Pedro Tadeu | Diário de Notícias
| opinião
O deputado Ascenso Simões
publicou no Facebook, onde se identifica, à inglesa, como "mp socialist
party", um recibo do seu vencimento relativo a este mês de abril. Fui ver.
Notei, em primeiro lugar, aquilo
que Ascenso Simões tapou: são três frases pintadas, a preto, com o mesmo rigor
institucional aplicado por funcionários públicos obrigados a ceder à
comunicação social documentos parcialmente em segredo de Estado.
Ascenso Simões escondeu da turba os
dados bancários, a situação familiar que justifica a percentagem de retenção na
fonte do IRS e o dia em que lhe pagaram o salário... E aqui a minha
perplexidade despontou.
Que Ascenso Simões não queira o
seu número de conta bancária a circular pela internet parece-me pretensão
razoável e sensata.
Que declare no site da Assembleia
da República que é casado, e com quem, mas não queira no Facebook divulgar essa
informação nem se tem dependentes a cargo, parece-me, nesta partilha em rede
social, uma tentativa de defesa da vida privada legítima mas com procedimento
um pouco dúbio e eficácia muito pífia... .
Recusar divulgar o dia em que
recebeu o salário, que torna público com estardalhaço, é que me parece um
completo mistério... Porque raio não quer Ascenso Simões que se saiba o dia em
que o Estado português lhe depositou no banco um total de 5614,55 euros? Porque
acha problemático saber-se a data em que ADSE, IRS, grupo parlamentar do PS e
Segurança Social repartiram 1892,27 euros de descontos feitos ao seu salário de
abril?... Que maluqueira!
Passei à análise das parcelas.
O salário do deputado, antes dos
descontos, totaliza 5586,10 euros: 3624,41 são a "remuneração
principal", 1591,37 são "ajudas de custo" e 370,32 euros, lê-se
no recibo, são "despesas de representação". Ascenso Simões escreve
que esta última alínea está errada, devia ser "exclusividade"...
imagino que estes curtos 370 euros de complemento salarial não sirvam para
seduzir quem pode ganhar muito mais somando alguns trabalhos "por
fora" às remunerações auferidas pelos dias de discussão no Parlamento.
Estas quantias da "nota de
abonos e descontos" referem-se à parte de salário que está sujeita a
impostos, segurança social
e outras contribuições e, por esta via, Ascenso Simões só levou para casa 3693,63 euros... Repare-se como este valor final é quase igual à "remuneração principal" identificada no recibo: que bela obra de arquitetura salarial!
Mas, anexada a esta folha, vem um
"talão de abonos". Aqui Ascenso Simões recebe dinheiro que não está
sujeito a descontos, vai limpinho para o banco: 1371,60 euros relativos a
deslocações da residência para a Assembleia (a casa, explica o deputado, fica a
400 km), 376,32 euros em deslocações pelo país em funções parlamentares e mais
172,80 euros em "trabalho político". A soma dá 1920,72 euros. Este
valor, adicionado ao valor líquido do salário, totaliza os 5614,55 euros
finais... E, agora, repare-se como esta quantia é quase igual ao salário bruto
do deputado: 5586,10 euros. O arquiteto desta obra remuneratória é mesmo
genial!
É demasiado um deputado levar
para casa 5600 euros ? Não. Parece-me, atendendo à responsabilidade do cargo,
ao simbolismo das funções, ao nível salarial praticado com quadros de topo de
grandes empresas, um valor aceitável.
Acho mal é que nos
"vendam" a ideia de que os deputados, coitadinhos, só ganham 3600
euros (o valor do salário-base que costuma ser apresentado como vencimento dos
eleitos em São Bento) quando, na verdade, está arquitetada uma forma de
receberem muito mais dinheiro.
Acho mal que se monte um esquema
de pagamentos em deslocações de valor tão elevado, não sujeito a impostos, que
é um péssimo exemplo para difundir no país uma cultura de respeito pelo Estado
e pelos pagamentos fiscais.
Acho mal pagarem-se deslocações à
residência (livres de impostos), uma vez que já se pagam ajudas de custo
(sujeitas a impostos). Admitiria, porém, uma subida deste valor para quem mora
nas ilhas ou no estrangeiro.
Acho mal que não se pague um
salário-base de nove mil ou dez mil euros para que os deputados, obrigados ao
regime de exclusividade, recebam, líquidos, cinco mil euros, depois de pagarem
os devidos impostos e contribuições sociais.
Acho que para quem ganhe mais do
que aquilo, não é profissional da política e é eleito deputado, se devia apurar
um salário bruto semelhante ao que recebia antes de ser eleito.
Acho, sobretudo, que tudo o que
penso pode estar errado mas que esta matéria devia ser discutida com decência e
frontalidade.
Acho, ainda, patriótico e
maravilhosamente anacrónico que o recibo das deslocações da AR ainda faça
contas em escudos: o deputado Ascenso Simões, lê-se, recebeu mais de 385 contos
para andar, um mês, pelo país. Viva Portugal!
Na foto: Ascenso Simões
Sem comentários:
Enviar um comentário