Há quem fale em “golpe” e em
“locaute”. Mas movimento expõe, principalmente, fragilidade do governo; e
paralisia de uma esquerda que esqueceu as ruas e a rebeldia – para enxergar
apenas eleições
Antonio Martins* | Outras Palavras
I.
E eles resistem. No início da
tarde sexta-feira (25/6), quando se escreve este texto, o governo acaba de
anunciar ação repressora contra os caminhoneiros – mas milhares deles continuam
mobilizados, em todos os Estados. Recusam-se ao trabalho, nas condições que
lhes são impostas. Parados, trancam rodovias. Sua atitude trava um país que
optou por se tornar refém do transporte rodoviário. Não há gasolina nos postos
(ou há filas quilométricas) e os ônibus urbanos começam a escassear. Ninguém
abastece os Ceasas. Os aviões, em breve, ficarão em solo.
Para prosseguir, o movimento
precisou superar três enormes obstáculos políticos e comunicacionais. Primeiro,
ser acusado de anti-social. A mídia – os jornais da Globo, especialmente – diz
que os caminhoneiros suscitam desde a interrupção das hemodiálises até a
ganância dos atravessadores, que decuplicaram o preço da batata. Segundo,
ampliar o sofrimento dos mais fracos. A redução do preço do diesel, proposta
pelo governo, doerá nas costas dos contribuintes – martela a TV –, como se não
houvesse horizonte político além da “austeridade fiscal”. Terceiro, sabotar
a sacrossanta ditadura dos mercados. Os investidores, continua a mídia, puniram
a Petrobrás, devastando os preços de suas ações, quando perceberam que uma
empresa estatal pode levar em conta os interesses do país.
Contra tudo, o movimento persiste
e ganha apoio. O MST orgulhava-se, ontem, de ter oferecido almoço aos
caminhoneiros, num bloqueio da Via Dutra, em SP. A Globo noticiou há pouco que
os motoqueiros de São José dos Campos fizeram cortejo em homenagem aos
grevistas, e confraternizaram com eles. Por que?
II.
Para parte da esquerda, a
resposta é fácil. Os caminhoneiros seriam a ponta de lança de um “golpe dentro
do golpe, jurídico-militar”, escreveu em editorial uma revista. Trata-se,
no fundo, de um “locaute” (greve patronal), apostou outro site.
Talvez haja bases históricas para
a suspeita. É possível que a natureza solitária de seu trabalho e a sensação de
que “transportam as riquezas do país” torne os caminhoneiros mais propensos ao
individualismo, à vanglória e às políticas relacionadas a estes sentimentos.
Foi assim no Chile da Unidade Popular, em 1973, quando lideraram um paro que
transtornou a vida da população e abriram caminho para o golpe de Estado do
general Pinochet. Há quem tente isso de novo. A BBC Brasil reportava, ontem, a
ação de grupos que tentam se aproveitar do movimento atual para difundir, via
Whatsapp, a ideia da “intervenção militar” para “acabar com os políticos
corruptos”.
Mas na aridez do Brasil-2018,
submetido há dois anos a uma agenda de retrocessos, a paralisação significa,
muito concretamente, um desnudamento das políticas neoliberais – e um sinal de
que, bem ao contrário do que alguns pensavam, há inúmeras brechas para lutar
contra elas.
III.
Examine as reivindicações dos
caminhoneiros. A primeira, e mais crucial, é o fim dos aumentos quase diários
no preço do óleo diesel. Eles desordenam totalmente as contas de
transportadores cuja margem de lucro é reduzida (por competição intensa) e cujo
custo essencial é o combustível. Como tratar um frete hoje e sofrer, no
decorrer do próprio transporte, cinco aumentos de preço?
Mas por que tornou-se impossível,
à Petrobrás, oferecer preços minimamente seguros, numa economia que estaria
“estabilizada” desde o Plano Real? Porque a empresa deixou de modo explícito,
após 2016, de atender às necessidades do país. Aceitou subordinar-se aos
interesses de seus investidores – a grande maioria, enormes fundos globais.
Eleva as cotações dos combustíveis seguindo cada oscilação no preço do barril
de petróleo ou do dólar, para assegurar a lucratividade de suas ações. Além
disso, iniciou um processo de desativação ou venda das próprias refinarias – o
que a torna cada vez mais dependente de importações.
O governo Temer não é vulnerável
apenas por ter entregue, na prática, a Petrobrás a seus acionistas externos.
Ele tornou-se incapaz de fazer política fiscal. Outra forma de aliviar o drama
dos caminhoneiros seria reduzir temporariamente os impostos sobre os
combustíveis. Mas como, se os grandes agentes financeiros fiscalizam cada
mudança no sistema de tributos? Eles aplaudiram, em novembro, a concessão, às
petroleiras estrangeiras, de isenções
fiscais calculadas em 1 trilhão de dólares, em vinte anos. Mas
rejeitam, agora, um desconto no PIS-Cofins sobre o diesel que equivaleria a
1,2% deste valor. Ou exigem, como contrapartida, elevações de outros impostos
que atingiriam a indústria e o emprego.
A pressão dos caminhoneiros
rachou e desorganizou a base conservadora no Congresso como nunca antes, ao
longo desta semana. O presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM),
defendeu a isenção temporária de PIS-Confins e conseguiu aprová-la. De
imediato, o ministro da Fazenda, Eduardo Guardia, afirmou que
a medida desestabilizaria as contas públicas. O Palácio do Planalto pediu que o
presidente do Senado, Eunício Guimarães, retardasse a aprovação da medida em
sua casa parlamentar.
O impasse impediu que o governo
firmasse, com as lideranças de caminhoneiros, um acordo crível. O compromisso
fechado na quinta-feira à noite era frágil e foi, desde o início,
desconsiderado mesmo por algumas associações da categoria. Um dia depois, os
bloqueios despedaçaram o firmado. Como aceitá-lo, se ele trazia implícita a
volta, em um mês, à política atual?
Um movimento que, motivado por
drama real, sacode o país, desafiando as visões segundo as quais a sociedade
permanece em prolongado estado de “apatia”. Reivindicações que, além de
justas,desafiam duas das políticas centrais do golpe de2016 – o desmonte da
Petrobrás e o “ajuste fiscal”. Um governo que, pressionado, entra em estado
paralítico. Que falta para que a esquerda história decida-se a agir?
IV.
Em palavras, todos os partidos
que compõem a esquerda brasileira apostam na mobilização social. O PT surgiu
dela, no final da ditadura. PCdoB e PSOL veem-se influenciados pela tradição
marxista, para a qual a presença no Estado, sob hegemonia capitalista, deveria
ser apenas um instrumento para estimular a luta de massas.
Quanta diferença entre retórica e
prática. Quem examinar a ação de qualquer destes partidos verá que, desde a
redemocratização, ele tornou-se cada vez mais institucional. A tendência acentuou-se
após 2003, com a chegada ao governo; e depois de 2013, quando ficou claro que
as ruas não eram controladas por ninguém. Há hoje, para os partidos de
esquerda, algo mais importante que a mera disputa eleitoral? Que projetos
alternativos de país estão sendo gestados? Que esforços há em dialogar com
aqueles que – como os caminhoneiros, com todas as suas contradições – chocam-se
com a ordem?
A partir do final de 2017, a
situação agravou-se – por motivos compreensíveis, mas contestáveis. O
acirramento da perseguição a Lula levou a uma agenda reflexa. Ela está
centrada, quase exclusivamente, na luta pela liberdade do ex-presidente e por
voltar ao Palácio do Planalto. Não busque encontrar, por exemplo, participação
dos partidos de esquerda na luta contra os efeitos da “reforma” trabalhista, o
desmantelamento dos serviços públicos ou a ocupação federal-militar nas favelas
do Rio de Janeiro.
As pesquisas de intenção de voto,
no momento favoráveis, alimentam esta tendência. Valeria a pena correr riscos,
quando há uma hipótese mais rápida de voltar ao governo, já em outubro?
Aos poucos, vão se espalhando
movimentos que parecem apostar em outra lógica. Na mesma semana em que explodiu
a luta dos caminhoneiros, os professores das escolas particulares de São Paulo
ocupavam a Avenida Paulista (contra a precarização de suas condições de
trabalho) e as feministas transformavam em fatos políticos mesmo a estreia de
filmes pouco ambiciosos – como Chega de Fiu-Fiu.
Estará em curso outra virada
política? Como diria José Saramago, não podemos saber – mas talvez tenhamos o
dever de participar…
*Antonio Martins é Editor do Outras Palavras
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