De
súbito, e há uns 2 dias atrás, falou-se muito quer dos dinheiros saídos nos
últimos anos para os offshores, quer das chamadas “Políticas de Justiça”
dos últimos 40 anos. Mas, uma vez mais, de forma completamente mistificatória da realidade.
António Garcia Pereira
– Jornal Tornado, opinião
Com
efeito, quanto aos offshores, trata-se de algo que era já muito conhecido,
de que apenas alguns ousavam falar mas a que praticamente ninguém, a começar
pela Comunicação Social dita de referência, queria dar qualquer atenção: é que
entre 2010 e 2015 os ricos e poderosos deste País puderam fazer tranquilamente
sair para os chamados paraísos fiscais mais de 28,9 mil milhões, 10 mil milhões
dos quais entre 2011 e 2014 sem qualquer declaração ao fisco e, logo, sem
qualquer tributação.
Ou
seja, o mesmo Estado (e o mesmo Fisco) que nesse período cortaram salários,
subsídios e pensões, complementos de reforma a trabalhadores no final das
respectivas vidas, subsídios de desemprego e de doença, bem como abonos de
família, rendimentos sociais de inserção e complementos solidários para idosos,
e que perseguiram implacavelmente os pequenos devedores com penhoras de
salários e de casas de habitação, o único imposto que baixaram foi o incidente
sobre os rendimentos do capital (IRC) e, mais que tudo isso, deixaram escapar à
tributação aquele astronómico valor.
Para
se ter uma ideia da dimensão da fraude e da aldrabice bastará dizer que, por
exemplo, em 2014, o valor dessas operações chamadas de “transfronteiras”, em
vez dos 374 milhões de euros oficialmente declarados, foi afinal de 2.806
milhões, ou seja, 10 vezes mais!
E
os indivíduos responsáveis por tudo isto – e que são fundamentalmente os mesmos
que destruíram os Estaleiros Navais de Viana do Castelo e lançaram no
desemprego centenas e centenas de trabalhadores, que venderam a TAP ao
desbarato e a liquidaram como instrumento estratégico de desenvolvimento do
País, que possibilitaram e levaram à liquidação da PT, aos buracos financeiros
do BPN, do BES, do BCP e do Banif, ao mesmo tempo que os seus administradores e
principais accionistas enchiam os bolsos de milhões e os encaminhavam para as
tais offshores – passeiam-se e pavoneiam-se impunemente por aí.
E,
no fim de tudo isto, é apenas em 2017 – quando já prescreveu o prazo da
liquidação da grande maioria dos impostos que, ainda assim, seriam devidos – é
que se vem “descobrir” que o esquema seguido em Portugal pelo Estado e pela sua
máquina fiscal é a de perseguir e triturar os alvos fáceis, a começar pelos
trabalhadores por conta de outrém, do sector público e do sector privado, e dos
pequenos contribuintes e deixar escapulir, como água por entre os dedos, as
grandes fortunas e os produtos dos grandes golpes e das grandes negociatas?!
Entretanto,
e já falando da Justiça, temos por exemplo um Tribunal Constitucional que em
2014 (através do seu famigerado acórdão nº 413/2014, aprovado por 7 votos
contra 6) considerou perfeitamente constitucional o já referido confisco dos
complementos de reforma dos reformados do Metro, consagrados há décadas na
respectiva contratação colectiva e que constituíram um dos argumentos para
persuadir ou mesmo constranger tais trabalhadores a irem para a reforma com
penalizações mais ou menos elevadas, mas já quando se tratou das subvenções
vitalícias dos políticos logo se apressou a consagrar, pelo seu acórdão nº
3/2016, que a sua retirada feriria de forma intolerável o princípio da
confiança dos cidadãos!…
E
é mesmo absolutamente espantoso – tão espantoso quanto inadmissível… – que no
agora divulgado estudo “40 anos de Políticas de Justiça em Portugal”
(coordenado entre outros pela ex-Ministra da Educação Maria de Lurdes Rodrigues
e pelo defensor das teses, já por mim aqui referidas, da análise económica do
Direito, Nuno Garoupa), pelos vistos, se escamoteie a completa inacessibilidade
à Justiça por parte do cidadão como consequência de um regime de custas
processuais escandalosamente caro, que apenas podem ser pagas pelos ricos e de
que apenas são dispensados os totalmente indigentes.
Que
se escamoteie assim que a cada um dos tais trabalhadores reformados do Metro
que queira reaver as prestações dos seus complementos de reforma, e se estas no
seu total forem, por exemplo, de 31.000€, tenha de pagar não apenas uma taxa de
Justiça inicial de 612€ como outras tantas taxas de igual valor todas as vezes
que houver a necessidade de apresentação (ou de resposta) de um incidente, de
uma reclamação ou de um recurso.
E
que corra ainda o risco de, se o processo após 3 instâncias (Tribunal do
Trabalho, Tribunal da Relação e Supremo Tribunal de Justiça) e outras tantas
taxas de Justiça, e se ele recorrer para o Tribunal Constitucional e este não
lhe der razão, ter de pagar mais 20 unidades de conta de 102€ cada, ou seja,
2.040€.
O
que tudo pode significar que para o mesmo reformado, e com o chamado regime de
“custas de parte” (suportando as suas taxas, as da parte contrária e metade do
total), se não vir judicialmente reconhecida a razão que lhe assiste, poderá,
ainda por cima, ter de pagar cerca de 8.000€ de custas no total?
E
como é possível que no mesmo estudo se passe igualmente por cima quer do total
bloqueamento de Tribunais como os Administrativos e os do Comércio com completa
aniquilação prática dos direitos dos cidadãos (desde beneficiários da Segurança
Social por esta maltratados a trabalhadores de empresas insolventes com
salários em atraso), quer do mecanismo completamente arbitrário, insindicado e
perigoso em que se transformou o processo penal em Portugal?
Referem
os autores do dito “estudo” que, por exemplo, agora não há Tribunais especiais,
como era o caso dos tristemente célebres Tribunais Plenários de antes do 25 de
Abril que julgavam os presos políticos.
É
verdade. Mas certo é que temos hoje o princípio constitucional do Juiz natural
(que impõe que não possa haver nem Tribunais especiais, nem atribuições de
processo específico a este ou àquele juiz) a ser violentado todos os dias com
os poderes que o Conselho Superior da Magistratura e os Presidentes dos
Tribunais se arrogam ter para afectar certos processos a certos e determinados
juízes.
Não
temos também, é certo, a tortura praticada livremente pela PIDE durante os 6
meses de prisão sem culpa formada que a lei admitia. Mas temos hoje a
possibilidade legal de um cidadão estar preso durante 12 meses sem que contra
ele seja deduzida qualquer acusação.
Não
temos a censura oficial do lápis azul do fascismo mas temos o princípio
constitucional da presunção de inocência a ser liquidado todos os dias com tão
cirúrgicas como sempre impunes violações do segredo de Justiça e o julgamento e
sentenciamento de arguidos em praça pública sem qualquer direito de defesa
efectiva.
Temos,
em suma, um órgão de soberania (os Tribunais) cujos titulares (os juízes) cada
vez têm menos de fundamentar as respectivas decisões e o chamado duplo grau de
jurisdição (a existência de recurso para um Tribunal Superior) é cada vez mais
inexistente (chegando-se ao ponto de, nos termos do artº 663º, nº 5 do Código
de Processo Civil, os juízes do Tribunal da Relação se poderem limitar a
remeter para anteriores acórdãos, juntando cópia dos mesmos e não procedendo a
qualquer análise das questões e problemas, de facto e de direito, que lhes são
colocados).
Como
temos o Povo, em nome de quem exercem poderes soberanos, que não faz a menor
ideia e muito menos tem qualquer poder de intervenção no modo como são formados
e como são avaliados (para mais, quando hoje a tendência largamente dominante é
para, em nome da “eficiência”, os medir pela estatística dos processos
“aviados”) os mesmos juízes.
Porventura
o único ponto em que o estudo acerta no alvo é naquele em que se refere
explicitamente que “o poder judicial é também político e aos seus agentes não
foi conferida qualquer bênção que os coloque acima dos demais cidadãos”.
Mas
não retirar daí as conclusões e medidas necessárias para que a Justiça seja de
facto aquilo que ela deve ser – um direito constitucional fundamental de todos
os cidadãos – é de todo inconsequente.
E
tais medidas têm de passar pela drástica diminuição das custas judiciais e pela
gratuitidade da jurisdição laboral, pelo fim do regime de custas específico do
Tribunal Constitucional, pela fiscalização do funcionamento do Centro de
Estudos Judiciários e pela constituição dos Conselhos das Magistraturas
formados por cidadãos comuns, idóneos e independentes, pela fiscalização jurisdicional
de todos os actos do Ministério Público, mesmo na fase do inquérito, e pelo
respeito escrupuloso dos princípios estruturantes de um sistema judicial digno
de um Estado de Direito (a fundamentação real de todas as decisões, o efectivo
duplo grau de jurisdição, a publicidade das audiências, o princípio do juiz
natural).
Porém,
disso já os “especialistas” não querem saber…
Mas
os cidadãos podem, e devem, querer!
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