Perto
de 500 nacionais sujeitos a trabalhos forçados e a prisões estão identificados.
O número vai crescendo, na investigação do Instituto de História Contemporânea
É
uma investigação completamente nova a que uma equipa do Instituto de História
Contemporânea da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova
de Lisboa está a fazer há dois anos, com financiamento da fundação alemã EVZ .
Esta instituição debruça-se sobre o enorme conjunto de 12 milhões de
estrangeiros submetidos a trabalhos forçados, que mantiveram a funcionar a
economia de guerra alemã, ocupando o lugar dos homens mobilizados para as
frentes de batalha. O foco dos historiadores deixou assim de ser o universo
mais restrito dos prisioneiros de guerra e das vítimas diretas da ideologia
nazi para entrar na mundo do trabalho.
Partindo
de fontes muito variadas, estão identificados 70 portugueses internados nos
vários campos de concentração do III Reich, 53 dos quais morreram antes do fim
da Segunda Guerra, e mais 376 submetidos a trabalhos forçados, um quarto dos
quais mulheres. O número está sempre a crescer, num conjunto muito heterogéneo
onde se cruzam judeus, católicos, combatentes republicanos da Guerra Civil de
Espanha, emigrantes em França e trabalhadores que, voluntariamente ou não,
foram recrutados para grandes empresas, pequenas oficinas ou mesmo casas
particulares, no quadro do esforço de guerra alemão.
No
próximo domingo, Augusto Santos Silva estará em Mauthausen, o campo de
concentração localizado perto de Linz (Áustria) onde foram internados muitos
espanhois e italianos - e portugueses, em menor número. O ministro vai colocar
uma placa de homenagem às vítimas portuguesas, lado a lado com as que já lá
existem por iniciativa de outras comunidades. Com ele estarão os investigadores
do IHC António Carvalho e Ansgar Schäfer. O coordenador da equipa de
investigação, Fernando Rosas, não poderá ir, por razões de saúde.
A
data é significativa, pois Mauthausen comemora neste fim de semana a libertação
do campo precisamente há 72 anos. A 5 de maio de 1945, o 3.º Exército dos
Estados Unidos entrou nas instalações, cujos principais responsáveis já tinham
fugido. Entre os prisioneiros estava Simon Wiesenthal, que veio a ser o grande
caçador de nazis.
A
placa tem uma inscrição em alemão, português e inglês que diz simplesmente:
"Aos portugueses de todas as origens e credos que foram vítimas da
barbárie nazi. Reconhecimento do Estado Português por iniciativa do Instituto
de História Contemporânea da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da
Universidade Nova de Lisboa e com o apoio do Ministério dos Negócios
Estrangeiros."
Tudo
começou como começam as boas histórias: conversas de uns e de outros, algumas
delas nascidas no Espaço Memória dos Exílios, no Estoril, quando António
Carvalho dirigia o departamento de Cultura da Câmara de Cascais. No final de
uma conferência nesse primeiro andar sobre a antiga estação de Correios, a
escritora Miriam Assor mostrou ao historiador uma pequena lista de portugueses
mortos em campos de concentração. "Chamou-me a atenção o nome de José
Augusto Rodrigues, porque estava referido que era natural de Cascais, tal como
eu. Procurei no registo civil, depois no arquivo militar, e encontrei-o."
Ao fim de algum tempo, já sabia uma grande parte da vida deste homem que era
filho de um português e de uma francesa e que foi viver para Marselha com os
pais, em busca de melhores condições, ainda antes dos 18 anos, isto é, antes da
inspeção militar.
Também
Cláudia Ninhos andava intrigada com histórias do mesmo género, surgidas nas
suas investigações. Acabaram por conseguir formar uma equipa, escolhida a dedo
por Fernando Rosas, em que se juntam três portugueses - os dois referidos e
Cristina Clímaco, investigadora que vive e trabalha em Paris, e também o alemão
residente em Portugal Ansgar Schäfer e o espanhol Antonio Muñoz. Assim
conseguiram canais facilitados para os arquivos e autoridades de França,
Alemanha e Espanha, essenciais para a investigação.
Depois
de por duas vezes ter visto recusado financiamento da Fundação para a Ciência e
Tecnologia (FCT), a equipa não tinha condições para avançar. Mas Ansgar Schäfer
lembrou-se da Fundação EVZ (Erinnerung, Verantwortung, Zukunft - Memória,
Responsabilidade e Futuro), criada em 2000 na Alemanha com o apoio de todos os
partidos representados no Bundestag. O objetivo era indemnizar as pessoas
submetidas a escravatura e trabalho forçado e outras vítimas do
nacional-socialismo.
Segundo
o site desta Fundação (www.stiftung-evz.de), este universo envolve
8,4 milhões de civis não alemães e 4,5 milhões de prisioneiros de guerra. Entre
2001 e 2007, foram pagos 4,4 mil milhões de euros a 1,66 milhões de vítimas de
quase 100 países. O capital da instituição é sustentado em partes iguais pelo
governo alemão e pela Fundação Iniciativa da Indústria Alemã. Nesta última
contam-se as grandes empresas que reconhecidamente beneficiaram de trabalho
escravo naquele período histórico.
A
partir do primeiro contacto com a Fundação EVZ, todas as dificuldades foram
desaparecendo. Segundo os historiadores, nenhuma instituição, portuguesa ou
estrangeira, recusou apoiar a investigação.
O
trabalho pôde portanto avançar e começou a dar resultados. Por isso os
investigadores insistem sempre que os números apurados até agora são apenas a
ponta do iceberg que estão pouco a pouco a trazer à superfície. Basta pensar
num dos casos complexos de identificar: os portugueses cujos nomes estão
escritos como se fossem espanhóis, por se encontrarem num grupo dessa origem -
o número de espanhóis é muito mais significativo do que o de portugueses. Ou
aqueles que foram registados sem rigor, sem que fosse pedido que soletrassem os
respetivos nomes.
Se
para António Carvalho o caso de José Augusto Rodrigues, de Cascais, continua a
ser o mais "próximo", Cláudia Ninhos tem um carinho especial por
Ignacio Augusto Anta, nascido em Bragança em 5 de abril de 1906, de pai
espanhol e mãe portuguesa. Alistou-se voluntariamente no exército português em
13 de novembro de 1925, combateu depois com as forças republicanas na Guerra
Civil de Espanha, e foi capturado pelas SS em França, onde participava na
Resistência durante a Ocupação. Sabe tudo sobre ele, ou pelo menos tudo o que a
documentação permite conhecer. Foi o oficial português que atingiu a patente
mais alta neste âmbito e acabou internado no campo de Schasenhausen, onde é
recrutado para a divisão de matemáticos onde foram integrados prisioneiros de
diversos campos. Explica António Carvalho que "este é o famoso campo onde
foram reunidos os falsários para falsificarem moeda inglesa, um campo de
operações especiais".
Ansgar
recorda que "há nesse período um recrutamento ativo em Espanha,
nomeadamente em Vigo, para trabalhar na Alemanha, e que muitos portugueses que
enfrentavam o desemprego deste lado da fronteira foram até lá para se
inscreverem. Como muitos portugueses não tinham passaporte, os alemães
deixavam-nos entrar mas depois já não os deixavam sair
Como
sublinham os historiadores em conversa com o DN, os registos dos carrascos são
muito detalhados, indicando as cores do cabelo e dos olhos, a crença religiosa,
a profissão, o local de origem. "Se a ficha sobrevive tem muita informação
relevante", sintetiza António Carvalho. Cláudia Ninhos acrescenta:
"Temos famílias inteiras de portugueses, mãe, pai, filhos, deportados para
a Alemanha porque de alguma forma se envolveram na Resistência".
Mas
realça Carvalho: "Nestes relatos não está nenhum dos casos que conhecemos
da bibliografia, como os judeus de Salónica que se reivindicam de portugueses.
Não estamos a falar destes grupos. Também temos judeus, mas os nomes de que
estamos a falar não têm que ver com a realidade dos judeus, A esmagadora
maioria são católicos."
A
questão é que, antes do início da Guerra, houve portugueses que foram para a
Alemanha com contratos de trabalho, angariados quer em Portugal quer na Galiza,
por exemplo. Chegaram numa situação de imigração legal mas o contexto de guerra
veio a retirar-lhes todos os direitos, incluindo o de abandonar o país. Muitos
ficaram instalados em campos de concentração, nos principais ou nos mais
pequenos que rapidamente se espalharam por todo o Reich. Havia mesmo situações
em que dormiam no campo de concentração e saíam todos os dias para trabalhar em
grandes fábricas. Mas também em carpintarias, campos agrícolas propriedade da
igreja, casas particulares. Um trabalho escravo generalizado.
Já
foram encontrados registos de portugueses em todos os grandes campos de
concentração: Dachau, o primeiro campo que o nacional socialismo criou, perto
de Munique; Buchenwald, Weimar; Neuengamme, Hamburgo; Auschwitz Cracóvia, na
Polónia; Flossenbürg, na Baviera, próximo da fronteira com República Checa;
Mauthausen na Áustria, perto de Linz; Ravensbrück, campo feminino a norte de
Berlim; Bergen-Belsen, no norte da Alemanha, onde morreu Anne Frank; e
Schasenhausen, o campo mais próximo de Berlim.
A
investigação será revelada publicamente no outono, numa exposição no Centro
Cultural de Belém, com inauguração prevista para 17 de novembro. Esse será o
primeiro dia de um congresso internacional sobre o tema, que no dia 18
continuará nas instalações do Goethe Institut de Lisboa, uma das instituições
que se juntaram no apoio ao projeto. Também a embaixada da Alemanha em Portugal
está envolvida, tal como a da Áustria. O Ministério dos Negócios Estrangeiros,
com o seu corpo diplomático, está também envolvido.
Ana
Sousa Dias | Diário de Notícias
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