Crianças
com cabeças demasiado pequenas, mães assustadas e médicos em choque. Foi em
Pernambuco que a epidemia brasileira de vírus zika começou e os dois médicos
que detetaram a ligação à malformação neurológica falam ao Expresso sobre
a infeção que está a alarmar o mundo. “Eu tenho 44 anos de experiência médica e
já vi muita coisa: poliomielite, cólera, o vírus da gripe (H1N1), surtos de
difteria e de sarampo. Mas nunca tinha visto nada como agora e nem com estas
consequências”, dizem. “No início, as mães ainda acreditam que a cabecinha do
bebé vai crescer, que a criança irá ficar normal. E somos nós que temos de
explicar que não será assim”
Cristiana
Martins – Expresso
Crianças
com o perímetro cefálico inferior a 32 centímetros começaram a nascer no
Hospital Universitário Oswaldo Cruz, em Recife, a meio do ano passado. Eram
demasiados bebés com cabeças anormalmente pequenas. Noutro ponto da cidade, no
Instituto Materno Infantil, num único dia foram internadas 17 crianças com a
malformação. Os neurologistas não compreendiam o que se passava e pediram
ajuda. A Carlos Brito, como investigador de doenças infecciosas, e a Maria
Ângela Rocha, como pediatra. Não foi fácil convencer as autoridades da ligação
ao vírus zika, contam agora em conversas telefónicas com o Expresso.
Com
67 anos e 20 como coordenadora do Serviço de Infeções Congénitas daquela
unidade hospitalar, Maria Ângela Rocha é a médica que tem lidado com mais casos
de microcefalia. Fala de um só ímpeto. Está cansada e preocupada e diz que o
choque está longe de terminar. A médica acompanhou a epidemia desde o início,
no estado de Pernambuco, o mais afetado pela epidemia, e conta na primeira
pessoa o que encontrou:
“Para
nós, tudo começou no finalzinho de agosto e começo de setembro. Começaram a
chegar três, quatro casos de bebés com microcefalia por dia, encaminhados pelos
neurologistas. Antes, passávamos meses sem ver um único caso. No dia 27 de
outubro, notificámos o Governo do estado de Pernambuco e o Ministério da Saúde
para a gravidade da situação.
O
nosso ambulatório já estava lotado e agora está superlotado. As crianças vêm
encaminhadas pelos pediatras, mas também há muita procura espontânea de mães
assustadas. Neste momento, temos 300 casos de microcefalia no hospital.
Estas
crianças têm uma infeção, que provoca um processo inflamatório que deixa
cicatrizes no cérebro. São calcificações, que podem ser maiores ou menores e
estar em vários lugares do órgão. As áreas onde estão ficam como que mortas e o
cérebro não consegue crescer bem.
O
desenvolvimento das crianças vai depender de como o cérebro foi atingido. Mas
vão sempre precisar de acompanhamento de um neurologista para toda a vida.
Aquelas que tiverem sequelas mais importantes podem ter convulsões e vão
precisar de medicação específica. Algumas poderão não falar, não andar e ter
todo o desenvolvimento psicomotor alterado. A estimulação precoce será
determinante e será necessário o acompanhamento do neurologista, mas também de
um fisioterapeuta e de um terapeuta da fala.
Eu
tenho 44 anos de experiência médica e já vi muita coisa: poliomielite, cólera,
o vírus da gripe (H1N1), surtos de difteria e de sarampo. Mas nunca tinha visto
nada como agora e nem com estas consequências.
No
início, as mães ainda acreditam que a cabecinha do bebé vai crescer, que a
criança irá ficar normal. E somos nós que temos de explicar que não será assim
e que, na hora em que o cérebro for solicitado, as limitações irão surgir.
Temos que explicar que a criança vai precisar de cuidados especiais, que será
dependente e que pode viver pouco tempo, mas também pode viver muito, chegar
aos 30 anos. Tudo isso causa muito stress à equipa médica.
Estou
muito impressionada. Até hoje, não havia nada na literatura médica mundial que
fizesse a ligação entre o vírus zika e a microcefalia. É algo absolutamente
inédito para nós. E não podemos dizer que a situação não irá piorar. Ainda virá
o tempo das chuvas, quando os mosquitos se reproduzem mais.
Este
é um problema emocional muito grave. E também é um problema económico muito
sério para a saúde pública. Temos de criar uma estrutura de atendimento que
ainda não existe. As grávidas estão em pânico. Estamos a nos organizar para
atender as pessoas, sobretudo do interior, mas este é um esforço de longo
prazo. É toda uma geração que fica comprometida. É triste ver tantas crianças
nascerem já com os cérebros lesados porque estas pessoas terão uma inclusão
muito difícil na sociedade”.
Foi
em outubro que Carlos Brito, 47 anos, médico, professor da Universidade de
Pernambuco e membro do comité técnico do Ministério da Saúde para a estudos
sobre doenças infecciosas transmitidas por mosquitos, foi chamado por uma
neurologista do Instituto Materno Infantil, em Recife, para avaliar uma
situação atípica, caracterizada pelo elevado número de recém-nascidos com
microcefalia. Num único mês, 58 casos tinham sido registados em diferentes
cidades do estado de Pernambuco, o primeiro do Brasil a registar a infeção por
vírus zika.
Num
único dia, a médica internara 17 crianças com microcefalia, três vezes mais do
que o número verificado nos cinco anos anteriores. A dimensão causou espanto e
chamou a atenção por ser bastante mais elevada do que a média registada
anualmente pelo Sistema Nacional de Recém-Nascidos brasileiro: cinco casos em
2011, nove em 2012, dez em 2010, 12 em 2014. Pernambuco lidera o número de
notificações de microcefalia. Até agora, estão identificados 1.185 casos, o que
representa 37,33% do total registado em todo o Brasil. Mas, em dezembro, o
estado era responsável por 100% das notificações no país.
“Reunimos
cerca de 70 mães numa mesma sala para entrevistá-las e percebemos que ali havia
um padrão”, explica Carlos Brito. O surgimento de muitos casos, simultaneamente
em várias cidades, indiciava uma doença de rápida dispersão, provavelmente
transmitida por insetos, deixando para trás a possibilidade de a causa ser
toxoplasmose ou citomegalovírus, causadores habituais de microcefalia, mas
cujas formas de contágio seriam distintas.
Também
as características dos próprios casos de microcefalia revelavam uma situação
compatível com infeções congénitas e a maior parte das mães (70%) dos bebés com
malformações neurológicas tinham elas mesmas apresentado sintomas de infeção
pelo zika durante o primeiro trimestre da gravidez, ou seja, marcas vermelhas
na pele, dores corporais ou febre baixa. Além disso, o zika é considerado um
vírus com maior tendência a atacar o sistema nervoso central do que outros da
mesma família, como o dengue ou o chicungunha, doenças também transmitidas pelo
mosquito Aedes aegypti.
Assim,
foi com base nestes sinais que Carlos Brito relacionou o zika com a microcefalia
e este percurso já mereceu, inclusive, a publicação na “Acta Médica
Portuguesa”, com o título “Vírus Zika: Um Novo Capítulo na História da
Medicina”. Mas não foi fácil convencer as autoridades de saúde de Pernambuco. A
primeira reação foi de descrença: “Compreendo, porque o zika está a mudar uma
série de paradigmas”. Mas, 25 dias após o início da investigação, o ministro da
Saúde brasileiro decretou o estado de emergência.
A
confirmação da ligação entre o zika e a microcefalia veio quando o vírus foi
encontrado no líquido amniótico de uma mulher no quinto mês de gravidez, cujo
bebé revelava sinais da malformação neurológica e quando um virulogista detetou
a presença do zika no sangue de dois nado-mortos com microcefalia. No fim de
outubro, a Organização Mundial de Saúde foi avisada do surto de microcefalia.
O
médico que juntou as peças deste quebra-cabeças já teve dengue hemorrágica e
aprendeu a ser disciplinado: “Só ando de mangas compridas e aplico regularmente
repelente. Não é 100% eficaz, mas é uma forma de prevenir a picada do mosquito.
Mas, infelizmente, vivemos uma situação de grande insegurança.” Esta
quarta-feira Carlos Brito estará em Brasília para discutir diretivas aplicáveis
aos países da América Latina sobre o zika e já foi convidado para falar sobre o
tema em Washington, mas foi impedido de o fazer pelo grande nevão do último fim
de semana.
Em
dezembro, eram mais de quatro mil os casos de microcefalia em investigação pelo
Ministério da Saúde no Brasil. Outras patologias continuaram a ser encontradas
nos recém-nascidos, como problemas ósseos e musculares ou alterações auditivas
e visuais e mais de 1,5 milhões de pessoas já terão sido infetadas em todo o
país. A Organização Mundial de Saúde lançou dois alertas globais e El Salvador
aconselhou as mulheres a não engravidarem durante dois anos. O pânico
espalhou-se. E ainda faltam seis meses para começar os Jogos Olímpicos do Rio
de Janeiro.
Na
foto: Larvas do mosquito aedes aegyti, que transmite o vírus. Juan Carlos
Ulate / Reuters
Sem comentários:
Enviar um comentário