O
secretário de Estado quer-nos convencer de algo muito mais grave: é de que não
deu por ela que lhe faltavam os números do dinheiro que ia para os offshores.
José
Pacheco Pereira – Público, opinião
A
mentira, seja sob forma directa ou rebuscada, em matérias públicas é
inaceitável. Sobre isso não vale a pena dizer mais nada. Os governantes não tem
obrigação de dizer a verdade — sim, há razões de Estado que podem implicar a
mentira — mas nenhuma cobre os casos recentes. Mentir pode ser legítimo, por
exemplo, para esconder, até ao momento do seu anúncio, uma desvalorização da
moeda, ou quando está em curso uma qualquer operação com riscos para as pessoas
ou para o Estado, sensível à revelação irresponsável da verdade. São excepções,
mesmo muito excepcionais, e precisam de ser muito explicadas a posteriori,
quando finalmente se pode saber a verdade sem custos. Há matérias delicadas
cobertas pelo segredo do Estado que justificam que um governante, quando interrogado
directamente, tenha que mentir. Não deixa de ser mentira no momento em que é
proferida, mas trata-se de uma mentira instrumental, destinada a proteger um
bem maior. É um estatuto que pode ser alvo de abuso, e é-o muitas vezes, mas os
limites éticos do dilema verdade/mentira não se aplicam neste tipo de
“sombras”.
Mas
não é, de todo, o caso da história dos SMS, nem do misterioso caso das
estatísticas dos offshores, que nada justifica serem cobertos por qualquer
“manto diáfano” de mentiras, meias-mentiras, sugestão de mentiras e omissões da
verdade. A cabeça de um ministro ou a honra de há muito perdida de um
ex-governo estão em causa? Não mentissem, nem nos enganassem. Mas, dito isto,
também é preciso ter muito cuidado, para que a mediatização medíocre das redes
sociais e de alguma imprensa não confunda questões sérias com outras de menor
gravidade. E o caso Centeno e os milhões dos offshores não são
comparáveis em importância, sendo que toda a gente já percebeu o que se passou
no primeiro caso, e ainda muito pouco se percebeu do segundo.
O
que sabemos sobre o dinheiro saído para os offshores durante a
governação PSD-CDS? Sabemos que foi muito, muitos milhares de milhões de euros,
de que os dez mil milhões de que se fala agora são apenas uma parte. Sabemos
que uma parte saiu legalmente e também sabemos, por vários processos em curso,
que outra parte saiu ilegalmente. Vamos deixar para já a parte ilegal, de
dinheiro de pagamento de subornos, de corrupção, de negócios à margem da lei, e
vamos apenas falar do que saiu legalmente, e nessa parte podemos apenas
ficar-nos por esta magra fatia de dez milhares de milhões que não foram
devidamente incluídos nas estatísticas e sobre os quais não sabemos ainda até
que ponto os procedimentos de verificação habituais pelo fisco se realizaram,
ou seja, se são resultado de actividades legais sem mácula fiscal. Por que é
que isso aconteceu e o que é que isso significa?
Vamos
seguir a mais benévola das hipóteses, de que tudo estava legal, e que apenas
não se fez o registo estatístico. Comecemos por um ponto prévio que é verdade
para todas as histórias que envolvem offshores. Já ouvi dezenas de
explicações esforçadas para justificar por que razão as pessoas e as empresas
colocam o dinheiro nos offshores, desde a fuga ao conhecimento do
património nos divórcios milionários até à protecção de património face a
credores, aos pagamentos a jogadores de futebol, passando pelas necessidades de
pagamentos no comércio internacional. Tudo é coberto por dois mantos: um é de
que se trata de processos legais, por isso incontestáveis pela crítica; o outro
é que, havendo paraísos fiscais em qualquer outra parte exótica do mundo, não é
possível acabar com eles em qualquer outro sítio. Mas isso não implica que se
considere normal o uso de offshores e, numa sociedade em que os
governantes se indignam com os direitos “adquiridos” dos mais fracos, tenham
uma soberana indiferença face a práticas dos mais ricos que roçam a ilegalidade
e que prejudicam, e não pouco, a riqueza do país. E quando isto se passa em
tempos em que os governantes fazem um discurso de austeridade contra os que não
podem fugir aos impostos e aos cortes, e são indiferentes às práticas dos mais
ricos de tirar dinheiro, riqueza, do seu país, revolta. Este é o pano de fundo em
que podemos discutir esta questão, e aplica-se como uma luva ao Governo
PSD-CDS, onde o ataque aos mais fracos foi a regra, e a complacência com os
mais poderosos foi também a regra.
No
fundo, no fundo, o núcleo duro de ideias sobre a sociedade e a economia do
Governo Passos-Portas foi que a recuperação do país passava pelo aumento da
riqueza dos mais ricos, que traria por arrasto uma melhoria das condições de
vida dos mais pobres. Era em cima que deveria haver “liberdade”, enquanto em
baixo deveria haver “ajustamento” e cortes, até porque os de baixo já estavam
mais acima do que deviam e tinham que ser postos na ordem e devolvidos “às suas
posses habituais”. Da legislação laboral ao “ajustamento”, este era o programa.
Dêem as voltas que derem, esta era a concepção e ainda o é, como se vê na
questão do salário mínimo. Qualquer ideia, aliás na base do ideário
social-democrata, de que o Estado deveria garantir um equilíbrio social, era e
é tida como uma violação das regras da “economia”, com os de baixo a quererem
mais do que a “economia” lhes pode dar. Em cima, não há essas restrições e, por
isso, a indiferença face ao que acontece com os offshores é
completamente natural.
Este
é, insisto, o pano de fundo da interpretação mais benévola da falta de dados
sobre os offshores: que saíssem dezenas de milhares de euros do país, não
interessava aos governantes porque não estava no centro das suas preocupações,
como estava cortar reformas e salários e levar o fisco até aos cabeleireiros e
aos biscates. Tratava-se de uma prática normal da “economia”. Mas se esta é a
interpretação mais benévola, não é a mais sensata, como se vê pelas explicações
atabalhoadas que governantes do tempo do PSD-CDS têm vindo a dar sobre o
que aconteceu. E aqui é que, como no caso de Centeno, entendo que é uma afronta
para os portugueses tomá-los por parvos, só que neste caso num assunto muito
mais grave.
Desde
Passos Coelho, furioso e malcriado na Assembleia, até ao passa-culpas do anterior
secretário de Estado dos Assuntos Fiscais Paulo Núncio, até ao silêncio da
ex-ministra das Finanças que acha que não é nada com ela, todos estão a
tomar-nos por parvos. Afinal, a culpa foi dos serviços que não fizeram a
estatística devida, ou dos procedimentos informáticos, que, pelos vistos, foram
modernizados só para um dos lados do escalão de rendimentos, mas que parecem
funcionar muito mal no topo dos rendimentos, porque, tanto quanto eu saiba, não
foram os funcionários públicos, nem os reformados, nem os empregados do
comércio, nem os operários, nem os enfermeiros, nem os polícias, que colocaram
o dinheiro em offshores. Aliás, já não é a primeira vez que este tipo de
implausibilidades acontecem nas finanças do Governo PSD-CDS, como foi o caso da
“lista VIP”, já muito esquecido.
Mas
há pior: o secretário de Estado quer-nos convencer de algo muito mais grave: é
de que não deu por ela que lhe faltavam os números do dinheiro que ia para os offshores.
Das duas, uma: ou foi grossa negligência, ou preferiu olhar para o lado, visto
que os números eram incómodos para o Governo. Mas, mesmo que seja assim, de
novo a mera sensatez obriga-nos a considerar como absolutamente implausível que
ele, responsável pelo fisco, nunca se tenha perguntado, mesmo numa conversa
casual: “Olhe lá, senhor director-geral, quanto dinheiro está a sair do país
para os offshores?”. E Passos e a ministra também nunca sentiram sequer
curiosidade sobre esse aspecto crucial da nossa economia, para verificarem que,
afinal, não havia a estatística?
Presumir
que tenha sido assim é tomar-nos por parvos, insisto. E eu não gosto.
Sem comentários:
Enviar um comentário