terça-feira, 16 de dezembro de 2014

Cabo Verde: A ENCENAÇÃO DA REGIONALIZAÇÃO



Rosário da Luz – Expresso das Ilhas, opinião

Ultimamente, o tema da regionalização tem comprovado a sua capacidade de inflamar a alma Cabo-verdiana. É natural: a governação dos últimos quarenta anos produziu fortes ressentimentos contra a centralização persistente do poder político e económico na  ilha de Santiago, especificamente na cidade da Praia. O resto do país foiefetivamente relegado para a periferia da capital; e mesmo regiões de relevância nacional – como as ilhas de São Vicente e do Sal – padecem de graves estrangulamentos em consequência desse facto. É portanto expectável que as comunidades procurem soluções para o seu desencravamento; e as dinâmicas sociais apontam no sentido da reivindicação de uma maior autonomia de decisão e transferência de recursos para as regiões.

Esta semana vai a debate no Parlamento a proposta de lei que regula a criação do município de Santa Maria. A iniciativa é do Grupo Parlamentar do PAICV e resulta de uma petição, submetida à Assembleia Nacional pela ACMSM, a Associação para a Criação do Município de Santa Maria. Apesar de articular as suas reivindicações no âmbito da gestão municipal, a ACMSM não foge a uma conexão ideológica orgânica com as correntes pró-regionalização que se manifestam pelo norte do país, e que apadrinham uma mistura de descentralização dos poderes do Estado e reforço do poder local como solução para os problemas da periferia.

O movimento defende que as oportunidades de desenvolvimento do sul turístico da ilha estão comprometidas pela negligência da administração camarária que tem assento em Espargos. De acordo com a ACMSM, a solução para os problemas específicos da localidade é a constituição de um concelho que abrangeria cerca da metade sul da ilha do Sal e estaria vocacionado para o equacionamento dos problemas decorrentes da especialização turística da região. Infelizmente, a sociedade Cabo-verdiana tem demonstrado uma tendência desgraçada para confundir o empoderamento regional com a atomização municipal.

Um olhar rápido pelo percurso do poder local.cv revela de imediato as limitações  políticas, financeiras e organizacionais que lhe têm sido inerentes; e expõe a sua incapacidade transversal de dar resposta às ânsias das populações em diversas valências. É observável que a criação em série de oito micro-municípios  entre 1991 e 2005 não trouxe a desejada mais valia de gestão às localidades e populações que foram “beneficiadas”. Posto isto, será que um futuro concelho de Santa Maria terá melhor sorte com a sua administração municipal do que a Ribeira Grande de Santiago, por exemplo, teve com a sua?

Os opositores desta iniciativa indicam a reduzida dimensão do território e da população de Santa Maria como um argumento determinante contra a criação do novo município. Mas nesse caso é preciso liquidar rapidamente os municípios de São Salvador do Mundo, São Lourenço dos Órgãos – e até o da ilha da Brava, pela sua deficiência demográfica. Ao contrário de remotos enclaves rurais como São Miguel e São Lourenço – alternadamente sufragados pelo MpD e pelo PAICV – a vila de Santa Maria e os seus arredores albergam a maior parte dos empreendimentos turísticos existentes no país e algumas das suas mais apetecidas ZDTI’s; em suma, a região tem relevância nacional aos níveis patrimonial, empresarial, laboral e tributário. Então justifica-se a criação do município?

O problema é que a Praia e o Mindelo – para além de uma história concelhia centenária – também reúnem as condições necessárias para uma existência municipal autónoma; mas o facto não impede estes dois municípios de subsistirem apenas numa situação de continuada dependência do poder central, sem capacidade própria de investimento, operando a níveis perigosos de endividamento e sem a garantia dos serviços básicos de saneamento e urbanização para que foram mandatados. No que respeita a cidade da Praia – capital do país e local de concentração de todos os recursos da nação – é só dar uma voltinha pelas ruas e praças dos bairros privilegiados de Palmarejo e Achada de Santo António para averiguar a ineficácia da gestão municipal na sua oferta de serviços básicos à população.

Quanto à Ribeira Grande de Santiago, trata-se se um município que apresenta algumas semelhanças estruturais interessantes com Santa Maria: um concelho de criação recente, com altas expectativas sobre a exploração da sua vocação turística, e necessidades especiais no que respeita a proteção do seu património cultural – assim como Santa Maria tem necessidades especiais no que respeita a proteção do seu património natural. Mas apesar da sua proximidade da capital e do peso simbólico da sua história para o Estado kontemporaniu, a administração municipal da Ribeira Grande de Santiago não tem contribuído grande coisa para a melhoria da oferta de serviços à população ou para realização do potencial do concelho.

A nossa história municipal também revela os critérios contraditórios empregues pelas organizações partidárias ao suportar ou combater alternadamente as iniciativas de criação de edilidades. Na década de 1990, o MpD criou os municípios de Mosteiros, São Domingos e São Miguel, assente na sua maioria qualificada e com a oposição do PAICV ; no final do seu segundo mandato, o partido dividiu-se sobre a matéria e não logrou obter os 2/3 dos votos necessários à criação de um novo conjunto de concelhos. Contudo, em 2005, já enquanto Oposição, o MpD apoiou o PAICV – que não tinha a necessária maioria de 2/3 – na criação dos municípios da Ribeira Grande de Santiago, Santa Catarina do Fogo, São Lourenço dos Órgãos, São Salvador do Mundo e Tarrafal de São Nicolau.

Nesse caso, o que leva o MpD a opor em 2014 a criação do município de Santa Maria? Será porque não vê vantagem na criação de um município previsivelmente próximo da Situação – quando o presente status quo favorece-lhe enquanto Oposição? Quanto ao PAICV, como explicar que os seus deputados opõem invariavelmente a criação de municípios enquanto Oposição, mas promovem-na enquanto Situação? Quais serão os seus critérios de suporte ou resistência?

Quanto ás pequenas redes de conveniências paroquiais, estas são facilmente angariadas à causa dos interessados políticos na expansão municipal (real ou encenada) com a possibilidade de emprego climatizado e bem remunerado na nova instância municipal – e com a promessa de  fabulosas injeções de capital e concessões de terrenos, que advirão necessariamente do estatuto de município. Se nos deixamos convencer que a única vantagem da criação de um município é o emprego direto que é gerado pela instituição camarária, então é evidente que a multiplicação de instituições que forçam a redistribuição dos recursos do Estado é o grande benefício para as localidades.

A verdade é que se quisermos perceber as tácticas partidárias em torno da iniciativa de criação do município de Santa Maria, deveremos analisar a sua relação com os interesses corporativos em jogo no contexto político atual: nomeadamente, as eleições internas iminentes do PAICV, as legislativas em 2016 e as autárquicas em seguida. Perante a desarticulação da sociedade civil, as corporações políticas nacionais têm espaço mais do que suficiente para moldar oportunisticamente as ansiedades das populações aos seus próprios interesses. 

Realisticamente, prevê-se que o debate parlamentar desta proposta consistirá na crónica de uma morte anunciada: se o MpD fizer valer a sua intenção de não apoiar a criação do Município de Santa Maria, o PAICV não terá os votos necessários para aprovar a proposta de lei. Mas a verdade é que se a lei não for aprovada, temos uma situação win-win para ambas as corporações partidárias: por um lado, o MpD mantém intacto o seu feudo no Sal, sem submeter o património municipal a uma divisão de recursos, ainda mais com uma entidade rival, provavelmente próxima do PAICV; e por outro lado, o PAICV ganha um espaço seguro para estender o seu apoio às ânsias concelhias do povo de Santa Maria, sem o ónus orçamental da criação efetiva de um novo município – quando nos encontramos a apenas um ano do esforço eleitoral de 2016 e quando o Estado está quebrado que nem Djoza.

Mas olhando friamente para o contexto em apreço, onde reside de facto a necessidade de criação de um novo município? Como é que uma localidade que gera negócios e emprego ao nível nacional não consegue convencer a administração municipal sediada 20km a norte – para não falar do governo central – da sua importância socioeconómica? Que forças sobrenaturais submetem Santa Maria a um estatuto periférico em relação a Espargos na hierarquia das prioridades camarárias? Como é que Santa Maria chega ao ponto de se sentir obrigada a partir para a criação de um novo concelho, motivada pela ingerência dos serviços municipais? Como é que uma ilha como o Sal – unicamente vocacionada para dois sectores umbilicalmente ligados, o turístico e o aeroportuário – favorece um cenário de cisão, em vez de procurar constituir-se estrategicamente, pela força conjunta desses dois sectores, numa das divisões municipais com mais peso económico e político no coletivo nacional? Eram até capazes de iluminar o caminho para o resto do pessoal.

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