há democracia que aguente esta cultura da
irresponsabilidade política e de apego ao poder.
O
Novo Banco, onde os contribuintes já meterem mais de 3 mil milhões de euros,
herdou do BES um crédito de mais de 3 mil milhões de euros, referente a um empréstimo
que este fez ao BES Angola, com garantia escrita dada pelo governo daquele
país. Leio nos jornais que o credor - o Novo Banco - nacionalizado à moda
neoliberal, negociou a dispensa do pagamento de 2,6 milhões dessa obrigação.
Enquanto, isso, a casa de Ana Dias (onde vive com três filhos e dois netos),
uma viúva a viver com o salário mínimo, foi penhorada pelo fisco, que a levou a
leilão, para satisfazer o pagamento de 1 900 euros, supostamente devidos pelo
imposto de circulação de dois carros já abatidos. A coitada da senhora não
informou as Finanças que os carros tinham ido para a sucata, tal como o governo
não informou devidamente os portugueses que tinha enviado para a sucata a
dívida de 2,6 mil milhões de euros devidos pelo BESA, e solenemente garantidos.
Este é o desprezo com que o poder trata os mais fracos, enquanto se curva
perante os mais poderosos.
A
assessora do senhor primeiro-ministro que tratou abaixo de gado, um motorista,
não é um exemplo isolado. Se fosse teria sido posta na rua, imediatamente. Faz
parte da cultura política instalada no poder. Não há democracia que aguente
esta cultura antidemocrática.
Jurista. Escreve
à segunda-feira
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