segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

O RACISMO DO TEMPO COLONIAL E DE HOJE EM SÃO TOMÉ E PRÍNCIPE



Eduardo Guimarães* - Téla Nón, opinião

Comentário à peça jornalística “Em São Tomé o colonialismo não morreu com as roças”, de Joana Gorjão HENRIQUES, Sibilia LIND e Frederico BATISTA, publicado no site do jornal O Público,  07/02/2016

A abordagem de um pretenso documentário jornalístico emitido no dia 7 de janeiro deste ano, no site do jornal português O Público, intitulado“Em São Tomé o colonialismo não morreu com as roças” faz esquecer o factor fundamental que deveria presidir à análise de qualquer sociedade: as relações sociais de produção. Em todas as formas de sociedade, “é uma produção determinada e as relações de produção por ele produzidas que estabelecem a todas as outras produções e às relações a que elas dão origem a sua categoria e importância” (K. Marx).Analisar uma sociedade colonial pela quantidade de melanina dos seus atores é um ato racista estéril, embora possa ser útil aos hodiernos opressores.

Este enfoque pode passar a ideia de que o colonialismo teria sido substantivamente diferente se tivesse sido perpetrada por pessoas de uma outra etnia (o termo correcto é esse). Nada mais falso e perigoso, porque gerador de xenofobia. Temos, hoje, excelentes ferramentas de análise que as diversas ciências sociais nos disponibilizam e que devemos mobilizar se efetivamente estivermos interessados em compreender a realidade de ontem e de hoje de qualquer sociedade.

Afirmar o caráter racista de uma colonização em que o colonizador é de uma etnia diferente da do colonizado e ilustrar isso com casos concretos é tão esclarecedor como afirmar que a água molha, o vinho embebeda ou que as árvores têm raízes e crescem para cima. Quer dizer, em nada nos ajuda a compreender o fenómeno.

Do ponto de vista cognitivo, este tipo de abordagem que se pretende objetiva fica pelo nível da descrição – geralmente pouco exacta, porque suportada por depoimentos com base em experiências pessoais ou testemunhos indirectos. Ora, uma peça jornalística não se deve limitar a descrever mas sim contribuir para a inteligibilidade do que descreve, sob pena de promover a ignorância e os prenconceitos. Já agora: alguém reparou que na peça não há testemunhos directos?

Este fato, por si só, constitui uma irrefutável prova de que na nossa terra os mais oprimidos do colonialismo continuam, ainda hoje, sem voz. Como é que foi possível falar das roças e do que aí se passava de desumano sem escutar uma única pessoa que tivesse vivido essas situações e pudesse depôr em viva voz? Nesse objecto que pretende ser um documentário jornalístico tudo se passa como se os oprimidos não fossem capazes de construir a sua narrativa e que a sua história tivesse de ser contada pelos outros, por aqueles que andaram na universidade, os novos donos das terras e das roças.

Muito mais pertinente e útil seria revelar de que modo, hoje, em São Tomé, os detentores de poder – da senhora que tem uma empregada ao senhor ou senhora que é ministro/a – replicam relações sociais geradas no contexto colonial. Isso sim é que é necessário revelar, denunciar, desmontar e superar. Isso é o que temos de fazer se ambicionamos por um São Tomé e Príncipe mais justo e fraterno. Tenho visto, na nossa terra, pessoas tratarem os seus subordinados na mais vil negação da dignidade do outro, comportando-se como uma caricatura do colono que, de chibata na mão, dava ordens e humilhava o serviçal.

Sim, isso acontece e nada tem a ver com a pigmentação da pele, caros senhores e senhoras. Tem a ver com o poder e o poder não caíu na rua nem desapareceu das relações interpessoais dos santomenses, depois da independência. Falemos pois do poder, de como ele se tece, de como ele escraviza o opressor e o oprimido. Caros concidadãos santomenses, se estamos empenhados em compreender, falemos do poder e não da cor da pele. Sejamos lúcidos e amantes de um futuro melhor.

Confesso que me custou bastante ver pessoas por quem nutro amizade e admiração, pelo papel que tiveram e têm na sociedade santomense, caírem em tamanha esparrela de um jornalismo pobre e empobrecedor e lamento profundamente que a Fundação Francisco Manuel dos Santos tenha dado cobro a isto. Aos meus compatriotas santomenses tenho a dizer o seguinte: “cá bili uê!”, cuidado com a arte da prestidigitação de quem está no poder: enquanto nos entretêm com os opressores do passado desviam-nos o olhar dos opressores do presente e, assim, legitimam o seu poder.

Não pude deixar de notar, com um arrepio na espinha, o recentemente colocado arame farpado nas paredes de uma roça. O passado deve ser entendido e superado e deve ajudar-nos a construir um futuro onde habite um maior respeito pela dignidade humana. Escrevo-vos dos Açores, a menos de 30 metros de um local onde, até o início dos anos setenta, logo pela manhã, os capatazes das terras das poucas famílias ricas cá da ilha que punham e dispunham de tudo e de todos, escolhiam os trabalhadores braçais pelo seu físico, pelas suas mãos calejadas e pelo tamanho da enxada que traziam: quanto mais curto fosse o cabo da enxada mais evidente a disponibilidade do seu pobre possessor em se vergar no labor da lavoura e da vida.

Caríssimos, se não gostam ou não querem aprender o que nos ensinam as ciências humanas que nos ajudam a entender, com a objetividade possível, a realidade social, leiam ou releiam a boa literatura portuguesa do movimento neo-realista, para que entendam melhor como se tecem as relações de opressão, independentemente da quantidade de melanina do opressor e do oprimido. Olhem para o real social procurando desvelar as relações sociais de produção. Caso contrário, perderão o essencial e inviezarão o olhar.

Como santomense, estou triste e envergonhado com aquela que deveria ser uma elite intelectual da minha terra. Resta-me a consolação de saber que o trabalho da construção jornalística do referido documentário é-lhes alheio. Agora, o que se pode e se deve fazer – do ponto de vista intelectual e ético – é demarcar-se de tão pobre resultado.

Eu sou, como todos os santomenses, independentemente da cor da pele que exibam, um creoulo, um ser de alma mestiça, como, num futuro mais ou menos distante e imparável serão todos os seres humanos. Enquanto os santomenses não assumirem essa condição de sermos mestiços, andarão a tentar morder a cauda como um cão raivoso que não se consegue libertar das pulgas.

*Eduardo Guimarães nasceu na freguesia da Conceição, cidade de São Tomé, em 1960. Tem na sua genealogia gente de diferentes pigmentações cutâneas, em ambos os lados do trágico jogo da opressão. Sem ter que recorrer à prescrição belicista de Sartre e Frantz Fanon, superou a neurose colonial adquirindo conhecimentos em sociologia e não prescindindo de uma boa dose de exercício crítico da razão. Tem o seu códó-closón enterrado debaixo de uma árvore de fruta-pão, na cidade de Santana, na casa da bisavó que conheceu e viveu o inferno da escravatura.

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