A
piedosa fábula do "colonialismo português de rosto humano" é uma
falsidade histórica. Ver Marcelo repeti-la no lugar do crime é uma vergonha
Fernanda
Câncio | Diário de Notícias | opinião
Todo
o indígena válido das colónias portuguesas fica sujeito, por esta lei, à
obrigação moral e legal de, por meio de trabalho, prover ao seu sustento e de
melhorar sucessivamente a sua condição social." Este é o artigo primeiro
do Regulamento Geral do Trabalho dos Indígenas nas Colónias
Portuguesas, de 1914. O segundo esclarece que o indígena que não trabalhe
sem para isso ter motivo "de força maior" será condenado (é mesmo
esta a expressão) a trabalho.
É
certo que se estabelece que este deve ser pago e nunca "superior às suas
forças", mas igualmente se diz que os indígenas não podem despedir-se e
que se fugirem serão capturados e castigados - condenados a mais trabalho. E,
no artigo 47.º, lê-se: "Pelo facto do contrato celebrado perante a
autoridade pública, os patrões recebem os poderes indispensáveis para, quando e
enquanto a autoridade o não possa fazer por si própria, assegurarem o
cumprimento das obrigações aceites pelos serviçais ou a repressão legítima da
falta desse cumprimento. No exercício desse poder ser-lhes-á permitido prender
os serviçais que (...) se recusarem a trabalhar (...), [assim como] evitar que
cometam faltas e empregar os meios preventivos necessários para os desviar da
embriaguez, do jogo, e de quaisquer vícios e maus costumes que lhes possam
causar grave dano físico ou moral." Esta "necessidade" é
explicada no preâmbulo do decreto: "Preciso é (...) pôr nas mãos dos
patrões direitos sem os quais não é possível manter a disciplina." Para
tal, é-lhes permitido terem uma milícia nas suas propriedades. E o regulamento
específico para Moçambique, do ano anterior, prevê que usem "os meios
possíveis" para "melhorar a educação" aos indígenas,
"corrigindo-os moderadamente, como se eles fossem menores". Prescreve
também o luxo de um dia de repouso semanal, mas para ser gozado no local de
trabalho, do qual o "serviçal" só se pode ausentar por quatro horas.
Ainda assim, estes regulamentos falam de contratos "livres" e "voluntários"
e proíbem grilhetas e algemas - não fosse alguém confundir o regime com o da
escravatura.