ESCOLHAS
QUE NÃO PODEMOS EVITAR
Com
o governo Temer em deliquescência e a coalizão golpista em farrapos, a questão
posta pela conjuntura a todos os atores é a da sucessão presidencial.
Sebastião
Velasco e Cruz - Carta Maior
O
texto abaixo foi discutido na primeira palestra das Jornadas 2017, realizada no
Auditório Carta Maior, e que você pode conferir no podcast AQUI.
Do
que se trata?
Para
começo de conversa, um esclarecimento sobre o título propositadamente equívoco
deste pequeno ensaio.
Com
efeito, ordem e desordem são substantivos abstratos. Para dar conteúdo concreto
à reflexão sobre eles precisamos adjetiva-los.
Ordem
ou desordem? A que dimensão da realidade a pergunta se refere? Ordem de quê?
Ordem em que domínio? Nesse ou naquele país? Nessa ou naquela cidade? Ou na
mente desse ou daquele dentre nós?
Valendo-se
talvez de indícios prévios sobre o autor deste texto, o leitor poderia dar um
palpite.
--
Ordem internacional, naturalmente.
Ele
não estaria errado. Mas nem por isso teria matado o problema.
Primeiro,
porque na literatura de relações internacionais há muitas e contraditórias noções
sobre o significado da expressão em causa. Não caberia considera-las
separadamente, mas não podemos avançar sem levar em conta sua diversidade.
Segundo,
porque alguns dos fenômenos que mais evidentemente têm posto em xeque a “ordem
internacional” no pós-Guerra Fria – seja qual for o sentido preciso que
emprestemos à noção – tem surgido não tanto na dimensão indicada pelo prefixo
“inter” (as relações entre as unidades do sistema), mas na esfera nacional,
vale dizer, no âmbito das políticas domésticas dos Estados concernidos.
Algumas
referências rápidas a acontecimentos recentes serão suficientes para ilustrar a
afirmativa.
A
crise que explodiu na Ucrânia no final de 2013, intensificou-se logo a seguir,
com a intervenção política aberta de atores “externos” – os Estados Unidos e a
União Europeia e, mais discretamente, a Rússia; forçou os atores institucionais
a celebrarem um acordo, afiançado por mediadores internacionais -- mas
imediatamente anulado pela intransigência de grupos radicais, com apoio velado
dos Estados; e culminou com o plebiscito na Crimeia, que preparou o terreno
para a secessão desta e sua reincorporação como parte do território russo,
abrindo uma crise no relacionamento deste país com o “Ocidente”, elemento chave
na conjuntura internacional ainda hoje.
O
golpe militar fracassado na Turquia, em julho de 2016. A denúncia feita pelo
presidente Erdogan de que o complô teria sido montado sob a direção de um
religioso exilado nos Estados Unidos; a exigência de sua extradição; a
amplitude e a severidade das medidas repressivas que se abateram sobre os
suspeitos de participação no malogrado intento – as circunstâncias do golpe e a
reação por ele desencadeada criaram o contexto para a reaproximação entre a
Rússia e a Turquia, ao tempo em que fizeram escalar as tensões entre este país
e seus aliados na OTAN.
O
Brexit. O resultado -- temido mas inesperado -- do plebiscito na Grã-Bretanha
desmentiu o pressuposto da irreversibilidade do processo de integração
europeia, abriu o caminho para a contestação nacionalista em vários outros
países, mas também removeu do processo decisório europeu um ator de primeira
grandeza que sempre operou como aliado preferencial dos Estados Unidos,
procurador de seus interesses na Europa e freio nas tentativas de
aprofundamento da integração desta, com a ampliação decorrente de seus graus de
autonomia.
A
eleição presidencial de 2016 nos Estados Unidos. O governo dela
resultante mal completou um mês, e ainda é cedo para avaliar quão heterodoxas
serão as suas políticas. Mas a vitória de um outsider que se
impôs a todos – a começar pelo establishment de seu próprio partido – como
candidato “antissistema”, e sua disposição de reiterar os compromissos
assumidos durante a campanha, depois de sua investidura, tem provocado
consternação e disseminado, em todos os quadrantes, o sentimento de risco.
Particularmente preocupante para muitos é a ênfase com que Trump rejeita alguns
dos princípios basilares da política exterior dos Estados Unidos. Voltarei a
esse ponto mais adiante, mas não é precipitado tomar esse fato como sinal de
crise da ordem criada sob sua batuta.
Retenhamos
esse resultado parcial. A ordem internacional tem sido abalada por
desenvolvimentos que se dão no campo da política “interna” de Estados
específicos. Esta constatação não nos leva longe, mas fornece um critério, um
princípio analítico. Ao refletir sobre a ordem internacional devemos rejeitar
as noções que pressupõem uma segmentação rígida entre o nacional e o
internacional, a política doméstica e a esfera das relações interestatatais. As
fronteiras que separam esses dois planos não são fictícias. Elas existem e se
manifestam brutalmente em muitos domínios, como a política migratória, por
exemplo. Mas não são nunca dadas de uma vez por todas. Elas são produzidas e
reproduzidas através da prática dos agentes, e seu grau de efetividade varia significativamente
segundo as esferas sociais consideradas, e ao longo do tempo.
Mas
não é só isso. A ambiguidade marca também o segundo componente do título. “Onde
estamos?” “Para onde vamos?” Quem é o sujeito oculto da oração?
A
resposta à pergunta anterior já nos dá uma indicação para esclarecer a dúvida.
Sim,
porque o sistema internacional prescinde de um “nós” inclusivo, uma comunidade
abrangente capaz de cumprir o papel do sujeito que procuramos. A linguagem
eufemística da diplomacia consagra termos que parecem negar essa assertiva:
“comunidade internacional”, “interesses da humanidade”, etc. Mas essas noções
são enganosas. O próprio do sistema internacional é a anarquia, vale dizer, a
ausência de um corpo político dotado de mecanismos centralizados de tomada de
decisão e meios coercitivos para torna-las efetivas.
Quem
dispõe desses atributos -- ao menos idealmente – são as unidades desse sistema,
os Estados nacionais. Assim, quando lançamos a pergunta -- onde estamos? Para
onde vamos? -- o sujeito interpelado somos nós, brasileiras e brasileiros,
enquanto coletividade com destino compartilhado, enquanto povo e nação.
O
que nos leva à terceira pergunta. Quem não pode evitar as escolhas aludidas no
título do ensaio? Os brasileiros e brasileiras? Todos “nós”?
Não,
porque comunidade não implica consenso e o Brasil apresenta-se hoje como um
país cindido, como poucas vezes em seu passado. O “nós” implícito na frase não
inclui os promotores do golpe de estado que derrubou o governo democraticamente
eleito de Dilma Roussef, nem os grupos que foram ruidosamente às ruas movidos
por esse mesmo propósito. Ele corresponde ao conjunto daqueles que são
agredidos pelas políticas do governo ilegítimo de turno, e que resistem a elas
-- ou podem vir a fazê-lo se devidamente esclarecidos.
Estabelecidas
essas preliminares, vamos ao desafio.
1)
Concerto e desconcerto do mundo.
Ordem,
ou desordem? A rigor, nem uma coisa, nem outra. Uma combinação de elementos
desses dois estados, o que sugere estarmos diante de uma ordem internacional em
crise.
Vale
a pena fazer um pequeno recuo. Essa ordem foi montada no pós-Guerra Fria, sob a
hegemonia inconteste dos Estados Unidos. Sua face mais conhecida é a
globalização econômica: remoção de barreiras ao comércio de bens e serviços;
livre movimentação dos capitais; mercantilização sem peias da vida social e
predomínio da lógica financeira em todos seus domínios; privatização,
desregulamentação, redução do papel do Estado, como planejador
estratégico e produtor de serviços públicos; ampliação e reforço dos direitos
de propriedade; precarização das condições de trabalho e rebaixamento dos
direitos sociais das classes despossuídas.
Assim
entendido, o termo globalização econômica não denota um estado de coisas
realmente existente, mas um discurso distópico, que passa a impregnar a
realidade, entretanto, ao se materializar em leis e regulamentos e ao se
converter em programa institucionalizado de governos e organizações internacionais,
como a OMC e o FMI.
Globalização,
pois.
Mas
a caracterização dessa ordem ficaria incompleta se não reservasse uma palavra a
seu complemento espiritual, seu concomitante valorativo: a consagração do tema
dos direitos humanos como matéria de legislação internacional, e a
transformação de um modelo limitado de democracia – democracia de baixa
intensidade, já se disse – em requisito à aceitação de qualquer país como
membro pleno da comunidade internacional reconstituída.
Na
mesma linha, cabe destacar ainda, por motivos óbvios, a afirmação da luta
contra as práticas corruptas como imperativo moral e a gestação de um regime
internacional para lidar com o problema. Este -- como os demais regimes
internacionais, de resto -- foi erigido por inspiração dos Estados Unidos, os
quais, não obstante, recusam-se a aceitar suas disciplinas.
Tal
fato, porém, não os inibe de reivindicar, em tom altissonante, a defesa dos
valores expressos mais ou menos fielmente nos referidos regimes, e de proclamar
o direito – digo, a obrigação – de intervir econômica, política e militarmente
em países selecionados, entre aqueles que, por uma razão ou outra, não os
respeitam.
Intervenção
-- sob distintas formas. A caracterização que fazemos seria de todo
insuficiente se não apontasse os dois pilares em que a ordem em questão se
funda: a superioridade econômica das potências ocidentais, e a supremacia
militar incontrastável dos Estados Unidos.
A
crise presente advém da constatação de que esses dois fundamentos não são tão
firmes.
O
pilar econômico começa a ser minado pelo dinamismo pujante de novos polos de
acumulação na Ásia, que se integram gostosamente na economia liberal formatada
nas últimas décadas, mas praticam um tipo de capitalismo próprio, marcado por
forte intervenção estatal na economia. À medida que se expandem e ganham maior
confiança em si mesmos, esses centros – penso sobretudo na China, mas também na
Índia – passam a disputar com as potências ocidentais o poder de definir regras
para a economia internacional, favorecendo naturalmente aquelas mais
condizentes com suas características.
Mas
o elemento principal na fragilização do pilar econômico daquela ordem são as
contradições internas do capitalismo com dominância financeira, que vêm se
traduzindo, desde o final do século passado, em crises econômicas recorrentes e
no mal- estar social continuado, origem de dois dos deslocamentos políticos
referidos no início deste artigo (o Brexit e o resultado das eleições nos
Estados Unidos).
No
tocante ao segundo pilar, os fatores decisivos são, de um lado, a difusão do
poder militar e a vulnerabilidade dos aparatos bélicos ocidentais às formas
assimétricas de guerra (a guerrilha e o terrorismo); de outro, a disposição
cada vez mais pronunciada da Rússia – relativamente débil no plano econômico,
mas extremamente poderosa no terreno militar – de afirmar-se como grande
potência, ainda que para tal seja necessário violar frontalmente os interditos
inerentes à ordem construída sob a direção dos Estados Unidos.
A
eleição de Donald Trump expressa essas tensões todas e as potencializa.
Com
efeito, sua vitória não veio como um raio em céu azul. Desde o penúltimo último
ano da década passada, como resposta à eleição de Obama e às políticas adotadas
por seu governo para conter o aprofundamento da recessão provocada pela crise
financeira de 2008 e resgatar alguns dos setores econômicos e sociais mais
severamente atingidos por ela, assiste-se nos Estados Unidos à emergência de um
movimento social de forte teor conservador, mas com clara orientação
antissistema. Falo naturalmente do Tea Party. Não caberia discorrer sobre
o tema aqui. Para os propósitos do argumento esboçado aqui registrar que esse
movimento prenuncia em muitos aspectos a trajetória surpreendente de Trump –
nos temas de sua campanha, na exterioridade em relação à máquina do partido
Republicano e na desconfiança em relação aos seus dirigentes tradicionais. A
retórica de Trump não se identifica perfeitamente com a desse movimento, embora
incorpore muito de seus temas mais caros. Agora, sem essa história de
mobilização de base prévia seria impossível imaginar o êxito -- contra tudo e
contra todos -- do candidato improvável que era o empresário Donald Trump
quando se apresentou para disputar as primárias do Partido Republicano, com
previsões sobre os resultados delas que foram tomadas universalmente como
bravatas ridículas.
Expressão
refratada das tensões antes aludidas, a eleição de Trump as desloca a um novo
patamar. Faz isso pelo teor de sua fala, pelo conteúdo das medidas que toma de
imediato, e pelas reações intensas que ambas despertam. É desnecessário citar
os fatos de seu primeiro mês e meio de governo, que tem dado farto material ao
jornalismo pátrio, impresso e televisivo. Limito-me a registrar duas
passagens de seu discurso de 28 de fevereiro sobre o Estado da União, tido por
muitos como excepcionalmente bem-comportado para o padrão do orador.
A
primeira delas é a referência negativa que faz ao desperdício causado pelas
intervenções militares desastradas no Oriente Médio, que daria para cobrir duas
ou três vezes o custo financeiro de seu plano de reconstrução da
infraestrutura.
A
outra, quando retoma vários temas de campanha cobertos pelo lema “America First”,
e complementa:
“Vamos
respeitar as instituições históricas, mas vamos respeitar também os direitos
soberanos das nações”.
As
nações livres são o melhor veículo para a expressão da vontade do povo – e a
América respeita o direito de todas as nações de traçar o seu próprio caminho.
Minha função não é representar o mundo. Minha função é representar os Estados
Unidos da América.”
Em
ambas ele rompe com o consenso bipartidário que informou a política externa da
superpotência desde o final da Guerra Fria e, nesse sentido, presidiu a
construção da ordem internacional criada sob sua égide.
Discursos
desempenham um papel não desprezível na vida política, mas não podem ser
tomados ao pé da letra. Quando Trump fala em respeitar os direitos soberanos
das nações, ele se distancia do consenso liberal-internacionalista e expressa
sem timidez sua desconfiança em relação às organizações internacionais. Essa
atitude ganharia contornos mais preciso no dia seguinte, com a divulgação do
documento que expõe a posição oficial de seu governo no tocante à política
comercial. Ali está proclamado com toda clareza o primado da lei nacional sobre
os compromissos assumidos em tratados internacionais, e manifestada com ênfase
a disposição de empregar os meios previstos na legislação do país para fazer
valer os interesses nacionais na área do comércio. Ou seja, a disposição de
fazer uso desinibido do poder – em suas múltiplas dimensões – para alcançar os
objetivos fixados por sua política.
As
outras nações que façam o mesmo, e todas (se tiverem juízo) coexistirão em paz,
livres, soberanas e iguais -- embora uma mais igual que as restantes.
O
que me conduz à segunda das questões levantadas no início deste artigo.
2)
Brasil errado.
Onde
estamos? Para onde vamos?
Não
resisto à tentação de dar uma resposta seca à pergunta: estamos no Brasil errado,
evidentemente.
Ao
proceder assim, tomo de empréstimo, a Martins de Almeida, o título de seu
brilhante opúsculo -- publicado em 1932, mas redigido antes da eclosão do
levante que marcou o governo provisório de Vargas.
É
impressionante que, oitenta e cinco anos depois, possamos usar o mesmo mote
para falar de nosso país.
Não
haveria espaço suficiente se quiséssemos inventariar o que há de errado no
Brasil em que vivemos. Mas não seria preciso. Essas mazelas não se somam,
elas se articulam. Mais importante que a enumeração de cada uma delas é a
identificação de seus nexos significativos.
Alguns
elementos do quadro são antigos e deitam suas raízes nem nosso passado
colonial. São esses que Manoel Bomfim – pensador poderoso, mas relativamente
pouco conhecido – tinha em mente ao escrever há mais de cem anos atrás o seu
livro genial América Latina. Males de Origem: uma colonização predatória,
assentada na extorsão direta do sobretrabalho, garantida pelo exercício
cotidiano da violência física. A referência aqui é a nosso legado
escravista, vivo na brutalidade inimaginável que continua marcando a relação
dos órgãos repressivos do Estado com os segmentos destituídos população, e no
desprezo acintoso das autoproclamadas elites – endinheiradas, porém incultas --
face aos membros das classes populares que não enxergam o seu lugar e insistem
em frequentar seus espaços sociais exclusivos.
Mas
esses elementos duros de nossa realidade só se reproduzem permanentemente pela
maneira como se combinam com outros tantos, que variam consideravelmente ao
longo do tempo. É sob esse ângulo que podemos aquilatar a importância das
rupturas institucionais de que a nossa história é tão rica.
1954,
1964, 1968... 2016. Estamos imersos numa delas -- que compartilha muitos
traços com as precedentes, mas se distingue nitidamente por algumas
características.
A
mais evidente delas consiste na radicalidade do programa que a inspira. Ele
estava desenhado desde o início da crise – vale dizer, ainda em 2014, logo
depois de anunciada a vitória de Dilma Rousseff, que representou
para a direita demo-tucana a experiência amarga da quarta derrota sucessiva
-- e vem se tornando cada vez mais claro aos olhos de todos à
medida que o governo usurpador de Michel Temer o aplica.
Em
sua vertente econômica ele prevê uma política drástica de corte de gastos,
conjugada a um programa de privatização sem limites, o qual nas condições
presentes significa entregar ativos preciosos a investidores internacionais, a
preços de banana. No longo prazo, ele acenava inicialmente com a miragem da
integração nas cadeias produtivas globais e advogava a adesão subordinada aos
mega-acordos comerciais liderados pelos Estados Unidos. Depois do terremoto
causado pela eleição de Trump, essa parte do programa ficou prejudicada. Mas
isso não incomoda muito. “No longo prazo todos estaremos mortos”, os arquitetos
do golpe dizem com Keynes, mesmo sem o terem lido. O que importa é estarmos no
volante na próxima volta.
Em
sua face social, esse projeto implica o avanço na precarização do trabalho e a
desestabilização dos programas sociais criados nas últimas décadas -- pela
redução drástica de seu alcance, pelo corte de verbas, e pela sujeição desses
programas a condições de enorme incerteza. A fórmula, neste particular, combina
quebra de vinculações constitucionais, aplicação de critérios de gestão empresarial
incompatíveis com a natureza desses programas, e congelamento a perder de vista
do gasto público (a PEC 55). Com essa regra o processo orçamentário se
transforma em um jogo de soma zero que condena os mais fracos a se contentar
com migalhas e agradecer, ainda, pela dádiva recebida.
Em
sua dimensão internacional o programa Temer abandona as veleidades autonomistas
que marcaram a política externa brasileira no período Lula/Dilma e busca uma
estratégia bem-comportada de alinhamento com os Estados Unidos -- tarefa que
tem se revelado espinhosa, pelos azares da vida política nacional e pela
inflexão em curso no gigante do Norte.
Falei
em programa de Temer, mas a expressão é enganosa. Esse programa não foi
elaborado por ele, nem por seus conselheiros próximos. Essa plataforma de
governo expressa os interesses do grande capital -- internacional e
local -- e foi articulado por seus representantes legítimos.
Sua
radicalidade se torna mais evidente quando nos apartamos do despachante e
ouvimos diretamente aqueles para quem presta serviço.
Como
não precisam cortejar o distinto público, estes não medem palavras. A deposição
de Dilma Rousseff não foi feita para possibilitar a correção de rumo necessária
à solução de problemas tópicos. O objetivo perseguido com o golpe é a uma
mudança constitucional no sentido mais forte do termo. Trata-se de alterar a
matriz sócio-política do país, refundar o Brasil, como nação burguesa
plenamente assumida, livre de culpa e desembaraçada de quimeras igualitaristas
de justiça social.
Nesse
sentido, o programa do golpe institucional de 2016 está mais próximo do
fundamentalismo de mercado que desgraçou a Argentina nos anos 1970s e 1990 do
que do desenvolvimentismo conservador que animava os militares brasileiros
quando assumiram o poder em 1964.
A
segunda particularidade da ruptura institucional presente tem a ver com os
atores que ela mobiliza. Como no passado, o papel principal é desempenhado pela
liga grande capital (com predominância rentista) e grande mídia, com seus
porta-vozes no campo político-partidário. Podemos toma-la como uma constante em
nossa história golpista.
Agora,
alguns personagens saem de cena – ou se mantém discretamente nos bastidores --
enquanto outros invadem o palco com ímpeto irrefreável.
Entre
os primeiros, de longe, o mais importante é o estamento militar. Protagonistas
dos eventos que inauguraram nossa história republicana, os militares
mantiveram-se no epicentro de todas as crises políticas vividas no Brasil no
século passado, com a exceção notável daquela que culminou no impeachment de
Collor de Mello.
Mas
esse episódio foi muito curto e desenrolou-se sob um fundo consensual – logo
nas primeiras semanas depois das denúncias que o atingiram, a grande imprensa
já pedia a renúncia de Collor em prol da preservação de suas reformas. A
deposição de Dilma Rousseff é outra história. Ele se dá quase dois anos depois
de lançado o grito de guerra da oposição, mal proclamados os resultados das
urnas; evolve no contexto de uma crise econômica profunda, sem par no Brasil
moderno; é marcada por tensões inéditas nas relações interinstitucionais, e
polariza o país com uma intensidade raramente vista em nossa história.
Mesmo
na presença desses elementos -- todos muito preocupantes na ótica militar
– e mesmo vendo alguns de seus projetos mais caros serem mortalmente atingidos
pelos desdobramentos da crise nacional, a caserna mantém-se silente. Não seria
o caso indagar aqui as razões desse fato, e menos ainda o de arriscar prognósticos.
Mas não há como ignorá-lo.
Quanto
aos segundos, o destaque vai para segmentos do Judiciário e do Ministério
Público Federal.
O
protagonismo do Judiciário – em particular do seu órgão superior – na crise não
surpreende, tendo em vista a tendência de judicialização dos conflitos
políticos e sociais, que o Brasil compartilha com muitos outros países e que
tem dado azo a uma literatura profusa, se bem que muito desigual. O que chama a
atenção em nosso caso é a consequência previsível desse processo, quando
exacerbado: a politização da Justiça, com o seu corolário, a perda crescente de
autonomia institucional. Vimos isso em inúmeras decisões do STF – contestáveis
e publicamente contestadas --; no comportamento extravagante de alguns de seus
membros, que violam as regras de decoro inerentes ao cargo exercido, tomando
atitudes mais apropriadas a políticos de carreira ou agitadores de massa;
voltamos a ver ainda agora com o espetáculo acintosamente concluído com a
nomeação de Alexandre Moraes para a cadeira vacante desde a morte por demais
estranha de Teori Zavaski.
A
atuação do Judiciário nas crises políticas brasileiras não é novidade, e o
papel nelas desempenhado pode ser visto tanto pela ação como pela omissão dos
juízes, bem como pelas invenções ou contorcionismos na aplicação da
constituição e das leis. Mas a diferença das crises anteriores com a crise
atual é a de que naquelas os juízes atuaram como coadjuvantes e agora passaram
a atuar como protagonistas.
Nas
crises políticas desde a Revolução de 1930, os juízes, quase sem exceção,
mantinham seu apoio ao governo mas assumiam uma posição de reserva e
distanciamento em relação aos eventos políticos em curso. Atuavam de forma
reativa e tópica, esperando a formação de uma coalizão política majoritária,
que receberia ao final o apoio da maioria dos juízes, a começar pelos seus
dirigentes institucionais.
Na
atualidade, e de forma acentuada a partir do julgamento da AP 470 no STF, os
juízes – ou, pelo menos uma parcela deles – assumem um protagonismo que provoca
e acentua os antagonismos entre as forças políticas. Mostram explicitamente
suas preferências e alianças políticas (pois de forma implícita sempre o foram)
e oferecem aos políticos não só linhas de ação alternativas às modalidades
convencionais da disputa política (nas eleições, na opinião pública, no
congresso e executivo), mas elaboram estratégias de alcance mais amplo, tomam
iniciativas por sua própria conta ou coordenam suas ações com as das lideranças
políticas.
Ao
passarem de coadjuvantes a protagonistas, os juízes abandonam completamente sua
posição institucional de terceiros imparciais, seu papel de intérpretes da
regra ordenadora das relações políticas, de árbitros ou moderadores dos
conflitos políticos, de portadores de representações e recursos de reserva para
o apoio da coalizão que se formar durante o conflito. Como protagonistas, serão
aliados, integrantes de uma das partes da crise – as forças da direita golpista
– e o seu destino será selado pelo desenlace da crise.
A
questão do Ministério Público é muito mais complicada. O ponto de partida para
analisa-la está contida nesta passagem, extraída de um artigo publicado algum
tempo atrás pela revista da Fundação Escola Superior do Ministério Público do
Distrito Federal. Comentando assertiva de jurista espanhol que apresenta
o caso brasileiro como exemplo mais acabado de “Ministerio Público, como órgano
del Estado, con entidad propia e independiente”, a autora do estudo observa:
“muito
mais longe poderia ter ido o jurista ibérico se tivesse considerado o
posicionamento da Constituição Brasileira de 1988 no tocante à instituição em
pauta. ...Nota-se, pois, que o ordenamento jurídico pátrio não seguiu a
tendência de outras Constituições que incluem o Ministério Público dentro da
esfera de um dos três Poderes.”
Esse
o dado essencial: o Ministério Público brasileiro goza de uma autonomia ímpar,
o que a permite a autora do estudo citado apresenta-lo como “exemplo aos
constitucionalistas contemporâneos”, sem deixar de insistir na necessidade da
luta por poderes adicionais.
Esse
estado de coisas é resultado de um processo complexo, cujos contornos estão bem
traçados em alguns estudos especializados. O elemento essencial da
história que eles nos contam é a integração do Ministério Público na frente
democrática que presidiu o fim do regime autoritário. Na Constituinte, a
aliança entre o Ministério Público e a ala à esquerda dessa frente está
claramente expressa na distribuição dos votos na Subcomissão do Poder
Judiciário – presidida, não por acaso, pelo deputado do PT, Plínio de Arruda
Sampaio -- e nas votações seguintes – na Comissão de Sistematização e no
Plenário da Assembleia. O cotejo dos textos aprovados em cada uma dessas
instâncias mostra o peso do bloco conservador na atenuação das conquistas
obtidas inicialmente pela Ministério Público. Não surpreende, pois, que ao
fazer um balanço da batalha da Constituinte um membro destacado da corporação
tenha qualificado de “tímidos” os avanços alcançados, insistindo na necessidade
de abolir a nomeação dos Procuradores Gerais -- da República e dos estados --
pelos chefes dos Executivos respectivos, como requisito para garantir a
independência e a autonomia do órgão.
Na
hierarquia dos temas que contempla – ênfase nos direitos difusos – nas
referências que mobiliza, e em sua retórica o texto em causa ilustra à
perfeição os resultados das análises antes citadas, como se pode ver na
passagem abaixo:
“...
sobreleva-se o papel decisivo que o Ministério Público deve cumprir como
instituição constitucionalmente incumbida da defesa do regime democrático, da
ordem jurídica e dos interesses sociais. E esse decisivo papel deve ser
compreendido ... também pelos grupos sociais comprometidos com a construção da
democracia, propiciando uma ação articulada, conjunta e eficaz, na guerra de
posição que se trava na sociedade civil, na disputa pela hegemonia.”
A
linguagem empregada remete a Gramsci, que aparece já na epígrafe do livro,
aliás. Inspirado nos ensinamentos do teórico italiano o autor fecha o argumento
com uma conclusão de ordem prática:
“A
correlação das forças sociais antagônicas é fator determinante do sucesso da
empreitada jurídica... Pressupõe um projeto estratégico e a definição de
tática, o que implica:
-articulação
do Ministério Público com os demais órgãos da sociedade civil que comungam os
mesmos objetivos;
-senso
de oportunidade para a mobilização e o desencadeamento da campanha de lutas e
das ações políticas e jurídicas dela decorrentes.”
É
difícil saber o que Gramsci teria pensado do uso feito de seus ensinamentos
pelo discípulo improvável. Mas certamente não se surpreenderia com o final da
história. Os “órgãos da sociedade civil” que o estrategista do Ministério
Público tinha em mente eram os sindicatos e as organizações do movimento
social. Como o Ministério Público é um ramo da burocracia estatal -- e não o
“novo príncipe” que habitava a imaginação do mestre -- as alianças que acabou
por fazer na “sociedade civil” foi com as “forças sociais antagônicas” situadas
do outro lado.
Não
é bem assim. Além de sua vinculação com o Estado, o Ministério Público
brasileiro tem características organizacionais que o colocam nas antípodas do
novo príncipe, pensado por Gramsci com ajuda de metáforas militares: trata-se
de um órgão apenas administrativamente hierarquizado, que reserva a cada um de
seus membros plena autonomia funcional.
As
alianças externas, nesse contexto, são estabelecidas não pela instituição em
seu conjunto, mas por segmentos – e mesmo membros individuais – dela.
A
limitada centralização política do MP implicam que são precárias as bases
internas para a articulação de uma liderança política consistente na
instituição. Até o momento, parece que a identidade e interesses corporativos
têm servido para selar a articulação das lideranças com as bases e limitar o
alcance dos conflitos políticos, que – entrelaçados pelas suas alianças com
atores políticos externos – atravessam a instituição. Nos últimos anos, a
aliança externa com a oposição ao governo de Dilma permitiu o predomínio da
agenda do combate à corrupção, reconfigurando as prioridades da instituição.
É
por aí que podemos entender as relações de poder no interior do Ministério
Público e a mudança radical em suas prioridades: marginalização dos temas caros
aos movimentos sociais -- e dos profissionais a eles dedicados – e ascensão
meteórica do tema da corrupção, da lavagem do dinheiro e do crime organizado.
Eles
estão no cerne da crise política presente, como estiveram, de resto, em tantas
crises passadas. Mas entre esses momentos há uma diferença notável. Até o final
do século passado, a corrupção foi um ingrediente importante da política
doméstica. Foi alvo de campanhas moralizantes e em seu nome governos foram
abatidos, como o de Vargas em 1954. Mas os atores que as promoviam eram nativos
e seus móveis se explicavam pelas disputas de poder no espaço nacional. Agora,
não. Como vimos na primeira parte deste artigo, com o fim da Guerra Fria o tema
da corrupção converteu-se, sob inspiração norte-americana, em objeto de um
regime internacional. Desde então multiplicam-se acordos multilaterais e
bilaterais sobre a matéria, e consolidam-se relações de estreita cooperação
entre os órgãos especializados do Brasil e de outros países relevantes, em
particular com aqueles dos Estados Unidos.
Nas
condições de crise em que estamos vivendo, esse fato confere a tais organismos
um grau de autonomia extrema -- que nos força a pensar neles como atores, no
sentido forte do termo, dotados de objetivos próprios e capazes de decidir, a
cada momento, sobre a oportunidade dos movimentos que fazem. Levar em
consideração esse fato é indispensável para entender a guerra sem quartel a que
assistimos hoje entre o pessoal político do novo regime e as forças reunidas em
torno da Lava Jato.
[Acho
que esta conclusão deveria ser completada com uma observação sobre os limites e
tensões do MP e do Judiciário como atores. Isso para levar em conta a afirmação
das possíveis divisões e outros impactos internos negativos do protagonismo
político do Judiciário e da relativa fragilidade das bases internas das
lideranças institucionais do MP]. Ou seja, o MP e o Judiciário aparecem como
protagonistas da frente golpista, mas os atores que os lideram têm bases
frágeis. Podem ser tolhidos por manobras políticas para limitar a Lava-Jato ou
ser substituídos por movimentos internos que venham seja de “profissionais”
(Stepan) que visem preservar a instituição e/ou por juízes e promotores aliados
aos setores progressistas.
***
***
Com
esses elementos à mão podemos responder de forma mais específica às perguntas
formuladas no início deste tópico.
Onde
estamos?
Em
um ponto crítico do processo do golpe -- no qual as decisões sobre as partes
centrais de seu programa ainda estão pendentes e as tensões entre os diferentes
integrantes da coalizão golpista atingem o ápice.
Para
onde vamos?
A
resposta a esta pergunta será breve. Se o Brasil se resumisse à política
institucional iríamos de mal a pior. No plano econômico, parece se desenhar uma
recuperação tímida insuficiente para tirar a economia do rés do chão, mas
suficiente para alimentar as expectativas do governo ilegítimo de Temer de
colher loros em 2018, se chegar até lá.
De
todo modo, esta é sua aposta. Ela passa obrigatoriamente pela demonstração de
força congressual para entregar a mercadoria vendida, quer dizer, aprovar as
reformas reclamadas pelo “mercado”. A dúvida que paira na mente de todos
é como isso será possível sob o fogo cerrado a que está submetido pelo zelo
punitivo dos promotores da falsa campanha de purificação dos costumes
nacionais. A ideia de contê-lo nos limites preestabelecidos (PT e adjacências)
faz todo sentido para o governo e seus aliados. O problema é que os movimentos
realizados para a colocar em prática são sistematicamente seguidos de outros
tantos, de seus parceiros adversários, visando neutralizá-los.
O
resultado desse jogo indecoroso continua indefinido, sendo difícil dizer qual
das alternativas que ele contempla seria a pior.
Mas
o Brasil é muito mais do que a política institucional. A derrota sofrida com a
deposição de Dilma foi grave, mas não definitiva. Os perdedores podemos estar
dispersos e divididos. Mas o passado faz parte do presente sob a forma de
memória, e ele está do nosso lado. O futuro está em aberto: ele não se
resume na disjuntiva inaceitável proposta pelos autores do golpe.
Opções
estratégicas.
De
certa forma, a afirmativa precedente enuncia, de forma condensada, a resposta à
última questão a ser tratada neste ensaio.
“Escolhas
que não podemos evitar”. Para a esquerda e para o conjunto do campo democrático, o problema
que se apresenta nesta conjuntura fluida é operar no contexto criado pelo golpe
como uma realidade dada, objeto de ação política rotineira, ou rejeitar esse
estado de coisas, denunciar sua ilegitimidade, e deixar claro que ele será
abolido assim que ocasião chegar. Essa questão não está projetada num
futuro incerto, nem é uma criação da mente imaginativa de quem quer que seja.
Ela esteve presente desde o primeiro momento, manifestou-se nitidamente na
polêmica a respeito da eleição para as presidências da Câmara e do Senado, e
deverá se colocar com força em 2018, se o calendário da eleição presidencial
for respeitado.
A
esta altura, desnecessário é dizer qual a inclinação do autor destas páginas.
Mas isso é irrelevante. Essa escolha é fundamental, mas ela indica apenas uma
disposição de ânimo – nada informando sobre como devemos lidar com os problemas
práticos que surgem no dia a dia da política e na vida de cada um de nós.
Enquanto estiver restrita à esfera privada, ou enquanto alimentar um discurso
intransigente, mas impotente, ela pode conviver confortavelmente com a ordem de
coisas que pretende negar.
Para
ser mais do que um gesto intransitivo, a rejeição da ordem que os golpistas se
esforçam para implantar no Brasil precisa se expressar na tomada de posição
sobre questões concretas.
Hoje,
com o governo Temer em deliquescência e a coalizão golpista em farrapos, a
questão posta pela conjuntura a todos os atores é a da sucessão presidencial --
a ocorrer em 2018, ou antes disso, num caso ou em outro por eleição popular.
É
nesse contexto que o passado incrustado no presente tira o sono dos fautores do
golpe. Eles sabem hoje, como souberam sempre, que não têm como enfrentar o nome
que está plantado na memória coletiva dos setores majoritários da população
brasileira. Daí porque a exclusão de Luis Inácio Lula da Silva da competição
política converteu-se para eles em um imperativo categórico.
Mas
a escolha estratégica que eles fazem simplifica sobremaneira a nossa própria.
Rejeitar consequentemente a ordem golpista é afirmar o direito do povo de
eleger livremente seu presidente, e repudiar todo e qualquer artifício usado
para amputá-lo.
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