Isabel
Moreira – Expresso, opinião
A
comunicação que o Presidente da República (PR) fez ao país, a 22 de julho,
sobre a marcação das eleições legislativas, expunha claramente o seguinte
critério político: “É extremamente desejável que o próximo Governo
disponha de apoio maioritário e consistente na Assembleia da República”. O
exemplo europeu era invocado em apoio desse critério: “Os governos de 26
países da União Europeia dispõem de apoio parlamentar maioritário. Não há
nenhum motivo para que Portugal seja uma exceção àquilo que acontece em todos
os Estados-membros da União Europeia.” Com esse critério político, o PR
impõe uma tarefa aos partidos: “Alcançar um governo estável é uma tarefa
que compete inteiramente às forças partidárias, como se verifica em todas as
democracias europeias.” E sublinha o mecanismo essencial dessa tarefa: “Este
é o tempo do compromisso.”
Perante
os resultados eleitorais, que não elegem maiorias de governo, nem
primeiros-ministros, mas deputados, ficou claro que ocorreu um caso único na
nossa história de 40 anos que não admite a invocação de tradições: o partido
mais votado não corresponde ao maior grupo parlamentar; teve a segunda maior
derrota da sua história; PS, PCP, PEV e BE formaram uma maioria parlamentar
correspondente à gigantesca maioria de votos que expressaram uma vontade
inequívoca de mudança de política em Portugal; e o PR não pode dissolver a AR.
Na
linha dos critérios de Cavaco, e tendo em conta os resultados eleitorais,
perante um caso inédito, António Costa, mandatado democraticamente pelo PS e
pelo que anunciara no seu programa e nas eleições, trabalhou para um
compromisso entre partidos, visando um apoio parlamentar maioritário a uma
solução de governo consistente e estável. Fê-lo num quadro de democracia
parlamentar, na qual o Governo responde politicamente perante a AR e não
perante o PR.
O
PS, PCP, o PEV e o BE informaram o PR que tinham construído um acordo sólido e
duradouro e de que não deixariam passar na AR o programa de governo de Passos,
caso este fosse indigitado. É por isso, de resto, que o PR é obrigado a ouvir
os partidos.
É
para isso: para saber das suas propostas e intenções e não para tomar chá.
Cavaco não solicitou ao PS a apresentação do conteúdo desse acordo, nem indicou
nenhum prazo dentro do qual quereria conhecer esse acordo. De resto, o advogado
de uma solução rápida e estável, olhou para as eleições a 4 de Outubro e teve o
primeiro contacto formal com o PS sobre a formação do novo governo 16 dias
depois.
Já
escrevi acerca da total legitimidade e da lógica intrínseca dentro do sistema
da indigitação da solução mais estável, a de um Governo de esquerda com maioria
parlamentar.
Releva
no entanto do carácter de quem diz o contrário ser quem defendeu isto mesmo.
O
agora indignado Paulo Portas - “ignorante” de que a circunstância da eleição
democrática de Ferro Rodrigues para Presidente da AR tem dois precedentes -, em
debate televisivo com Passos Coelho, defendeu a tese de que a direita coligada
governaria se PSD e CDS tivessem maioria absoluta no Parlamento, mesmo que o PS
tivesse ganho. Dizia: “o que interessa é quem apresenta uma maioria
parlamentar ao Presidente da República”.
Nuno
Morais Sarmento, em entrevista à Rádio Renascença, declarava perentoriamente
que o Presidente da República não devia dar posse ao partido mais votado se
este não assegurasse um governo de maioria absoluta.
Bagão
Félix, em entrevista ao jornal “i”, dizia: “há uma solução, que é um
governo PSD, CDS e PCP”. E
acrescentava: “Não me repugnava que, num governo deste tipo, o PCP tivesse
uma pasta social ou do trabalho. Jerónimo de Sousa é um homem sincero, um homem
autêntico, um político sério. A certa altura sinto-me asfixiado pelas soluções
equacionáveis. Precisamos de abrir o horizonte teórico das soluções. Sendo
absolutamente não comunista, respeito o atual PCP e não o ponho no gueto.”
Portanto:
a direita ataca agora o que não lhe convém, em contradição com o que defendeu
por sua conveniência, ela sim, de sede despudorada de poder.
Cavaco,
perante os critérios que definiu e perante, repito, a configuração única na
nossa história parlamentar, começou por chamar apenas o líder do seu Partido.
Começaram nesse momento os sinais de uma política de seita.
Na
quinta-feira, porém, Cavaco esmagou o regime. Da seita deu um salto para o
golpe. E fez isto:
-
confundiu propositadamente programas legítimos de partidos políticos com
programas de governo;
-
discursou em tom de alarme como se estivéssemos em estado de sítio;
-
tentou sequestrar a casa da democracia onde se formam as possibilidades de
governo;
-
coagiu o PS e os seus deputados;
-
discursivamente ilegalizou três partidos políticos;
-
vetou à indigência um milhão de portugueses.
Ontem,
uma mulher na rua, chorando de raiva, dizia que descobrira que para Cavaco ela
não existia. E com razão. Porque para um golpista nem toda a gente é gente.
Não
há memória de um político ter envergonhado tanto a República, o Estado de
direito democrático, a Constituição e a sua própria função.
Ontem,
ao ser eleito como Presidente da AR Ferro Rodrigues, por expressíssima maioria
parlamentar, por voto secreto, ficou demonstrado que cada voto é um voto, cada
deputado tem igual dignidade, não há partidos de primeira e de segunda e que a
esquerda é a garantia de estabilidade.
Cavaco,
no entanto, lançou, não a vida política, mas primeiro a vida de cada portuguesa
e de cada português, numa situação de instabilidade patética e dolosa.
E
agora, Cavaco? Cai Passos Coelho e não indigita um Governo com maioria
parlamentar porque tem lá comunistas? Vai um governo de iniciativa presidencial
que é chumbado no dia seguinte na AR? Vai um governo de gestão que não foi a
opção de quinta-feira, para ser uma opção de um outro demitido, em violação da
Constituição, entrando imediatamente em vigor todas as normas suspensas,
vivendo o país em duodécimos e com uma maioria de esquerda parlamentar a
inviabilizar com toda a legitimidade tamanho absurdo?
Não
somos nós que não merecemos Cavaco. É Cavaco que não nos merece.
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