quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

Portugal. VIVE E PERMITE MORRER



Miguel Guedes – Jornal de Notícias, opinião

A nossa decisão principal nunca poderá ser sobre a vida, só sobre a morte. Credos e religiões à parte porque, mesmo para os mais indefectíveis crentes, se há milagre primordial é o da vida: nenhum homem se aproxima ou assemelha a Deus ao ponto de a entender por simples ou mundano decreto. Por crença, desejo ou medo. Na morte há todo um mistério que não tem propriamente ligação ao acto de morrer mas sim à continuação ou perpetuação da vida. Sempre o mistério da vida, essa que alguns antecipam como novinha em folha após o fim da linha do tempo que ainda vamos sabendo contar. Se nem tempo, família ou condição podemos escolher aquando da erupção, que possamos optar em consciência sobre o momento de fazer pausa ao movimento. Que possamos escolher sobre algo verdadeiramente significante, já agora e sobretudo, quando entendermos que a dor é mais presente do que uma vida em simulação. Em determinados casos, morrer não é só uma fatalidade. Nos momentos em que a dignidade se confunde com o sofrimento de um condenado, morrer é quase uma obrigação.

A frio, dizem os burocratas da moral que ninguém é insubstituível. A frio, poderiam dizer que ninguém se substitua. Sobretudo, que ninguém se arrogue como detentor do espaço de liberdade final de alguém. Não é legítimo viver um simulacro da vida dos outros. Como escreviam Paul e Linda McCartney, "Live and Let Die". O "Movimento cívico para a despenalização da morte assistida", cujo manifesto assino e subscrevo, lançou as bases para um debate que se deve ter com urgência. Depois de algumas batalhas pela liberdade e autodeterminação da pessoa terem sido ganhas (o consentimento informado, o direito de aceitação ou recusa do tratamento, a condenação da obstinação terapêutica e o Testamento Vital), é imperioso caminhar para a despenalização e regulamentação da morte assistida.

Nem os direitos humanos se referendam nem um presidente da República deve ter medo que uma bomba lhe rebente nas mãos. Pela complexidade do tema, as questões fundamentais levantadas pela morte assistida devem ser amplamente debatidas. Mas quem quiser afunilar o debate em razões ideológicas, religiosas ou de costumes pode lembrar-se que, há cerca de uma década, estudos apontavam para que 50% dos idosos em Portugal (e com uma amostra de pessoas que não sofriam de doenças terminais, graves ou crónicas) admitiam a legalização da eutanásia e que 40% dos médicos oncologistas portugueses estavam disponíveis para a praticar. Acontece todos os dias. Pelo fim do sofrimento e do sentimento de culpa, pela autodeterminação e pela dignidade, pelo fim da penalização de quem ajuda aqueles que anseiam pôr um fim onde a sua ou outra vida se eleve.

O autor escreve segundo a antiga ortografia

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