Miguel
Guedes* - Jornal de Notícias, opinião
A
estranheza manifesta-se. Agora que todos já trocaram os argumentos públicos e
privados, bem que se acabava com esta exaltação amarela. Mas não. É a cor do
dinheiro e a procissão ainda vai no adro. E quando Assunção Cristas e a
Conferência Episcopal Portuguesa se juntam à manif, talvez por obra e graça do
Espírito Santo se contassem 40 000 pessoas num espaço onde não podiam caber
fisicamente metade dos milhares. A organização atira com o número e alguma
comunicação social transmite, sem cuidar de olhar para o óbvio. A
instrumentalização das pessoas (dos pais, neste caso) é aterradoramente normal
nos movimentos ideológicos ou de fé, mas é inaceitável quando "vão a eles
as criancinhas". E alguns jornalistas. O presidente da República pode ter
feito saber que abriu um sorriso amarelo. Mas o que faz encerrar qualquer
sorriso amarelo é ouvir o coro de "Aqui não há misturas, é tudo boa
gente". Foi mesmo ensaiado ou só espontaneidade da primeira manifestação
da vida?
Não
estão em causa os contratos de associação para locais onde não há ensino com
cobertura pública, garantindo o acesso constitucional e universal à educação
pública e gratuita. Assim foi no passado em muitas geografias do país. Hoje, a
realidade é maioritariamente outra e esses convénios estão mais do que pagos.
Hoje, parte das escolas públicas que convivem com colégios privados na
vizinhança estão subaproveitadas e com poucas crianças, descaracterizadas,
vítimas do desinvestimento e dos cortes de Crato na educação. A atual
interpretação dos contratos de associação é inaceitável, restando a questão
jurídica. E o mesmo raciocínio se aplica aos hospitais privados aos quais o SNS
pagou cerca de 100 milhões de euros em vales-cirurgia entre 2013 e 2015, muitos
deles em procedimentos discutíveis. A equação é clara: não se trata de saber se
há dinheiro, mas antes de saber para onde ele vai.
A
saúde e a educação são áreas onde o Estado investiu democraticamente e, pesem
embora muitas críticas e apontamentos que se possam e devam fazer, dificilmente
encontramos outras áreas onde o Estado tenha ganho tantas batalhas pela justiça
social. A verdadeira liberdade de escolha dos pais e crianças não é
"a-vaga-que-o-Estado-preenche-na-escola-que-o-Estado-escolhe-no-ensino-privado-que-o-Estado-resolve-financiar",
tantas vezes por negociatas ou interesses velados. A verdadeira liberdade de escolha
é quando o Estado devolve às famílias parte dos impostos que todos pagamos,
sustentando opções de ensino público de qualidade e a possibilidade de as
famílias (querendo ou podendo) optarem, pagando pelo ensino privado. Não há
Estado sem redistribuição de riqueza. Nada me move contra a excelência de
ensino em alguns estabelecimentos privados. Não me custa reconhecer que muitas
dessas escolas batem aos pontos a qualidade de ensino de muitas escolas
públicas. Pois esse é que é verdadeiramente o problema.
*Músico
e advogado
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