Exame
do cenário norte-americano revela: quando partidos hegemônicos degradam-se,
surge espaço para a alternativa
Mayra
Cotta – Outras Palavras
No
final de maio do ano passado, a coletiva de imprensa que cobriu o lançamento da
candidatura de Bernie Sanders às primárias do Partido Democrata contou com a
participação de pouco mais de dez repórteres. A notícia foi dada em notinhas
escondidas e em brevíssimas menções de poucos segundos. Nenhum jornal gastou
tempo ou energia para analisar o significado daquela candidatura. Bernie
Sanders seria apenas mais um desses candidatos que não seriam levados a sério.
Um judeu com forte sotaque do Brooklyn que defendia ideias radicais demais para
sustentar qualquer viabilidade eleitoral.
Há
até pouco menos de dois meses, a imprensa tradicional simplesmente menosprezava
a candidatura de Bernie Sanders. As eleições de 2016 eram retratadas como uma
intensa disputa do lado republicano para saber quem enfrentaria Hillary
Clinton. Não havia a menor dúvida de que ela seria a candidata democrata. Os
comentaristas estavam certos de que o desempenho de Sanders seria tão apagado
quanto o foi em 2012, quando insistiu que houvesse primárias democratas. Seu
argumento consistia na ideia de que a nomeação de Obama para concorrer à
reeleição deveria ter uma oposição de esquerda. O objetivo era forçar o então
presidente a se comprometer com uma agenda mais progressista, depois de um primeiro
mandato decepcionante.
Em
janeiro, contudo, o fenômeno Bernie Sanders tornou-se impossível de ser
ignorado. Na iminência do início das primárias e após desempenho extraordinário
no primeiro debate democrata do ano, as pesquisas começaram a mostrar o que
mais de um milhão de apoiadores e voluntários já sabiam sobre a campanha de
Bernie: o seu lastro social era forte o suficiente para torná-lo uma
alternativa viável ao aparato democrata organizado ao redor da nomeação de
Hillary. Agora, Bernie é o candidato que aparece nas mais recentes
pesquisascom as melhores chances de ganhar dos candidatos republicanos caso
seja o nomeado. Nas simulações feitas, Sanders ganha de qualquer candidato
republicano, enquanto Clinton ganha apenas de Donald Trump e Ben Carson,
perdendo para Ted Cruz, Marco Rubio e até mesmo para o relativamente
desconhecido John Kasich.
Assim
como há apenas dois meses a mídia tradicional tentou criar uma narrativa que
dava como garantida a candidatura de Hillary Clinton, os mesmos especialistas
agora tentam criar uma versão da história que não encontra respaldo nos fatos.
Dizem que a campanha de Bernie Sanders está perdendo fôlego, que as pessoas
estão finalmente se dando conta de que não há espaço para ideias radicais e
sonhos tidos como inalcançáveis na política.
A
realidade, todavia – esta que insiste em se mostrar mais transformável e porosa
do que as análises conformistas – é que o movimento que organicamente floresce
ao redor da candidatura de Bernie está crescendo cada vez mais e ganhando
aderência entre as pessoas. Nos três Estados que já se manifestaram nas
primárias, Bernie obteve 60,4% dos votos, mas, por conta da lógica distrital de
apuração, está praticamente empatado com Hillary em número de delegados ganhos
– ele com 51, ela com 52, sendo que o candidato democrata precisa de 2.383 para
ser confirmado.
Talvez
a ascensão de Bernie Sanders possa ser parcialmente explicada pela transformação
do Partido Democrata iniciada durante o governo de Bill Clinton. Até a eleição
deste presidente, em 1992, havia uma marcada diferença entre os dois partidos,
conforme um ditado corrente entre os capitalistas da indústria e do mercado
financeiro da época: os republicanos deixam você ganhar dinheiro e ficar com o
que ganhou; os democratas não deixam você ganhar dinheiro e, se você ganha,
eles o tomam. Com o neoliberalismo batendo à porta, contudo, Clinton
rapidamente entendeu que a sobrevivência do Partido Democrata, enquanto projeto
de poder viável, dependeria não apenas de concessões ao mercado, mas também de
garantias da preservação de seus interesses, tal como se um republicano
estivesse no poder.
Esta
manobra de Bill Clinton foi tão bem sucedida, que até hoje permanece evidente o
esvaziamento programático de ambos os partidos. No país onde ser liberal é ser
de esquerda, ao partido democrata foi possível diferenciar-se da direita por
meio do avanço de pautas identitárias que não ameaçam – ou até mesmo legitimam
– as demandas neoliberais. Bill Clinton encampou o discurso de combate ao
racismo, enquanto promovia a reforma do sistema prisional que acarretou o
superencarceramento de negros e latinos. Hillary Clinton foi a porta-voz do
feminismo branco, enquanto seu marido articulava o desmantelamento da rede de
assistência social do país, que atendia especialmente as mulheres pobres.
Bill
Clinton conseguiu, de fato, neutralizar o Partido Republicano, que só voltou ao
poder com George W. Bush por meio de uma escandalosa fraude eleitoral. Em 2000,
no país que se orgulha de ter a democracia mais vibrante e sólida do mundo, o
candidato que recebeu a maior quantidade de votos não foi eleito devido ao
controle de um Estado exercido pela família Bush. Diante da nova configuração
que acomodou os interesses de mercado no partido democrata, os republicanos
entenderam que a eleição de George W. significava a sobrevivência de um partido
que não mais se diferenciava aos olhos do grande capital. Aos republicanos
restou lutar pelo eleitorado ultra-conservador, transformando racismo,
misoginia, homofobia e preconceito em plataforma eleitoral. O sequestro do
partido republicano pelo movimento do Tea Party é a evidência mais eloquente de
sua degeneração.
Diante
deste lamentável quadro, uma significativa parte da plataforma eleitoral de
Bernie Sanders é a denúncia do sistema político tradicional estadunidense, por
meio de pautas que atacam os privilégios das elites econômicas – privilégios
estes que, desde Bill Clinton, estavam garantidos independentemente de qual
partido estivesse no poder. A decisão de concorrer pela nomeação do Partido
Democrata, apesar de ter construído sua carreira política como independente,
foi uma consciente tentativa de escapar das distorções do bipartidarismo,
muitas vezes inconciliáveis com a democracia – até mesmo com a limitada versão
de democracia representativa que se tem atualmente.
O
campo antirrepublicano estadunidense está até hoje remoendo a vitória de George
W. Bush, em 2000, que supostamente foi ajudado pela candidatura de Ralph Nader,
o candidato independente à época. Isso porque Nader tentou construir uma
oposição de esquerda ao Partido Democrata, mas acabou tirando do candidato
democrata Al Gore os votos que poderiam ter garantido a sua vitória. Apesar das
tentativas de alguns democratas, inclusive Hillary, de deslegitimar Sanders por
não ser um “verdadeiro democrata”, a insistência dele em trazer o partido
novamente para a esquerda tem convencido seus eleitores.
Eu
mesma me empolguei com a campanha de Bernie, no início, muito mais pela função
que ela estava evidentemente cumprindo de forçar Hillary a assumir pautas mais
radicalizadas, do que por acreditar em uma real possibilidade de vitória. A
intensidade com que as pessoas vem aderindo à sua campanha, contudo, mostra que
não é apenas o compromisso com algumas pautas que vai satisfazer o desejo de
mudança. A ideia, repetida à exaustão por Bernie, de que a revolução política
só será possível pelo engajamento de todos e todas no movimento que se organiza
ao redor, mas vai muito além da sua candidatura, repercute muito mais que a
estratégia de Hillary, insistindo em convencer os eleitores de que ela é a
pessoa que “consegue fazer as coisas”.
Na
próxima semana, mais 12 Estados vão escolher quem será o candidato ou candidata
democrata. Em cada um deles, Bernie Sanders larga com a desvantagem de ser um
nome desconhecido – especialmente em comparação com Hillary Clinton. Apesar de
sua campanha vir ganhando rápida aderência por onde passa, talvez não haja
tempo suficiente de apresentar o candidato ao país. A participação dos jovens,
contudo, pode fazer toda a diferença. A construção aberta e coletiva de sua
campanha traz um engajamento que dá às pessoas protagonismo político e
capacidade de participação efetiva. Todos os dias, em diferentes cidades, há
vários eventos, conversas, cafés, exposições de arte, shows de música,
vernissages, festinhas e baladas sendo organizados por quem está feeling the
Bern – slogan criado espontaneamente nas redes. Resta agora vermos se a
empolgação terá força para vencer o conformismo que desconfia de qualquer
possibilidade de transformação efetiva.
Sem comentários:
Enviar um comentário