Rosário da Luz –
Expresso das Ilhas, opinião
Ultimamente,
o tema da regionalização tem comprovado a sua capacidade de inflamar
a alma Cabo-verdiana. É natural: a governação dos últimos quarenta anos
produziu fortes ressentimentos contra a centralização persistente do poder
político e económico na ilha de Santiago, especificamente na cidade da
Praia. O resto do país foiefetivamente relegado para a periferia da
capital; e mesmo regiões de relevância nacional – como as ilhas de São Vicente
e do Sal – padecem de graves estrangulamentos em consequência desse facto. É
portanto expectável que as comunidades procurem soluções para o seu
desencravamento; e as dinâmicas sociais apontam no sentido da reivindicação de
uma maior autonomia de decisão e transferência de recursos para as regiões.
Esta
semana vai a debate no Parlamento a proposta de lei que regula a criação do
município de Santa Maria. A iniciativa é do Grupo Parlamentar do PAICV e
resulta de uma petição, submetida à Assembleia Nacional pela ACMSM, a Associação
para a Criação do Município de Santa Maria. Apesar de articular as suas
reivindicações no âmbito da gestão municipal, a ACMSM não foge a uma conexão
ideológica orgânica com as correntes pró-regionalização que se manifestam pelo
norte do país, e que apadrinham uma mistura de descentralização dos poderes do
Estado e reforço do poder local como solução para os problemas da periferia.
O
movimento defende que as oportunidades de desenvolvimento do sul turístico da
ilha estão comprometidas pela negligência da administração camarária que tem
assento em Espargos. De
acordo com a ACMSM, a solução para os problemas específicos da localidade é a
constituição de um concelho que abrangeria cerca da metade sul da ilha do Sal e
estaria vocacionado para o equacionamento dos problemas decorrentes da
especialização turística da região. Infelizmente, a sociedade Cabo-verdiana tem
demonstrado uma tendência desgraçada para confundir o empoderamento regional
com a atomização municipal.
Um
olhar rápido pelo percurso do poder local.cv revela de imediato as
limitações políticas, financeiras e organizacionais que lhe têm sido
inerentes; e expõe a sua incapacidade transversal de dar resposta às ânsias das
populações em diversas valências. É observável que a criação em série de oito
micro-municípios entre 1991 e 2005 não trouxe a desejada mais valia de
gestão às localidades e populações que foram “beneficiadas”. Posto isto, será
que um futuro concelho de Santa Maria terá melhor sorte com a sua administração
municipal do que a Ribeira Grande de Santiago, por exemplo, teve com a sua?
Os
opositores desta iniciativa indicam a reduzida dimensão do território e da
população de Santa Maria como um argumento determinante contra a criação do
novo município. Mas nesse caso é preciso liquidar rapidamente os municípios de
São Salvador do Mundo, São Lourenço dos Órgãos – e até o da ilha da Brava, pela
sua deficiência demográfica. Ao contrário de remotos enclaves rurais como São
Miguel e São Lourenço – alternadamente sufragados pelo MpD e pelo PAICV – a
vila de Santa Maria e os seus arredores albergam a maior parte dos
empreendimentos turísticos existentes no país e algumas das suas mais
apetecidas ZDTI’s; em suma, a região tem relevância nacional aos
níveis patrimonial, empresarial, laboral e tributário. Então justifica-se a
criação do município?
O
problema é que a Praia e o Mindelo – para além de uma história concelhia
centenária – também reúnem as condições necessárias para uma existência
municipal autónoma; mas o facto não impede estes dois municípios de subsistirem
apenas numa situação de continuada dependência do poder central, sem
capacidade própria de investimento, operando a níveis perigosos de
endividamento e sem a garantia dos serviços básicos de saneamento e urbanização
para que foram mandatados. No que respeita a cidade da Praia – capital do país
e local de concentração de todos os recursos da nação – é só dar uma voltinha
pelas ruas e praças dos bairros privilegiados de Palmarejo e Achada
de Santo António para averiguar a ineficácia da gestão municipal na sua oferta
de serviços básicos à população.
Quanto
à Ribeira Grande de Santiago, trata-se se um município que apresenta algumas
semelhanças estruturais interessantes com Santa Maria: um concelho de criação
recente, com altas expectativas sobre a exploração da sua vocação turística, e
necessidades especiais no que respeita a proteção do seu património cultural –
assim como Santa Maria tem necessidades especiais no que respeita a proteção do
seu património natural. Mas apesar da sua proximidade da capital e do peso
simbólico da sua história para o Estado kontemporaniu, a administração
municipal da Ribeira Grande de Santiago não tem contribuído grande coisa para a
melhoria da oferta de serviços à população ou para realização do potencial do
concelho.
A
nossa história municipal também revela os critérios contraditórios empregues
pelas organizações partidárias ao suportar ou combater alternadamente as
iniciativas de criação de edilidades. Na década de 1990, o MpD criou os
municípios de Mosteiros, São Domingos e São Miguel, assente na sua maioria
qualificada e com a oposição do PAICV ; no final do seu segundo mandato, o
partido dividiu-se sobre a matéria e não logrou obter os 2/3 dos votos
necessários à criação de um novo conjunto de concelhos. Contudo, em 2005, já
enquanto Oposição, o MpD apoiou o PAICV – que não tinha a necessária
maioria de 2/3 – na criação dos municípios da Ribeira Grande de Santiago, Santa
Catarina do Fogo, São Lourenço dos Órgãos, São Salvador do Mundo e Tarrafal de
São Nicolau.
Nesse
caso, o que leva o MpD a opor em 2014
a criação do município de Santa Maria? Será porque não
vê vantagem na criação de um município previsivelmente próximo da Situação –
quando o presente status quo favorece-lhe enquanto Oposição? Quanto ao PAICV,
como explicar que os seus deputados opõem invariavelmente a criação de
municípios enquanto Oposição, mas promovem-na enquanto Situação? Quais serão os seus critérios
de suporte ou resistência?
Quanto
ás pequenas redes de conveniências paroquiais, estas são facilmente angariadas
à causa dos interessados políticos na expansão municipal (real ou encenada) com
a possibilidade de emprego climatizado e bem remunerado na nova instância
municipal – e com a promessa de fabulosas injeções de capital e concessões
de terrenos, que advirão necessariamente do estatuto de município. Se nos
deixamos convencer que a única vantagem da criação de um município é o emprego
direto que é gerado pela instituição camarária, então é evidente que a
multiplicação de instituições que forçam a redistribuição dos recursos do
Estado é o grande benefício para as localidades.
A
verdade é que se quisermos perceber as tácticas partidárias em torno da
iniciativa de criação do município de Santa Maria, deveremos analisar a sua
relação com os interesses corporativos em jogo no contexto político atual:
nomeadamente, as eleições internas iminentes do PAICV, as legislativas em 2016
e as autárquicas em
seguida. Perante a desarticulação da sociedade civil, as
corporações políticas nacionais têm espaço mais do que suficiente para moldar
oportunisticamente as ansiedades das populações aos seus próprios
interesses.
Realisticamente,
prevê-se que o debate parlamentar desta proposta consistirá na crónica de uma
morte anunciada: se o MpD fizer valer a sua intenção de não apoiar a criação do
Município de Santa Maria, o PAICV não terá os votos necessários para aprovar a
proposta de lei. Mas a verdade é que se a lei não for aprovada, temos
uma situação win-win para ambas as corporações partidárias: por um
lado, o MpD mantém intacto o seu feudo no Sal, sem submeter o património
municipal a uma divisão de recursos, ainda mais com uma entidade rival,
provavelmente próxima do PAICV; e por outro lado, o PAICV ganha um espaço
seguro para estender o seu apoio às ânsias concelhias do povo de Santa Maria,
sem o ónus orçamental da criação efetiva de um novo município – quando nos
encontramos a apenas um ano do esforço eleitoral de 2016 e quando o Estado está
quebrado que nem Djoza.
Mas
olhando friamente para o contexto em apreço, onde reside de facto a
necessidade de criação de um novo município? Como é que uma localidade que gera
negócios e emprego ao nível nacional não consegue convencer a
administração municipal sediada 20km a norte – para não falar do governo
central – da sua importância socioeconómica? Que forças sobrenaturais submetem
Santa Maria a um estatuto periférico em relação a Espargos na hierarquia das
prioridades camarárias? Como é que Santa Maria chega ao ponto de se sentir
obrigada a partir para a criação de um novo concelho, motivada pela ingerência
dos serviços municipais? Como é que uma ilha como o Sal – unicamente
vocacionada para dois sectores umbilicalmente ligados, o turístico e o
aeroportuário – favorece um cenário de cisão, em vez de procurar constituir-se
estrategicamente, pela força conjunta desses dois sectores, numa das divisões
municipais com mais peso económico e político no coletivo nacional? Eram até
capazes de iluminar o caminho para o resto do pessoal.
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