segunda-feira, 2 de novembro de 2015

DO PÂNTANO E DOS CONTOS DOS VIGÁRIOS. A CIDADANIA TRUCIDADA



Rui Peralta, Luanda

No Estado Democrático de Direito a liberdade assume dois sentidos complementares, não antagónicos e não isoláveis: a) a liberdade como não-impedimento, como licitude, ou seja o que não é obrigado nem proibido é permitido; b) a liberdade como autonomia, ou seja, como oposto a coerção, no sentido de ser um poder de estabelecer normas a si próprios e de não obedecer a normas que não sejam estabelecidas para si próprios.

Em a) livre é o homem que não está preso; em b) livre é o homem que pensa pela sua própria cabeça.

Em a) liberdade implica acção (uma acção livre é uma acção licita, não impedida); em b) liberdade implica vontade (uma vontade livre é uma vontade que se autodetermina).

Quando estes dois princípios não são praticados (por impedimento ou por coerção) é porque algo não está a funcionar devidamente no Estado Democrático de Direito, uma estrutura organizacional tão falível como qualquer outra e tão sujeita às tentações totalitárias como outras tentadas na Historia Politica. E quando assim acontece, quando os princípios são colocados na gaveta ou apenas atropelados, devemos olhar á nossa volta e observar com atenção os sinais que manifestam-se no horizonte.

Geralmente os problemas apresentam-se com requisitos básicos comuns, seja a montante ou a jusante: desigualdade social, pobreza, desemprego, miséria, obscena concentração de riqueza, factores que no seu conjunto, ou isoladamente, actuam como elemento de erosão, gerador de desresponsabilização por parte dos governos em relação ao Contrato Social assumido. Na realidade acabaremos por observar que estes factores (desemprego, pobreza, concentração de riqueza) acabam por ser inseridos num discurso, amalgamados, para serem mantidos como ideais irrenunciáveis, como chamariz para a s multidões insatisfeitas. O objectivo deste discurso não é a mobilização para efectivar um percurso diferente, que combata o desemprego ou a pobreza e crie uma sociedade onde a riqueza seja melhor distribuída, mas apenas para manter a adesão das massas esperançadas.

Desta forma as lideranças aglutinam os seus fiéis e incondicionais seguidores e erguem-se como intérpretes das necessidades mais elementares das massas, enquanto desenvolvem, em simultâneo, a habilidade de detectar os sentimentos e as aspirações dos grupos que pretendem descobrir caminhos alternativos e soluções para os problemas que os rodeiam. Também estes grupos são sujeitos a lideranças atractivas, mobilizadoras e ávidas de fiéis.

Um dos sectores que mais responde ao apelo da mobilização é a juventude. Juventude saudável é rebeldia, condição necessária para a criação de novos desafios e de novas interpretações da realidade. Essa rebeldia é, também, saudável, desde que não instrumentalizada por caudilhos, que escondem os seus objectivos reais por detrás de um discurso populista, tão populista como o discurso das lideranças que governam e que são responsáveis pela situação de descontentamento. Entram então em choque dois discursos, ambos populistas, ambos com o único objectivo de manipular e de contentar multidões insatisfeitas.

Os grupos de lealdade juvenil são facilmente manipuláveis e corifeus incondicionais de actividades e acções irracionais e violentas (mesmo quando feitas em nome da contra-violência). Tornam-se desta forma descartáveis, modulares e de multiusos.

Do outro lado, do lado do Poder, está, no fundo o mesmo discurso, apenas dito de forma mais pausada, mais cautelosa. Ambas as lideranças discursivas (as do Poder e as do descontentamento) apostam na indolência cidadã, na maneira silenciosa da cidadania se ausentar, no Contrato Social atirado para o cesto dos papéis. Ambas apostam na violência das palavras e dos caceteiros, seja da Segurança sejam dos mártires. Ambas posicionam-se equidistantes em relação á cidadania. E ambas fazem parte dos alicerces da lixeira em que as sociedades são implacavelmente transformadas, através das logicas mercantis que transbordaram do seu espaço próprio, inundando as esferas do(s) Poder(es) politico(s).

Talvez seja possível restabelecer o Contrato Social, afirmando o equilíbrio necessário que permita diferenciar o socialmente justo do injustamente imposto e erradicar as tentações do círculo vicioso que transforma a Politica (a gestão da Polis) em lucrativo e lamacento negócio de traficantes. Talvez seja possível e é desejável que assim seja. Caso contrário apenas nos restará a ruptura e com ela o abismo inebriante de uma nova ordem de coisas…Uma Revolução? Mas…porque não uma metamorfose?

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