Eduardo
Guimarães* - Téla Nón, opinião
Comentário
à peça jornalística “Em São Tomé o colonialismo não morreu com as roças”, de
Joana Gorjão HENRIQUES, Sibilia LIND e Frederico BATISTA, publicado no site do
jornal O Público, 07/02/2016
A
abordagem de um pretenso documentário jornalístico emitido no dia 7 de janeiro
deste ano, no site do jornal português O Público, intitulado“Em São Tomé o
colonialismo não morreu com as roças” faz esquecer o factor fundamental que
deveria presidir à análise de qualquer sociedade: as relações sociais de produção.
Em todas as formas de sociedade, “é uma produção determinada e as relações
de produção por ele produzidas que estabelecem a todas as outras produções e às
relações a que elas dão origem a sua categoria e importância” (K.
Marx).Analisar uma sociedade colonial pela quantidade de melanina dos seus
atores é um ato racista estéril, embora possa ser útil aos hodiernos
opressores.
Este
enfoque pode passar a ideia de que o colonialismo teria sido substantivamente
diferente se tivesse sido perpetrada por pessoas de uma outra etnia (o termo
correcto é esse). Nada mais falso e perigoso, porque gerador de xenofobia.
Temos, hoje, excelentes ferramentas de análise que as diversas ciências sociais
nos disponibilizam e que devemos mobilizar se efetivamente estivermos interessados
em compreender a realidade de ontem e de hoje de qualquer sociedade.
Afirmar
o caráter racista de uma colonização em que o colonizador é de uma etnia
diferente da do colonizado e ilustrar isso com casos concretos é tão
esclarecedor como afirmar que a água molha, o vinho embebeda ou que as árvores
têm raízes e crescem para cima. Quer dizer, em nada nos ajuda a compreender o
fenómeno.
Do
ponto de vista cognitivo, este tipo de abordagem que se pretende objetiva fica
pelo nível da descrição – geralmente pouco exacta, porque suportada por
depoimentos com base em experiências pessoais ou testemunhos indirectos. Ora,
uma peça jornalística não se deve limitar a descrever mas sim contribuir para a
inteligibilidade do que descreve, sob pena de promover a ignorância e os
prenconceitos. Já agora: alguém reparou que na peça não há testemunhos
directos?
Este
fato, por si só, constitui uma irrefutável prova de que na nossa terra os mais
oprimidos do colonialismo continuam, ainda hoje, sem voz. Como é que foi
possível falar das roças e do que aí se passava de desumano sem escutar uma
única pessoa que tivesse vivido essas situações e pudesse depôr em viva voz?
Nesse objecto que pretende ser um documentário jornalístico tudo se passa como
se os oprimidos não fossem capazes de construir a sua narrativa e que a sua
história tivesse de ser contada pelos outros, por aqueles que andaram na
universidade, os novos donos das terras e das roças.
Muito
mais pertinente e útil seria revelar de que modo, hoje, em São Tomé, os
detentores de poder – da senhora que tem uma empregada ao senhor ou senhora que
é ministro/a – replicam relações sociais geradas no contexto colonial. Isso sim
é que é necessário revelar, denunciar, desmontar e superar. Isso é o que temos
de fazer se ambicionamos por um São Tomé e Príncipe mais justo e fraterno.
Tenho visto, na nossa terra, pessoas tratarem os seus subordinados na mais vil
negação da dignidade do outro, comportando-se como uma caricatura do colono
que, de chibata na mão, dava ordens e humilhava o serviçal.
Sim,
isso acontece e nada tem a ver com a pigmentação da pele, caros senhores e
senhoras. Tem a ver com o poder e o poder não caíu na rua nem desapareceu das
relações interpessoais dos santomenses, depois da independência. Falemos pois
do poder, de como ele se tece, de como ele escraviza o opressor e o oprimido.
Caros concidadãos santomenses, se estamos empenhados em compreender, falemos do
poder e não da cor da pele. Sejamos lúcidos e amantes de um futuro melhor.
Confesso
que me custou bastante ver pessoas por quem nutro amizade e admiração, pelo
papel que tiveram e têm na sociedade santomense, caírem em tamanha esparrela de
um jornalismo pobre e empobrecedor e lamento profundamente que a Fundação
Francisco Manuel dos Santos tenha dado cobro a isto. Aos meus compatriotas
santomenses tenho a dizer o seguinte: “cá bili uê!”, cuidado com a arte da
prestidigitação de quem está no poder: enquanto nos entretêm com os opressores
do passado desviam-nos o olhar dos opressores do presente e, assim, legitimam o
seu poder.
Não
pude deixar de notar, com um arrepio na espinha, o recentemente colocado arame
farpado nas paredes de uma roça. O passado deve ser entendido e superado e deve
ajudar-nos a construir um futuro onde habite um maior respeito pela dignidade
humana. Escrevo-vos dos Açores, a menos de 30 metros de um local onde, até o início
dos anos setenta, logo pela manhã, os capatazes das terras das poucas famílias
ricas cá da ilha que punham e dispunham de tudo e de todos, escolhiam os
trabalhadores braçais pelo seu físico, pelas suas mãos calejadas e pelo tamanho
da enxada que traziam: quanto mais curto fosse o cabo da enxada mais evidente a
disponibilidade do seu pobre possessor em se vergar no labor da lavoura e da
vida.
Caríssimos,
se não gostam ou não querem aprender o que nos ensinam as ciências humanas que
nos ajudam a entender, com a objetividade possível, a realidade social, leiam
ou releiam a boa literatura portuguesa do movimento neo-realista, para que
entendam melhor como se tecem as relações de opressão, independentemente da
quantidade de melanina do opressor e do oprimido. Olhem para o real social
procurando desvelar as relações sociais de produção. Caso contrário, perderão o
essencial e inviezarão o olhar.
Como
santomense, estou triste e envergonhado com aquela que deveria ser uma elite
intelectual da minha terra. Resta-me a consolação de saber que o trabalho da
construção jornalística do referido documentário é-lhes alheio. Agora, o que se
pode e se deve fazer – do ponto de vista intelectual e ético – é demarcar-se de
tão pobre resultado.
Eu
sou, como todos os santomenses, independentemente da cor da pele que exibam, um
creoulo, um ser de alma mestiça, como, num futuro mais ou menos distante e
imparável serão todos os seres humanos. Enquanto os santomenses não assumirem
essa condição de sermos mestiços, andarão a tentar morder a cauda como um cão
raivoso que não se consegue libertar das pulgas.
*Eduardo
Guimarães nasceu na freguesia da Conceição, cidade de São Tomé, em 1960. Tem na
sua genealogia gente de diferentes pigmentações cutâneas, em ambos os lados do
trágico jogo da opressão. Sem ter que recorrer à prescrição belicista de Sartre
e Frantz Fanon, superou a neurose colonial adquirindo conhecimentos em sociologia
e não prescindindo de uma boa dose de exercício crítico da razão. Tem o seu
códó-closón enterrado debaixo de uma árvore de fruta-pão, na cidade de Santana,
na casa da bisavó que conheceu e viveu o inferno da escravatura.
Sem comentários:
Enviar um comentário