Às
vésperas dos Jogos Olímpicos, um convite a refletir sobre o contexto que produz
os jihadistas e os caminhos para desconstruí-lo. Uma pista: a História
Praveen
Swami, no The Indian Express - Outras Palavras - Tradução: Antonio Martins
Para
compreender os jihadistas do Estado Islâmico, volte no tempo, até a Europa da
Idade Média
“No
Templo de Salomão e no pórtico”, escreveu o cronista Raymond d’Aguilers, que
testemunhou a captura da cidade em 1099, “os cruzados cavalgaram com sangue até
os joelhos e arreios de seus cavalos”. Ele lembrou-se de “trabalhos
maravilhosos”: “Alguns dos pagãos foram decapitados em misericórdia”, outros
perfurados por setas atiradas das torres e ainda outros, torturados durante
longo período, foram queimados vivos em chamas lancinantes”. “Jerusalém estava
agora entupida de corpos e tingida de sangue – D’Aguilers prossegue com
aprovação – o sangue dos pagãos que blasfemaram Deus por tanto tempo.
A
mente de Mohamed Lahouaiej Bouhlel, que dirigiu seu caminhão contra uma
multidão que celebrava o Dia da Bastilha em Nice, matando 84 pessoas, está
fechada para nós para sempre. Os fragmentos a que temos acesso são muito
esparsos, às vezes paradoxais. Um homem fascinado pelos vídeos de decapitação
do Estado Islâmico, mas também por excessos sexuais impulsionados por drogas;
um homem que destroçava os ursinhos de suas crianças e inclinado a pequenos
crimes; um homem com diagnóstico de doença mental, mas capaz de planejar
meticulosamente seu ataque.
Dos
relatos de d’Aguilers, no entanto, aprendemos algo essencial. A violência
islâmica, a despeito da estética que algumas vezes adota, é um produto de
nossos tempos modernos, não da era medieval. No entanto, é muito simplório
enxergar esta ultra-violência como um fenômeno de nosso tempo. Há importantes
lições a aprender do passado sobre as circunstâncias em que cultos milenaristas
com o do Estado Islâmico florescem e crescem.
A
Europa medieval oferece um ângulo importante para examinar o jihadismo e
compreender seu funcionamento. Os contornos daquele período são estranhamente
familiares, caracterizados por enorme deslocamento social. O crescimento de
grandes cidades, construídas para produção de bens e o comércio organizado,
tinha dado origem a novas classes sociais, que buscavam desmantelar a ordem
feudal. Havia uma onda crescente de imigrantes inundando as cidades a partir do
campo empobrecido, mas encontrando, com frequência, apenas miséria.
A
atividade intelectual intensa também caracterizou aqueles tempos. Em 1417,
Poggio Bracciolini, um secretário papal desempregado, descobriu, num monastério
alemão, uma cópia de De rerum natura,obra do poeta romano Titus Lucretius
Carus por muito tempo perdida. Com isso, reintroduziu no mundo a ideia
filosófica radical de que o mundo foi criado não pela vontade de Deus, mas pela
colisão aleatória de partículas.
Sobre
as revoluções das esferas celestes, de Nicolau Copérnico, publicada pouco
antes de sua morte, em 1543, estabeleceria as fundações científicas para uma
revolução em nosso conceito sobre o universo.
Em
meio a este novo mundo, porém, fermentava um grande número de cultos
milenaristas da morte, um contraponto à construção do mundo das Luzes. Estes
movimentos, notou o acadêmico Norman Cohn em sua obra principal, In
Pursuit of the Millenium [“Em busca do Milênio”], assemelhavam-se muito ao
jihadismo moderno, ao se apresentarem como distintos de “todas as outras lutas
conhecidas na História, um cataclismo, do qual o mundo emergirá totalmente
transformado e reorientado”.
O
caso dos Adamitas, assim chamados a partir do camponês que os liderava – e que
se proclamava tanto Adão quanto Moiséis – é instrutivo. Os relatos da época
contam que, de sua ilha fortificada norio Nezarka, próxima
a Neuhaus [no
sul da Boêmia, hoje República Tcheca], os adamitas lutaram uma guerra sagrada
contra as cidades próximas. Todos os homens, mulheres e crianças inimigos eram
retalhados ou queimados vivos. Era preciso, acreditavam os adamitas, que o
sangue subisse até a altura de uma cabeça de cavalo.
Em
outubro de 1421, os adamitas foram exterminados – lutando até o fim, sua
resistência fanática impulsionada pela profecia de seu líder, segundo a qual
Deus cegaria os soldados do exército de formado para combatê-los.
Já
Jan Bockelson fundou o regime anabatista de Münster nos anos 1520,
preparando-se para a iminente chegada de Cristo com poligamia, entretenimentos
bizarros e a execução de todos os dissidentes. Quando o exército imperial
sitiou Münster, garantiu-se aos seguidores que Deus havia-os dotado com a força
de cem inimigos; eles não sofreriam nem fome, nem sede, nem cansaço.
Embora
a fome consumisse a população – muitos pediam aos mercenários de Bockelson para
aplicar-lhes e em suas crianças o golpe de misericórdia – todos recusaram as
ofertas do exército imperial de uma rendição honrosa.
Este milenarismo, notou Cohn, tirava forças de uma população obrigada a viver à margem da sociedade”. Após a desintegração das redes e sociedades de parentesco, nos novos tempos, estes grupos criaram seus próprios profestas carismáticos.
Farhad
Khosrokhavar, um sociólogo francês que entrevistou muitos terroristas
encarcerados, descreveu o jihadismo em termos similares – “individualismo por
meio da morte”. Seu trabalho sugere que matadores como o tunisiano Bouhlel são
apartados de seus laços culturais tradicionais, sem ter feito a transição para
a modernidade cultural. Na violência niilista, encontram a libertação.
Num
sentido mais amplo, Khosorokhavar argumenta que isso se repete em muitas
sociedades do Oeste da Ásia. A região, ele lembra, assistiu “ao desmantelamento
das comunidades tradicionais por meio de ações do Estado e à construção de uma
nova economia de mercado sem os possíveis efeitos positivos desta última”. O
islamismo oferece a ilusão de uma alternativa justa, baseada na vontade de
Deus, ao invés do capricho dos homens.
No
início do século XVI, o Livro de Cem Capitulos, um texto apocalíptio
escrito por um publicista anônimo que vivia no alto Reno, demonstrou a
durabilidade destas fantasias. Ele profetizou a chegada de um Irmão da Cruz
Amarela, que iria “controlar o mundo todo, de Oeste a Leste, pela força das
armas”. Cunhou um mote, para esta era de terror: “Breve, beberemos sangue por
vinho”!
É
fascinante contemplar como esta linguagem é próxima à dos textos jihadistas
modernos. “A História só escreve suas linhas com sangue”, escreveu Abdullah
Azzam, patriarca fundador dos jihadistas árabes no Afganistão, reverenciado tanto
pela Al-Qaeda quanto pelo Estado Islâmico. “A glória só constrói seus edifícios
elevados com caveiras; a honra e o respeito só podem ser estabelecidos num
alicerce de aleijões e cadáveres”. Como Azzm, os cruzados fetichizavam o
martírio. Uma crônica lembra a história de Jakelin de Mailly, um cavaleiro da
ordem dos templários, morto ao combater muçulmanos, em 1º de maio de 1187. Seus
geitais foram cortados e preservados para que pudessem, se a divina providência
permitisse, gerar um herdeiro com valentia similar.
A
história dos movimentos milenares ensina, porém, a ler o jihadismo como parte
de uma paisagem marcada pela emergência de uma nova direita violenta – assim o
demonstram as obscenidades de Joseph Kony em Uganda, os narco-evangelistas
assassinos do México o Hindutva indiano e a Nova Direita europeia. Estas crises
surgem de choques culturais, desdobramento das maiores transformações
demográficas e econômicas da história. Abandonados pelos Estados, nestes tempos
de crises, os povos voltaram-se aos deuses.
Lutar
contra os movimentos jihadistas exige serviços de inteligência e polícias.
Requer recursos militares e respostas geo-estratégicas. Porém, o imprescindível
é uma nova política.
praveen.swami@expressindia.com
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