quinta-feira, 1 de fevereiro de 2018

Humanizar o capitalismo?


Bruno Carvalho* | opinião

Corrupção, desigualdade e discriminação não são extinguíveis neste modelo de sociedade porque são pilares fundamentais do sistema político, económico, social e cultural em que vivemos.

Comunicação é mais que informação; informação subsidia, atualiza, nivela conhecimento. A comunicação sela pactos e educa». Durante os vários anos que frequentei a Escola Superior de Comunicação Social, em Lisboa, convivi com esta citação numa das paredes do bar onde todavia jaz a mesa de matraquilhos. Longe do bulício estudantil, apartado para época de exames, voltei a encontrá-la há dias. Indiferente a quem passa, ali estava, como deve estar há, pelo menos, uma década e meia. Desta vez, o apelido do autor apanhou-me de surpresa.

Há uma década, Odebrecht não dizia nada a nenhum de nós. E agora, a quem lá está, provavelmente, tampouco. Mas devia. Que o responsável por um dos maiores escândalos de corrupção de que há memória na América Latina tenha direito a ser citado na parede de uma das instituições portuguesas que mais profissionais da comunicação forma revela muita coisa. Desde logo que a construção de hegemonia comunicacional é crucial para a manutenção do poder político e económico. E também que o facto de se academizar o discurso de alguém não faz dessa pessoa mais ou menos criminosa dentro do quadro do capitalismo.

A narrativa que se construiu durante anos sobre Odebrecht serviu para ocultar a verdade. É tal o poder que têm os órgãos de comunicação social que podem determinar quem sobe e quem cai do pedestal. Que Pablo Escobar tenha subido as escadarias do parlamento colombiano, em 1982, para tomar posse como deputado não apaga que tenha sido o mais importante narcotraficante do mundo enquanto foi vivo. Não há capitalismo sem corrupção e a prova disso é a quantidade de condecorações atribuídas por Aníbal Cavaco Silva a administradores que acabaram nas teias da lei. Ou dos sucessivos ministros que acabam à frente dos principais grupos económicos a operar na área que antes acompanhavam, ou dos deputados que são advogados em escritórios contratados por empresas e bancos, ou dos canais de televisão que investem durante anos num futuro candidato presidencial.

E há quem queira enfiar a neutralidade à força no vórtice da questão esquecendo-se de duas premissas. A primeira é a de que não existe tal coisa. E a segunda é a de que a neutralidade é a máscara do crime perfeito. É igualmente uma construção para que achemos que jornalistas, juízes, polícias e professores agem de forma independente num campo desigual.

Um dos grandes sofismas anti-políticos do nosso tempo é a tecnocracia enquanto ideia de que a solução é a preparação técnica de gestores públicos para derrotar o império da corrupção e da incompetência. O jornalista, com cada vez menos autonomia, enquadra-se numa linha editorial imposta por quem financia o meio em que trabalha. Os juízes analisam os casos e julgam-nos abordando-os a partir das leis que emanam do mesmo parlamento capturado por interesses privados. Os polícias estão a mando de sucessivos governos que zelam, sobretudo, por quem lhes vai atribuir um cargo em determinada administração. E os professores educam uma sociedade inteira sob programas e técnicas pedagógicas que ocultam ou adulteram a verdade histórica como acontece com a revolução de Abril nos manuais escolares. Pese o esforço e dedicação que muitos destes profissionais depositam nas suas funções – e pese a luta pela dignificação funcional – há um limite intransponível que esbarra em quem dirige.

A manutenção do poder político e económico depende, e muito, da dominação daquilo a que o comunista italiano Antonio Gramsci chamava superestrutura. A luta pela hegemonia ocorre em todos esses espaços mas a ruptura dá-se questionando a propriedade privada dos meios de produção. Em geral, as forças que hoje tentam «modernizar» a emancipação das mulheres, da população negra e dos homossexuais fazem-no excluindo o factor económico da equação.

Há semanas atrás, ficou a saber-se que as produtoras norte-americanas de cinema que despediram realizadores e actores acusados de assédio sexual pagam mais aos homens do que às mulheres. Não houve grandes reacções de indignação. Não que o assédio e o abuso sexual não mereçam o mais severo dos combates mas é justamente curioso que se tente afastar do debate o capitalismo que está na origem dos diferentes tipos de desigualdades e discriminações.

Corrupção, desigualdade e discriminação não são extinguíveis neste modelo de sociedade porque são pilares fundamentais do sistema político, económico, social e cultural em que vivemos. Que Obama tenha sido o primeiro presidentenegro dos Estados Unidos não diminuiu o assassinato e tortura policial sobre a população negra. Que Merkel seja chanceler não desagravou a situação das mulheres alemãs.

*AbrilAbril | Foto: Protesto contra a Cimeira do G20. Londres, 01/04/2009.CréditosJonny White / cc-by-2.0.

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