José Júlio Pereira |
Numa
pequena declaração, José Júlio Pereira Gomes mente duas vezes. E sabendo que há
várias testemunhas capazes de deitar por terra as suas palavras. Eu sou uma
delas.
Luciano
Alvarez | Público | opinião
O
Governo nomeou recentemente José Júlio Pereira Gomes, um diplomata de carreira,
para secretário-geral do Sistema de Informações da República (SIRP). Ana Gomes
veio a público questionar o seu perfil para o cargo e confirmar alguns
episódios pouco abonatórios, quando José Júlio Pereira Gomes chefiou a missão
portuguesa em Timor que acompanhou o referendo de 1999. O novo secretário-geral
do SIRP respondeu mentindo. E mentiu sabendo que há várias testemunhas que
podem desdizer as suas palavras.
Ana
Gomes, que conhece bem Pereira Gomes, já que foi ela enquanto embaixadora na
Indonésia durante o período que levaria ao referendo que sugeriu o seu nome
para chefe da missão de observação, mostrou-se mesmo apreensiva em declarações
ao Diário
de Notíciascom a nomeação do novo secretário-geral do SIRP e questionou o
perfil psicológico do homem escolhido pelo primeiro-ministro, António Costa.
Ana
Gomes confirma que a missão portuguesa abandonou o território a 9 de Setembro
de 1999 por insistência de Pereira Gomes, contrariando directivas do Governo
português, então chefiado por António Guterres – e que tinha como ministro dos
Negócios Estrangeiros Jaime Gama. E diz que Pereira Gomes o fez na véspera da
visita de uma importante missão de observação do Conselho de Segurança das
Nações Unidas, entendendo o Governo português que era importante ter em Díli um
representante do país.
Em
resposta ao DN, Pereira Gomes afirma isto: "A evacuação de
Timor-Leste dos últimos observadores, onde me incluía, resultou de ordem
expressa do Governo português; todos os timorenses – e seus familiares –
que tinham trabalhado com a nossa missão de observação e connosco se tinham refugiado
nas instalações da UNAMET, foram evacuados [retirados] connosco e em virtude da
nossa intervenção."
Nesta
pequena declaração José Júlio Pereira Gomes mente duas vezes. Mente de uma
forma descarada e sabendo que há várias testemunhas capazes de deitar por terra
as suas palavras. Eu sou uma delas. Estava lá, assisti a tudo e escrevi sobre o
assunto. Reafirmo: José Júlio Pereira Gomes mente quando diz que a saída dos
observadores aconteceu por “ordem expressa” do Governo; e mente quando afirma:
“Todos os timorenses – e seus familiares – que tinham trabalhado com a nossa
missão de observação e connosco se tinham refugiado nas instalações da UNAMET
foram evacuados [retirados] connosco e em virtude da nossa intervenção.”
Comecemos
pela “ordem expressa” do Governo para a saída. Dizia o PÚBLICO em manchete no
dia 10 de Setembro de 1999: “Observadores portugueses saem de Díli contra a
vontade de Lisboa.” Na notícia, escrita por mim ainda em Timor na madrugada do
dia da evacuação, relato os muitos esforços feitos pelo Governo português junto
de Pereira Gomes, nomeadamente de António Guterres, nas 48 horas anteriores,
para que a missão ficasse pelo menos até à chegada dos homens do Conselho de
Segurança da ONU. Relato ainda discussões entre Pereira Gomes e António Gamito
e Francisco Alegre, o diplomata júnior da missão, que sempre insistiu e tudo
fez para que a missão não abandonasse Timor.
Diz
a notícia: “Ontem, com a iminente retirada da ONU, ao princípio da noite em
Díli, a missão portuguesa decidiu abandonar o território. Francisco Alegre
disponibilizou-se para ficar. Às 5 de manhã em Díli, pouco antes de se iniciar
a retirada, o Ministério dos Negócios Estrangeiros voltou a insistir para que a
missão ficasse. José Júlio Pereira Gomes argumentou contra a permanência, mas
perante a insistência do gabinete de Jaime Gama acabou por dizer que havia um
voluntário, precisamente Francisco Alegre. Francisco Alegre aceitou ficar, mas
começou de imediato a ser acusado pelos seus colegas de missão de estar a
dividir o grupo. Houve, nomeadamente, alguma chantagem emocional sobre Alegre,
acusando-o de estar a pôr em causa a vida de pessoas. Às 5h45 de Díli, o
Ministério dos Negócios Estrangeiros, em nome da unidade do grupo, aceitava que
todos se retirassem. José Júlio Pereira Gomes justificava a partida
considerando que a sua missão ‘terminou no dia em que foi divulgado o resultado
do referendo’ e que ‘não estava a fazer nada em Timor-Leste porque estava
sitiado na sede [da ONU].”
Estes
factos nunca foram desmentidos, nem podiam ser, porque foram presenciados por
diversas pessoas. Mais tarde viria a saber que António Guterres ficou furioso
por Pereira Gomes ter contrariado as ordens do seu Governo, dando conta a
diversas pessoas da sua indignação com palavras pouco elogiosas para o
diplomata.
Assim
se escrevia uma triste página da diplomacia portuguesa, em que o chefe de uma
importante missão não só contrariou as ordens do Governo que representava, como
se disponibilizou para lançar às feras um corajoso jovem diplomata, então com
26 anos, para se pôr a salvo.
Quanto
ao resto (“timorenses – e seus familiares – que tinham trabalhado com a nossa
missão de observação e connosco se tinham refugiado nas instalações da UNAMET
foram evacuados [retirados] connosco e em virtude da nossa intervenção"),
houve, de facto, na missão quem se preocupasse com eles, mas não foi nunca José
Júlio Pereira Gomes. Nem no dia em que as casas dos observadores portugueses e
a sede da missão foram atacadas, logo após a divulgação do resultado do referendo,
nem nos dias em que esteve sitiado na missão da ONU.
Sobre
isso conto só um episódio. Mais ou menos a meio do cerco à ONU e quando se
começou a falar da evacuação, algumas vozes começaram a defender que no plano
de evacuação seriam apenas incluídos os estrangeiros e os timorenses que
trabalhavam para a ONU. A maioria dos cerca de 2000 timorenses que se tinham
refugiado na ONU ficava para trás.
Fui
então alertado que entre esses timorenses estavam alguns que tinham trabalhado
para a missão portuguesa e que, por esse facto, eram um alvo preferencial dos
homens que, por esses dias, matavam e destruíam Timor-Leste. Fui para o terreno
e detectei cerca de 60 que tinham trabalhado para a missão portuguesa. Estavam
em pânico, diziam ter a certeza de que se Portugal os abandonasse seriam
mortos. Alguns deles chegaram a falar por telefone com Ana Gomes dando conta da
sua situação e dizendo-lhe que mais uma vez seriam abandonados por Portugal.
Ana Gomes sempre lutou, junto do Governo português e da missão em Timor, para que
nenhum timorense fosse deixado para trás.
Depois
de ter feito o levantamento (e de gravador na mão) pedi a Pereira Gomes para me
responder a algumas perguntas. Questionei-o sobre a situação desses timorenses
que tinham trabalhado para a missão. A primeira resposta que me deu foi que
eram “apenas seis ou sete e que metade deles já tinham fugido para as
montanhas”.
Disse-lhe
que não, que eram cerca de 60 pessoas e que eu tinha falado com elas.
Perguntei-lhe então se essas pessoas estavam abrangidas por algum plano de
evacuação da missão portuguesa. Pereira Gomes ficou furioso e respondeu-me:
“Não me foda.” A conversa terminou comigo a perguntar ao diplomata se falava em on ou
em off.
Esta
conversa, testemunhada por várias pessoas, nunca foi publicada. Pouco tempo
depois, a ONU, que enfrentava uma revolta dos seus funcionários em Díli que não
queriam abandonar os timorenses, decidiu, num acordo com a Austrália, que
ninguém ficava para trás. E o tema dos portugueses que trabalhavam para a
missão portuguesa deixou de ter relevância.
Ana
Gomes, ainda que com muita diplomacia, já veio manifestar a sua apreensão com a
nomeação de José Júlio Pereira Gomes para o cargo de secretário-geral do
Sistema de Informações da República. António Guterres e Jaime Gama podem contar
muito mais sobre as "verdades" deste diplomata.
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