sábado, 26 de maio de 2018

Brasil | A luta dos caminhoneiros e as questões incômodas


Há quem fale em “golpe” e em “locaute”. Mas movimento expõe, principalmente, fragilidade do governo; e paralisia de uma esquerda que esqueceu as ruas e a rebeldia – para enxergar apenas eleições

Antonio Martins* | Outras Palavras

I.
E eles resistem. No início da tarde sexta-feira (25/6), quando se escreve este texto, o governo acaba de anunciar ação repressora contra os caminhoneiros – mas milhares deles continuam mobilizados, em todos os Estados. Recusam-se ao trabalho, nas condições que lhes são impostas. Parados, trancam rodovias. Sua atitude trava um país que optou por se tornar refém do transporte rodoviário. Não há gasolina nos postos (ou há filas quilométricas) e os ônibus urbanos começam a escassear. Ninguém abastece os Ceasas. Os aviões, em breve, ficarão em solo.

Para prosseguir, o movimento precisou superar três enormes obstáculos políticos e comunicacionais. Primeiro, ser acusado de anti-social. A mídia – os jornais da Globo, especialmente – diz que os caminhoneiros suscitam desde a interrupção das hemodiálises até a ganância dos atravessadores, que decuplicaram o preço da batata. Segundo, ampliar o sofrimento dos mais fracos. A redução do preço do diesel, proposta pelo governo, doerá nas costas dos contribuintes – martela a TV –, como se não houvesse horizonte político além da “austeridade fiscal”. Terceiro, sabotar a sacrossanta ditadura dos mercados. Os investidores, continua a mídia, puniram a Petrobrás, devastando os preços de suas ações, quando perceberam que uma empresa estatal pode levar em conta os interesses do país.

Contra tudo, o movimento persiste e ganha apoio. O MST orgulhava-se, ontem, de ter oferecido almoço aos caminhoneiros, num bloqueio da Via Dutra, em SP. A Globo noticiou há pouco que os motoqueiros de São José dos Campos fizeram cortejo em homenagem aos grevistas, e confraternizaram com eles. Por que?

II.
Para parte da esquerda, a resposta é fácil. Os caminhoneiros seriam a ponta de lança de um “golpe dentro do golpe, jurídico-militar”, escreveu em editorial uma revista. Trata-se, no fundo, de um “locaute” (greve patronal), apostou outro site.

Talvez haja bases históricas para a suspeita. É possível que a natureza solitária de seu trabalho e a sensação de que “transportam as riquezas do país” torne os caminhoneiros mais propensos ao individualismo, à vanglória e às políticas relacionadas a estes sentimentos. Foi assim no Chile da Unidade Popular, em 1973, quando lideraram um paro que transtornou a vida da população e abriram caminho para o golpe de Estado do general Pinochet. Há quem tente isso de novo. A BBC Brasil reportava, ontem, a ação de grupos que tentam se aproveitar do movimento atual para difundir, via Whatsapp, a ideia da “intervenção militar” para “acabar com os políticos corruptos”.

Mas na aridez do Brasil-2018, submetido há dois anos a uma agenda de retrocessos, a paralisação significa, muito concretamente, um desnudamento das políticas neoliberais – e um sinal de que, bem ao contrário do que alguns pensavam, há inúmeras brechas para lutar contra elas.

III.
Examine as reivindicações dos caminhoneiros. A primeira, e mais crucial, é o fim dos aumentos quase diários no preço do óleo diesel. Eles desordenam totalmente as contas de transportadores cuja margem de lucro é reduzida (por competição intensa) e cujo custo essencial é o combustível. Como tratar um frete hoje e sofrer, no decorrer do próprio transporte, cinco aumentos de preço?

Mas por que tornou-se impossível, à Petrobrás, oferecer preços minimamente seguros, numa economia que estaria “estabilizada” desde o Plano Real? Porque a empresa deixou de modo explícito, após 2016, de atender às necessidades do país. Aceitou subordinar-se aos interesses de seus investidores – a grande maioria, enormes fundos globais. Eleva as cotações dos combustíveis seguindo cada oscilação no preço do barril de petróleo ou do dólar, para assegurar a lucratividade de suas ações. Além disso, iniciou um processo de desativação ou venda das próprias refinarias – o que a torna cada vez mais dependente de importações.

O governo Temer não é vulnerável apenas por ter entregue, na prática, a Petrobrás a seus acionistas externos. Ele tornou-se incapaz de fazer política fiscal. Outra forma de aliviar o drama dos caminhoneiros seria reduzir temporariamente os impostos sobre os combustíveis. Mas como, se os grandes agentes financeiros fiscalizam cada mudança no sistema de tributos? Eles aplaudiram, em novembro, a concessão, às petroleiras estrangeiras, de isenções fiscais calculadas em 1 trilhão de dólares, em vinte anos. Mas rejeitam, agora, um desconto no PIS-Cofins sobre o diesel que equivaleria a 1,2% deste valor. Ou exigem, como contrapartida, elevações de outros impostos que atingiriam a indústria e o emprego.

A pressão dos caminhoneiros rachou e desorganizou a base conservadora no Congresso como nunca antes, ao longo desta semana. O presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM), defendeu a isenção temporária de PIS-Confins e conseguiu aprová-la. De imediato, o ministro da Fazenda, Eduardo Guardia, afirmou que a medida desestabilizaria as contas públicas. O Palácio do Planalto pediu que o presidente do Senado, Eunício Guimarães, retardasse a aprovação da medida em sua casa parlamentar.

O impasse impediu que o governo firmasse, com as lideranças de caminhoneiros, um acordo crível. O compromisso fechado na quinta-feira à noite era frágil e foi, desde o início, desconsiderado mesmo por algumas associações da categoria. Um dia depois, os bloqueios despedaçaram o firmado. Como aceitá-lo, se ele trazia implícita a volta, em um mês, à política atual?

Um movimento que, motivado por drama real, sacode o país, desafiando as visões segundo as quais a sociedade permanece em prolongado estado de “apatia”. Reivindicações que, além de justas,desafiam duas das políticas centrais do golpe de2016 – o desmonte da Petrobrás e o “ajuste fiscal”. Um governo que, pressionado, entra em estado paralítico. Que falta para que a esquerda história decida-se a agir?

IV.
Em palavras, todos os partidos que compõem a esquerda brasileira apostam na mobilização social. O PT surgiu dela, no final da ditadura. PCdoB e PSOL veem-se influenciados pela tradição marxista, para a qual a presença no Estado, sob hegemonia capitalista, deveria ser apenas um instrumento para estimular a luta de massas.

Quanta diferença entre retórica e prática. Quem examinar a ação de qualquer destes partidos verá que, desde a redemocratização, ele tornou-se cada vez mais institucional. A tendência acentuou-se após 2003, com a chegada ao governo; e depois de 2013, quando ficou claro que as ruas não eram controladas por ninguém. Há hoje, para os partidos de esquerda, algo mais importante que a mera disputa eleitoral? Que projetos alternativos de país estão sendo gestados? Que esforços há em dialogar com aqueles que – como os caminhoneiros, com todas as suas contradições – chocam-se com a ordem?

A partir do final de 2017, a situação agravou-se – por motivos compreensíveis, mas contestáveis. O acirramento da perseguição a Lula levou a uma agenda reflexa. Ela está centrada, quase exclusivamente, na luta pela liberdade do ex-presidente e por voltar ao Palácio do Planalto. Não busque encontrar, por exemplo, participação dos partidos de esquerda na luta contra os efeitos da “reforma” trabalhista, o desmantelamento dos serviços públicos ou a ocupação federal-militar nas favelas do Rio de Janeiro.

As pesquisas de intenção de voto, no momento favoráveis, alimentam esta tendência. Valeria a pena correr riscos, quando há uma hipótese mais rápida de voltar ao governo, já em outubro?

Aos poucos, vão se espalhando movimentos que parecem apostar em outra lógica. Na mesma semana em que explodiu a luta dos caminhoneiros, os professores das escolas particulares de São Paulo ocupavam a Avenida Paulista (contra a precarização de suas condições de trabalho) e as feministas transformavam em fatos políticos mesmo a estreia de filmes pouco ambiciosos – como Chega de Fiu-Fiu.

Estará em curso outra virada política? Como diria José Saramago, não podemos saber – mas talvez tenhamos o dever de participar…


*Antonio Martins é Editor do Outras Palavras

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