sábado, 21 de abril de 2018

OS CAPITAIS QUE FLUEM PARA OFFSHORES


A legalidade nem sempre é sinónimo de legitimidade

A rendabilidade dos capitais resulta de condições optimizadas que as multinacionais e os capitalistas de topo encarregam os governos e as classes políticas de concretizar. Entre essas condições estão as vantagens fiscais criadas nos offshores ou paraísos ficais e que têm como contrapartida a enorme punção fiscal que impende sobre a multidão.

1 - A legalidade do processo

Em Portugal, uma alteração à Lei Geral Tributária, mais especificamente, através dos nºs 2º e 3º do seu artº 63-A, estabelece que a Autoridade Tributária e Aduaneira deverá publicar (de acordo com a Portaria 256/2017 de 14 de agosto) "as estatísticas relativas às transferências e envio de fundos que tenham como destinatário entidade localizada em país, território ou região com regime de tributação privilegiada mais favorável"; de modo mais sucinto e popular, offshores. 

A propósito de informação estatística, note-se que o INE - Instituto Nacional de Estatística tem sido afastado, há décadas, da elaboração sobre tudo o que se refere à área fiscal[1] como à das finanças públicas (entre outras áreas), informação essa que tem ficado disseminada de modo caótico entre a página da referida Autoridade Tributária e Aduaneira, da DGO - Direção-Geral do Orçamento, do Banco de Portugal, do IGCP, com frequentes alterações de método e de conteúdo; nos últimos anos, sob o auspícios do Eurostat ou do BCE que, no âmbito da intervenção da troika, eliminaram muita da falta de transparência nas contas públicas. 

Como é evidente, esta situação não é um descuido de ignorantes mas uma política continuada de obscurecimento e ocultação da realidade da gestão pública, que visa o desconhecimento das relações mafiosas entre os governos, as oligarquias em que se inserem e os interesses privados que se insinuam na sombra. Por outro lado, iniciativas individuais não têm acolhimento na obtenção de dados junto das instâncias estatais - como seria apanágio de um regime verdadeiramente democrático - embora esses dados sejam disponibilizados, na prática, a empresas de informática instaladas em órgãos públicos ou às grandes empresas de consultadoria.

2 - A realidade dos offshores

O conceito de registo offshore - embora muitos não se situem geograficamente em ilhas mas em áreas continentais (onshore) - popularizou-se com aquele nome; e está associado aos capitais que procuram carga fiscal nula ou reduzida, da ausência de interferências fiscalizadoras dos Estados e das instâncias judiciais ou policiais, mormente quando esses capitais são provenientes de tráficos (armas, drogas...) ou de extorsão, provenientes ou destinados a actividades criminosas. 

O conceito resulta de um precedente relacionado com os navios mercantes. A vida a bordo, em viagens longas é dura e, no âmbito de uma luta secular, os marinheiros foram ganhando qualificações, inerentes à evolução das tecnologias a bordo, com salários e condições de trabalho dignas, impostas por sindicatos poderosos e garantidas pelas legislações estatais que pesaram nos custos dos armadores. Estes decidiram inventar as "bandeiras de conveniência"; isto é, o registo do navio é feito em porto de país onde a legislação de trabalho é convenientemente branda ou nula, permitindo aos armadores o recrutamento de mão-de-obra menos qualificada, mais barata, e menos exigente em condições de conforto e segurança a bordo. 

Por outro lado, os navios com deficientes condições de segurança, com maior risco de acidente, têm o seu registo impedido nos países mais desenvolvidos, mais zelosos da sua segurança, condições de trabalho e salariais. Assim, hoje, como há décadas, as principais bandeiras de registo dos navios são as do Panamá e da Libéria, surgindo mais recentemente, em terceiro lugar, as Ilhas Marshall que, como se entenderá são países com ... enormes necessidades de transporte e poderosos armadores; porém, em 2017, estes três países têm o registo de 15.6% da frota mundial e 42.4% da tonelagem (dwt)[2].

Na totalidade dos registos offshore, de parqueamento de capitais - cerca de 80 - a sua maioria está ou esteve ligada à Grã-Bretanha (52 em cerca de 80), havendo ainda a considerar que as Ilhas do Canal, as maiores, constituem, de per si, registos independentes. Por seu turno, Gibraltar recusa terminantemente o reintegração em Espanha porque a sua população depende do contrabando, das receitas como offshore e da presença militar inglesa. A City tem muitos anos e muita sabedoria... 

Se bem que haja offshores que são países, como os Emiratos Árabes Unidos, o Qatar, a Suíça, o Uruguai... ou o Panamá (que se celebrizou recentemente com os Panama Papers, evidenciando a relação dos offshores com o crime) outros, são micro-estados, sobretudo nas Caraíbas ou na Polinésia, tornados como tal por conveniências da anterior potência colonizadora, para os quais o parqueamento de capitais é importante fonte de receita; finalmente, há ainda endereços offshore em locais tão remotos ou desconhecidos da maioria das pessoas, como as ilhas de Jan Mayen, de Niue, de Pitcairn ou de Labuan (esta talvez presente para os leitores de Emilio Salgari).

Portugal não é um país rico, não tem um painel muito sofisticado de capitalistas e tem relações comerciais muito concentradas em poucos países. Porém, apresenta, nos elementos que adiante desenvolveremos uma situação única; "Portugal tem de longe a maior lista de paraísos fiscais da Europa" disse há perto de um ano, o Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais.

3 - Avaliação dos fluxos de saída para offshores

Voltando aos envios de fundos para "país, território ou região com regime de tributação privilegiada mais favorável", pretende-se regulamentar na portaria acima referida, a informação relativa ao envio de fundos, no sentido da obtenção de informação que enforme relatório sobre "a evolução do combate à fraude e à evasão fiscais" a entregar pelo governo à diligente Assembleia da República, no âmbito do artigo 64.º-B da Lei Geral Tributária.

A piedosa intenção revelada em nada irá prejudicar a saída de capitais para offhores, uma vez que estes se tornaram instrumentos essenciais para as movimentações de capitais, para a sua menor oneração tributária, para a sua aplicação fora da supervisão dos governos, eventualmente para negócios escusos e criminosos. Como é bem sabido, apesar de há muitos anos os governos se referirem negativamente aos offshores, a verdade é que eles perduram, como se alarga a sua disseminação pelo planeta, tal como aumenta a sua utilização e envolvimento em fraudes e descapitalizando os estados e as finanças públicas; para além de contemplarem uma profunda desigualdade na carga fiscal face à que incide sobre os rendimentos do trabalho - largamente escrutinados pelos governos - e os rendimentos de capitalistas, médios e grandes.

A agregação contemplada para os dados divulgados considera, separadamente, os indivíduos e as pessoas coletivas, por um lado; e, por outro, os residentes e os não residentes em Portugal. Decidimos dar maior relevo ao critério da residência, juntando, nesse contexto, os casos de pessoas individuais ou coletivas; até porque a importância relativa das transferências efetuadas por indivíduos é muito menor do que a protagonizada por entes coletivos.

*em Pravda.ru

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