domingo, 1 de outubro de 2017

Só depois da Alemanha decidir



Manuel Carvalho Da Silva | Jornal de Notícias | opinião

A discussão sobre o futuro do euro e da União Europeia (UE) tinha de ficar para depois das eleições alemãs. Antes disso nada feito. Assim pensavam e diziam, quer o primeiro-ministro português, quer o presidente francês. Acontece que das eleições alemãs resultou uma perda substancial de votos e de deputados dos partidos da anterior coligação - com forte queda da força política de Merkel - e uma subida da extrema-direita, que teve entrada de rompante no parlamento, bem como do Partido Liberal.

Do ponto de vista interno, estas eleições mostraram um país dividido: um país onde os frutos da pujança económica são mal distribuídos, e onde o ressentimento social se transforma em reações xenófobas e fascistas, como as alardeadas pelo partido de extrema-direita. Ora, sendo esta realidade interna resultado de políticas que têm agravado precariedades, condições de trabalho, qualidade de emprego e fatores de desigualdade; sendo o Partido Liberal assumidamente um partido "dos negócios", que coloca como linha vermelha para a sua participação no novo Governo a existência de qualquer reforço orçamental europeu que contribua para a coesão; estando a Alemanha a beneficiar (veja-se os excedentes recorde da sua economia) do rumo que impôs à UE, é claro que não se vislumbram razões de esperança para a resolução dos grandes problemas desta, vindos do Governo mais poderoso da Europa Ocidental.

Mas afoito, até porque precisa de cortinas de fumo que escondam a sua perda de credibilidade interna, o presidente francês programou para a terça-feira que se seguiu às eleições alemãs o seu discurso, o que foi propagandeado como uma importante declaração sobre o futuro da União Europeia. E lá fez um discurso "arrojado" na forma, bem menos no conteúdo.
Em algumas passagens Macron parece propor, contra ventos e marés, a rápida transformação da UE numa espécie de país. Muitas das suas propostas não são más em si mesmo e podem até surpreender alguma Direita em Portugal: uma taxa sobre as transações financeiras para apoiar a cooperação e o desenvolvimento; um travão sobre a concorrência fiscal na taxação das empresas no interior da UE; o esboço de uma política industrial europeia; uma taxa de carbono que incida também sobre as importações. Entretanto, nada apresenta de soluções para as dívidas públicas. Noutros aspetos, as propostas são muito modestas ou claramente perigosas. O reforço orçamental europeu no sentido de uma acrescida securitização das fronteiras europeias, ampliando a dimensão e o poder do complexo industrial-militar europeu, pode emergir como o principal rumo estratégico europeu a que vamos assistir no futuro.

A vertigem distópica da transformação da União Europeia num país, agora assumida por Macron, tem sido o combustível que, em longos períodos, tem alimentado a construção europeia. Se os povos não querem determinado rumo, e dizem "não" quando lhes perguntam, estas elites afoitas receitam-lhes passos "irreversíveis" que os obriguem a aceitar ainda mais "integração", mais desigualdades, menos solidariedade, menos democracia e soberania.

Inúmeras propostas europeias de Macron, dado o contexto europeu e mundial que se vive e a sua subjugação à aprovação alemã, são mero barro na parede, de que só se aproveitará o que interessa ao Governo alemão no seu jogo político doméstico.

Da negociação entre a Alemanha e a França não é difícil adivinhar que resultem soluções cosidas a metade, como a União Bancária e outros instrumentos associados à história do euro, em que quem toma as decisões não paga e quem paga não decide. Acontece, porém, que as meias-soluções, num quadro de desigualdades, não mitigam as assimetrias mas alimentam níveis de conflito que impedem a convergência em torno de soluções de conjunto viáveis e mobilizadoras.

Os resultados eleitorais na Alemanha e o triste destino que esperam as propostas de Macron são duas manifestações de um dissenso crescente na UE que, pelo menos a norte, alimenta a extrema-direita. Seja como for, o resultado das eleições alemãs e as propostas de Macron não colam.

*Investigador e professor universitário

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