Condução
coercitiva, com caráter claramente fanfarrão, é primeiro passo para prisão sem
julgamento. Lulismo tem limites e contradições evidentes — mas são seus méritos
que levam elites a odiá-lo
Antonio
Martins - Outras Palavras
O
ex-presidente Lula está, neste momento, em alguma dependência da Polícia
Federal, levado sob coerção para prestar depoimento. As informações são
contraditórias e confusas: não se sabe se irá à sede da PF na Lapa, se será
conduzido a Curitiba ou ouvido por delegados em um hotel em São Paulo. A
coerção foi determinada pelo juiz paranaense Sérgio Moro, na 24ª etapa –
“Aletheia” – da chamada Operação Lava Jato. O objetivo declarado é apurar
suposto favorecimento que Lula teria recebido, de empreiteiras, em imóveis cuja
propriedade é atribuída a ele, em Atibaia e Guarujá.
Porém,
os passos que precederam a coerção são claros, tanto no terreno jurídico quanto
no político e midiático. Nos últimos dias, a força-tarefa de juízes e
procuradores que constitui a Lava Jato passou a operar freneticamente, num
aparente esforço para consumar a prisão do ex-presidente. Na quarta-feira
(2/3), divulgou-se com alarde que o empresário Leo Pinheiro, sócio e
ex-presidente da construtora OAS,estaria
decicido a fazer delação premiada que comprometeria Lula. Em seguida,
silêncio: tiro perdido? Ontem, foi a vez de a revista IstoÉanunciar a possível
delação, com idêntico sentido, do senador Delcídio do Amaral (PT-MT) – que
aparentemente ocorreu
de fato, o que não significa ser verídica. Agora, vem a coerção,
acompanhada de medidas destinadas a produzir alarde. Duzentos policiais
federais envolvidos. Invasão do Instituto Lula, das casas do ex-presidente e de
seu filho, para suposta apreensão de provas… Ainda que Lula tenha cometido
crimes, guardará os indícios em seus computadores, depois de sofrer anos de
perseguições?
*
* *
No
terreno político, há movimentação paralela mas igualmente frenética. Aproveitando-se
da fraqueza e da falta completa de iniciativa e ânimo, por parte do governo
Dilma, um grupo de parlamentares tenta aprovar no Congresso Nacional — a toque
de caixa e sem qualquer debate com a sociedade — um conjunto de medidas
claramente regressivas. Estão entre elas: a) a concessão do petróleo do pré-sal
para corporações estrangeiras; b) a “independência” do Banco Central em relação
a autoridades eleitas – que o colocaria diretamente sob controle da
aristocracia financeira; c) a escandalosa blindagem das empresas que obtiverem
concessão de serviços públicos (para que a sociedade seja impedida de examinar
e rever os contratos); d) a limitação de gastos não financeiros do Estado (o
que poderia levar a redução real do salário-mínimo e das aposentadorias).
A
articulação entre as frentes jurídica e política é evidente. A agenda
regressiva no Congressso é impulsionada pelos senadores José Serra (PSDB-SP) e
Romero Jucá (PMDB-RR). Mas quem comanda seu avanço são dois dos parlamentares
mais enterrados no lodaçal do Congresso – Eduardo Cunha e Renan Calheiros, os
presidentes da Câmara e Senado. A estes a mídia e a Lava Jato permitem e
estimulam que dirijam a pauta nacional sem qualquer tipo de constrangimento. Ou
seja: não se está diante de uma cruzada moralizadora, de uma Operação Mãos
Limpas despartidarizada. O que há é uma campanha que usa a bandeira do combate
à corrupção como biombo para obter, sem o risco do debate democrático,
objetivos que não seriam alcançados de outro modo. A sentido político da Lava
Jato tem sido desnudado numa série de textos do jornalista Luís Nassif, um
dos quais é essencial.
*
* *
As
piores mentiras são, sempre, as meias verdades. O que torna esta operação
jurídico-política mais danosa é o fato de se basear em fatos concretos. As
revelações da Lava Jato não são invenções brotadas da imaginação fértil de
Sérgio Moro. Assim como no caso do “Mensalão”, o PT herdou e reproduziu as
práticas corruptas que o Estado brasileiro impõe, desde que fundado, aos que
habitam. No primeiro episódio, o elo de ligação foi o marqueteiro Marcos
Valério, que serviu sucessivamente a tucanos e petistas – mantendo idênticomodus
operandi. Agora é o senador Delcídio do Amaral.
Nomeado por Fernando Henrique Cardoso para a diretoria de Gás e Energia da
Petrobŕas, em 2000, articulou-se desde então com Nestor Cerveró e Paulo Roberto
Costa, hoje os dois principais delatores da Lava Jato. Em 2001, sentiu o
esgotamento do velho esquema e bandeou-se para o PT, partido pelo qual
elegeu-se senador, em 2002. Foi acolhido e, tal qual Marcos Valério, manteve
métodos idênticos. Não é de estranhar que este autêntico homem-bomba seja
igualmente rechaçado, agora, por tucanos e governistas.
*
* *
O
que mais deu força à Lava Jato não foram suas revelações – alguém ignora a
corrupção endêmica ao Estado brasileiro? – mas o novo ambiente político em que
ela vicejou, após o início do segundo governo Dilma. Conforme destacou com
precisão Guilherme Boulos, a
presidente abre mão, sem pudor algum, de tudo que diferenciava o petismo
dos governos das elites. No desespero para salvar a própria pele, entrega o
único trunfo que a distinguiria da pilhagem praticada pelo Estado brasileiro.
Seus atos sugerem que desistiu do que havia de mais positivo no lulismo: a
modesta (porém efetiva) redistribuição de riquezas; a política externa
independente (que tanto incomodou a Washington); a tentativa de retomar um
projeto desenvolvimentista (ainda voltado aos velhos paradigmas, mas ao menos
não submisso à aristocracia financeira).
Lula
sobreviveu ao “mensalão” porque pôde mostrar, em 2006, que seu projeto o
distinguia. A campanha udenista de Serra e da mídia esbarrou em algo nítido na
consciência coletiva. A corrupção do Estado brasileiro é, todos sabem, atávica;
mas o lulismo indicava que as maiorias não estavam condenadas a padecer
eternamente. Que dizer de Dilma, que, em 2016, entrega o pré-sal, propõe uma
contra-reforma fiscal que levará à redução real do salário mínimo e quer
reduzir os direitos previdenciários – enquanto tolera os lucros recordes dos
bancos? Como defender um governo que trabalha com afinco, todos os dias, para
tornar-se indefensável?
*
* *
Bem
pouco resta, em todo o mundo, das velhas democracias que herdamos das
revoluções dos séculos XVII ao XX. Mas seus símbolos persistem e podem ser
reavivados, porque são conquistas coletivas. Os filósofos iluministas cujas
ideias ajudaram a superar a crise do mundo medieval apoiaram-se do que houvera
de melhor na Antiguidade clássica. Talvez seja necessário retornar aos ideais
das revoluções modernas para retirar inspiração, nos dias tormentosos que
vivemos.
Num
mundo em crise, surgem por toda parte fenômenos estranhos. Nos EUA, um senador
marginalizado do Partido Democrataconverteu-se num
candidato à presidência com chances reais vitória. Na Inglaterra, o velho
Partido Trabalhista, depois de amortecido e privado de sua alma, reviveu graças
ao impulso de Jeremy Corbin, um socialista sincero. A coerção de Lula é um
símbolo poderoso. O Brasil tem sido, desde o início deste século, um país
inspirador para outro mundo possível. Diante deste ataque, seremos capazes de
inventar uma alternativa?
Na
foto: Sintoma: em montagem que circulou fartamente nas redes sociais, Lula
acaricia boneco que o representa preso. Quantos recalques a Lava Jato suscitara?
Sem comentários:
Enviar um comentário