João
Melo – Rede Angola, opinião
A
tendência neocolonialista (pior do que “tentação”, “lapso” ou “desvio”) dos
donos e funcionários do sistema mediático (e não só) de Portugal quando o
assunto é Angola não é nenhuma paranóia da maioria dos angolanos: é um facto. A
cobertura da generalidade dos meios de comunicação lusitanos a propósito dos 40
anos da independência angolana é disso prova insofismável. O sentido produzido
pelas diferentes peças produzidas sobre a efeméride (artigos, reportagens,
entrevistas e outras) é que, no limite, os angolanos viviam melhor no periodo
colonial do que quatro décadas após a independência do seu país. Isso é um
insulto, que apenas merece desprezo. De facto, e como me disse um grande amigo,
os 40 anos de liberdade ninguém nos tira. É isso o que dói àqueles que não se
conformam até hoje com a perda da antiga jóia da coroa. De resto, as nossas
makas somos nós que temos de resolver (e vamos fazê-lo).
Um
exemplo daquela tendência é o artigo “O sonho e os pesadelos”, publicado na
edição da revista do Expresso do último Sábado, 14 de Novembro de
2015. O vício de base desse artigo é confundir um balanço de 40 anos com a
fotografia de um momento específico, a saber, a actual crise económica e
financeira de Angola. Mas, mais grave do que isso, é a maneira como os factos e
as declarações das fontes são seleccionados, articulados e enquadrados, de
maneira a produzir um sentido determinado, no caso, negativo e catastrofista.
Eu sei do que falo, pois, como jornalista e escritor, o meu material de
trabalho são as palavras e eu sei perfeitamente como organizá-lo para produzir
sentidos.
Acontece
que eu fui uma das fontes ouvida pelo autor do artigo. Contudo, as minhas
declarações, além de amputadas (por exemplo, as observações críticas à imprensa
portuguesa foram cirurgicamente omitidas), também foram, muitas vezes,
utilizadas fora do contexto. Ora, eu não só conheço o autor do artigo – que
considero um profissional sério -, como sei como funcionam as redacções e qual
o papel dos editores, sobretudo em relação aos artigos enviados pelos
correspondentes. Não me custa, pois, admitir que essa manipulação grosseira
seja da responsabilidade da redacção e não do correspondente doExpresso em
Luanda.
Entretanto,
e para que os leitores possam fazer a sua própria avaliação, reproduzo a seguir
as três perguntas que me foram enviadas e as respectivas respostas, na íntegra:
P) Fim
do El Dorado. Um mito ou uma realidade?
R)
“El Dorado” para quem? Certamente para um grupo reduzidíssimo de angolanos e
muitos estrangeiros que ganharam muito dinheiro em Angola nos últimos anos, sem
que, em contrapartida, a economia tivesse registado uma acumulação de capital
que permita o seu verdadeiro desenvolvimento. Aliás, o problema é esse: haver
quem (estrangeiros e até angolanos) veja o país como um suposto “El Dorado”.
Espero (ainda não estou certo) que a crise actual faça o pessoal cair na real.
Seja como for, discordo igualmente de um certo ranço catastrofista presente na
sua pergunta. Angola continua a ser um país de grandes potencialidades. O
necessário é não só, como toda a gente diz agora, mudar a estrutura da
economia, acabando com a dependência em relação ao petróleo, mas pensar, de
maneira ousada, um projecto para o país que envolva aspectos como a promoção da
diversidade, o reordenamento demográfico, a imigração, a industrialização, a
valorização dos elementos tradicionais que podem ser realmente úteis ao
desenvolvimento (e deixar de, populisticamente, de falar na tradição em geral),
etc., etc., etc. Mas, desgraçadamente, hoje não temos visionários, nem em
Angola nem no resto do mundo.
P) O
modelo escolhido para a criação da burguesia angolana, gerando controvérsias,
era inevitável ou dever-se-ia enveredar por um outro caminho?
R)
Qual? Conhecendo minimamente a História como eu a conheço, não sei de outro
caminho. Isso pode ser chocante, para alguns espíritos bem pensantes, mas então
que nos digam como é que isso poderia ter acontecido. Aliás, incomoda-me essa
obsessão da imprensa portuguesa pelo processo de formação da burguesia
angolana. Se investigarem como esse processo ocorreu em Portugal, até
escravocratas que viraram banqueiros vão encontrar. Portanto, adiante. O
problema não é como esse processo ocorreu, é o que faz a burguesia angolana
nascente (alguma dela já implantada) com o dinheiro que acumulou? Está
realmente a contribuir para o desenvolvimento de Angola? Os dados do BNA
segundo os quais o investimento angolano no exterior superou os investimentos
externos no país não abonam a favor dessa burguesia. Decididamente, a mesma
precisa de aprender com a burguesia asiática.
P) Como
devem as autoridades enfrentar a crise para esbater o sufoco social provocado
pela quebra dos preços do petróleo?
R)
Primeiro, controlar todos os escoadouros por onde o dinheiro escapa: gigantismo
do aparelho do Estado, gastos supérfluos, funcionários fantasmas, facturas
frias, contratos de assistência técnica desnecessários, consultorias inúteis,
repatriamento “vitalício” de capitais, etc. Segundo, adoptar prioridades
correctas: infra-estruturas básicas, programas sociais, promoção da agricultura
e da indústria, para gerar empregos e reduzir as importações.
Paris,
Iraque, Palestina
Os
atentados terroristas ocorridos em Paris na última sexta-feira, 13, precisam de
uma leitura abrangente e corajosa, que vá além da sua condenação pura e
simples. Esta última, embora imperiosa, não passará, caso se esgote nela
própria, de uma espécie de acto reflexo, que pouco ajudará a criar uma situação
onde tais atentados sejam uma aberração em termos.
Que
não haja dúvidas: o terrorismo é absolutamente condenável e inaceitável. Por
mais legítimas que sejam as motivações (o que não parece ser o caso,
entretanto, da Al Qaeda ou do ISIS; caso muito diferente era ou é o das
organizações palestinas que lutam pela autêntica independência do seu
território), os métodos terroristas de luta não fazem sentido, antes pelo
contrário.
Sobre
esse ponto, repito, não pode haver concessões. Mas todo o fenómeno tem várias
facetas. Assim, as principais potências mundiais, com os EUA à cabeça, não
podem igualmente ser isentas das suas responsabilidades, históricas e actuais,
em relação ao crescimento do terrorismo, na sua versão islâmica, nas últimas
décadas.
Pouco
se fala nisso, agora, mas, pessoalmente, não tenho dúvidas de que, por exemplo,
a não-resolução do velho problema da Palestina é o primeiro factor que, não o
justificando, explica a existência do terrorismo islâmico. Serve-lhe, pelo
menos, de pretexo bastante funcional.
Já
o papel Americano no surgimento da Al Qaeda e de Bin Laden está perfeita e
rigorosamente documentado. Por outro lado, a incompreensível invasão do Iraque,
após o atentado das Torres Gémeas, em Nova Iorque, tornou o mundo muito mais
inseguro desde então. Essa leitura é perfilhada por círculos e personalidades
do establishment norte-americano, a começar pelo presidente Obama.
Mais recentemente, a acção atabalhoada dos EUA na Síria, sobretudo o
fornecimento de armas a grupos desconhecidos, a pretexto de serem opositores do
presidente Bashar al-Assad , contribuiu também para o surgimento das forças do
Estado Islâmico, organização que já reivindicou os atentados de Paris.
Não
basta, por tudo isso, reforçar as medidas de segurança para combater o
terrorismo. Isso é fundamental, mas se não se acabar com a desordem no Médio
Oriente e no norte de África, provocada pela estratégia ocidental de impôr a
democracia à bala ou mediante supostas “revoluções coloridas”, em países
cuidadosamente selecionados, deixando de fora, portanto, os seus principais
aliados; se a Europa não absorver e integrar os refugiados e imigrantes que
chegam do sul, promovendo uma autêntica diversificação das suas sociedades; e
se, last but not the least, a questão palestiniana continuar irresolúvel –
o terrorismo islâmico continuará a alimentar-se desse pernicioso caldo de
cultura, vitimando sobretudo cidadãos inocentes em todo o mundo.